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Para ter sucesso, lean precisa ser entendido como um sistema “sociotécnico”

Flávio Augusto Picchi
Para ter sucesso, lean precisa ser entendido como um sistema “sociotécnico”
A não compreensão dos aspectos sociais do sistema lean talvez seja uma das mais contundentes razões de muitas jornadas lean não avançarem: um esforço muito concentrado nas questões técnicas, mas com pouca ênfase nas mudanças que esse modelo de gestão traz para as pessoas e formas de relacionamento.

Embora o sistema lean já venha sendo utilizado no mundo todo há muitos anos, a implementação e, em especial, a manutenção e continuidade desse modelo ainda representam um desafio para a maior parte das empresas.

As razões para isso são muitas. Uma delas certamente é porque algumas pessoas ainda veem a gestão lean como uma série de técnicas. Assim, bastaria aprender e aplicar algumas ferramentas, como mapeamento de fluxo de valor, kanban, células de trabalho etc., que o lean estaria “implantado” na companhia.

No entanto, nossa experiência comprova que não são poucas as organizações que reproduzem as técnicas de forma até razoável e, com isso, têm por vezes bons resultados iniciais, mas que não conseguem ir além ou mesmo sustentar o que já foi conquistado.

Talvez isso se deva a um olhar limitado que muitas empresas têm sobre a gestão lean. Elas não conseguem entender de forma mais profunda que muito mais do que “técnicas”, o sistema tem uma parte “social” fundamental.

É por isso que John Shook, uma das principais referências lean no mundo, presidente da Lean Global Network (da qual o LIB faz parte), sempre enfatiza que lean é um sistema “sociotécnico”.

O que isso significa? Que uma transformação lean é, em princípio, uma profunda mudança nas formas de interação entre as pessoas nas companhias que aplicam a mentalidade enxuta. Vamos ver alguns aspectos que mostram como essa dimensão social é importante.


Lean tem como essência a mudança nas pessoas

Antes de mais nada, para que funcione, o sistema lean precisa tirar as pessoas das suas zonas de conforto. Elas precisam entender que não é porque sempre fizeram as coisas da mesma maneira que isso significa que é a forma mais eficiente de se trabalhar.

Muito pelo contrário, o lean estimula os indivíduos a repensarem constantemente suas atividades. Assim, antes de adotar técnicas, é preciso mudar as pessoas. Prepará-las para que estejam aptas a não só aceitar, mas querer ou mesmo buscar mudanças profundas. E, ainda mais difícil, colocar em prática essas mudanças.

Isso exige se autoquestionar, mudar paradigmas e aceitar que os processos devem se transformar constantemente. Assim, saber trabalhar o fator comportamental, para que os indivíduos queiram e aprendam a fazer mudanças em suas próprias rotinas, é fator essencial para o sucesso do sistema.


Lean é colaboração e trabalho em equipe

Na gestão lean, as pessoas nunca mudam sozinhas, mas em conjunto, interagindo, ensinando e aprendendo umas com as outras. Quase todas as técnicas lean pressupõem esse envolvimento de indivíduos para que, juntos, façam as transformações de forma científica e definitiva.

Por exemplo, fazer um Mapeamento de Fluxo de Valor de ponta a ponta numa empresa certamente vai envolver de forma profunda os colaboradores de diversas áreas, que precisarão, juntos, enxergar os gargalos, as dificuldades e os desperdícios que permeiam o trabalho de todos.

Para isso, é necessário incrementar o fator de cooperação, compreensão e ajuda mútuas. Isso significa minimizar as competitividades individuais e fortalecer o real trabalho em equipe, em células de trabalho nas quais as pessoas saibam que dependem umas das outras para o sucesso de todos.


Lean é trabalhar sem medo

Isso só será possível se a companhia formar um ambiente social sem medo. As pessoas não conseguem revelar os problemas caso se sintam inseguras, caso achem que poderão ser responsabilizadas ou punidas.

Por isso, uma organização que se diga lean não pode cultivar a mentalidade repressora de busca por culpados, pois isso afetará o ambiente social e inviabilizará qualquer evolução.

Para se evitar esse vício organizacional, o melhor remédio é praticar o “foco no processo”, que é totalmente distinto do “foco na pessoa”. Isso significa também saber mediar conflitos, promover discussões equilibradas, implementar o respeito às pessoas e, em muitos casos – infelizmente ainda –, lutar contra os assédios morais.


Lean é engajar através de propósito claro

Pessoas só se engajam efetivamente nas melhorias se compreenderem o propósito – por que aquela mudança é importante e como vai impactar a empresa, suas atividades e aspirações, ou seja, se os indivíduos souberem efetivamente o que está acontecendo, por que e como podem e devem se envolver e se adaptar.

A clareza da liderança em comunicar sempre em que direção todos devem ir e que problemas precisam ser resolvidos são fundamentais para que o sistema lean crie vida.


Lean é aprendizado individual e coletivo

O pensamento lean desafia alguns modelos mentais tradicionais. Por exemplo, muitas pessoas têm dificuldade de entender que trabalhar em pequenos lotes é mais produtivo e que parar imediatamente quando detectamos um problema é melhor do que ter que parar quando as consequências forem maiores.

Por isso, muitas vezes é necessário desaprender alguns velhos conceitos para poder aprender a essência da gestão lean. O aprendizado individual e coletivo é o coração do sistema, e ele ocorre quando os times implementam na prática os conceitos e ferramentas enxutas, sentem as dificuldades, ajustam e obtêm resultados.

Somente vivenciando as transformações, as empresas e indivíduos aprendem como aplicar o lean nos ambientes. E esse é um intenso processo social, com divergências e incertezas que precisam ser superadas para finalmente levar à realização e satisfação.


Lean acontece com líderes que desenvolvem as pessoas

E claro que tudo isso jamais acontecerá se não houver líderes preparados para trabalhar não só a parte técnica, mas também a social. As lideranças precisam funcionar como catalizadoras.

É por isso que sempre dizemos que o líder lean, diferente de um chefe tradicional, está mais para um coach, para um treinador. Ele precisa se concentrar em desenvolver as pessoas, mas sempre levando em conta que esse desenvolvimento não é só individual, mas que precisa fortalecer os laços entre todos.

Isso também requer uma mudança de mentalidade não só dos líderes, mas dos subordinados. Eles precisam abandonar o costume de esperar respostas prontas para tudo e assumir outro papel: o de buscar, por conta própria, a revelação de problemas, o encontro das causas raízes e a experimentação de soluções científicas. Para isso, se for necessário, é preciso discordar dos chefes, mas sempre com base em fatos e dados.


Lean depende de uma boa gestão da mudança

A criação de um ambiente social diferente do tradicional requer esses fatores e diversos outros. Por isso, para se implementar o lean, é necessária uma grande atenção no planejamento da “gestão da mudança”. Ou seja, fazer um esforço para além da parte técnica que consiga identificar os modelos mentais limitadores que restringem ou impedem o avanço da transformação. E trabalhar para mudar essas bases.

Portanto, tão importante quanto o planejamento de treinamentos, análises dos processos e aplicação das ferramentas lean é planejar a mudança cultural e de hábitos que deve ocorrer concomitantemente.

Isso se dá através da criação de um ambiente propício, com comunicação ampla, alinhamento de objetivos em todos os níveis, suporte das lideranças imediatas¸ integração com a avaliação de desempenho e comportamentos valorizados, entre outras mudanças.

E o mais importante: gerando oportunidades para que todos possam participar de experimentos de forma estruturada, sentindo os benefícios e se orgulhando dos resultados.

Somente trabalhando num ambiente social propício, as pessoas conseguirão efetivamente entender em profundidade o sistema lean. E se sentirão motivadas a realmente participar da mudança e exercer seus potenciais criativos, de inovação, de experimentação, de investigação e solução de problemas.

Publicado em 04/11/2021

Autor

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil

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