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Transformação digital de sucesso precisa ser lean

Flávio Battaglia e Erasto Meneses
Transformação digital de sucesso precisa ser lean
Entenda como desenvolver estratégias para antever contramedidas e evitar cinco “entraves” que podem comprometer uma jornada de transformação digital

Novas tecnologias têm tornado possíveis a digitalização de muitos processos dentro das organizações. Há alguns anos, temos observado enormes esforços por parte de empresas de praticamente todos os setores no sentido de não “perderem o bonde” da transformação digital. Agora, o ingrediente da vez parece ser a IA (Inteligência Artificial) Tratam-se de novos artefatos das realidades organizacionais com os quais precisamos aprender a lidar, pois estarão cada vez mais presentes em nossas rotinas de trabalho.

No entanto, muito diferente de apenas investir em mais tecnologia e novas ferramentas, aquilo que chamamos de “transformação lean digital” é, na verdade, uma jornada estratégica que exige percepções e decisões bastante distintas das que tradicionalmente se observam, tanto “para dentro”, quanto “para fora” da empresa. Não podemos desperdiçar oportunidades de galgar grandes saltos de desempenho tendo a tecnologia como alavanca.

Não é raro encontrarmos iniciativas de transformação digital que reforçam ou até aumentam as dificuldades existentes “antes do digital” porque se conduz a mudança de maneira pouco cuidadosa, mal planejada e comunicada. Ou seja, mantendo-se, em essência, os mesmos processos, métodos e mentalidades que se tinha antes. Para se evitar isso, é preciso que  jornada seja desencadeada por uma delicada reorganização dos macroprocessos, que será a base para uma transformação digital realmente lean.

Para que uma transformação dessa natureza ocorra e gere os resultados esperados, é preciso compreender que a jornada demanda mudanças de mentalidades, comportamentos e atitudes, além de definições claras de propósitos e o emprego da tecnologia “do tamanho certo”. Não é uma mudança fácil, muito menos natural. Rupturas tecnológicas substanciais geram impactos em relações de comunicação, poder e autoridade. Portanto, é preciso assumirmos que fatalmente haverá entraves, “forças organizacionais” que se tornarão barreiras à evolução.;

Estreitamente  conectado à estratégia da organização, o desafio exige antever e compreender profundamente as potenciais “armadilhas” que podem se colocar no caminho. É preciso refletir sobre isso para que a transformação digital não seja apenas mais uma “camada de verniz” que vai proteger, manter e reforçar práticas e problemas antigos.

Tais entraves variam de acordos com os tipos de negócios, tamanho das organizações e setores da economia em que se inserem. No entanto, é possível observar, de maneira geral, cinco grandes desafios quando se busca uma transformação digital mais profunda no nível da organização. Diante de todos eles, ao conseguirmos incorporar a maneira lean de pensar, agir e gerenciar, podemos potencializar tremendamente os esforços e poupar enormes somas de recursos.

 

1 - Resistências culturais

Como estruturas microssociais, empresas desenvolvem culturas específicas que são formadas pelas práticas, hábitos, comportamentos e valores, que são reforçados, moldados e perpetuados ao longo do tempo. O problema é que uma transformação digital exige, inevitavelmente, mudanças em diversas dimensões da cultura organizacional, quando não em todas. E sabemos que pessoas que estão acostumadas e se sentem confortáveis diante de determinadas práticas tenderão a resistir.

Para que a transformação digital não seja vista como “ameaça”, são necessárias  contramedidas específicas. Uma delas, por exemplo, pode ser um “nemawashi“, expressão de origem japonesa, parte do vocabulário lean, que sugere um processo cuidadoso e estruturado de comunicação que busca consensos prévios e alinhamentos suficientes antes do início de qualquer esforço ou iniciativa prática.

Para isso é preciso entender claramente quais são as características da cultura atual com a qual se está lidando e quais são as lacunas específicas diante da nova realidade cultural almejada. Não se muda uma cultura, molda-se. É preciso mudar as práticas para que a cultura vá ganhando novos contornos. Acreditar que se podem atingir melhores resultados ao se manter as práticas associadas à cultura tradicional é uma incongruência evidente.;

Isso pressupõe desenvolver um esforço de comunicação e sensibilização estruturados nos diferentes níveis da organização antes da transformação começar. Para que as pessoas entendam com clareza o papel que elas terão na jornada e como será o impacto das mudanças no dia a dia. Transparência é elemento crítico, pois “verdades não declaradas” são percebidas rapidamente e podem atuar como poderosas forças de atrito.

 

2 – Falta de conhecimento e capacidades

Uma transformação digital mais profunda não vai exigir apenas novos processos, estruturas ou tecnologias, mas também pessoas dotadas de novos conhecimentos e capacitadas para entender e lidar com a nova realidade.;

Essas novas competências vão desde o entendimento conceitual e prático do que significa uma transformação digital realmente lean. E também novos conhecimentos específicos sobre ferramentas, tanto do sistema lean como aquelas relacionadas às novas tecnologias, como inteligência artificial, cibersegurança, inteligência de dados, entre outras.

Não é suficiente apenas saber implantar novas tecnologias, mas, também, como conectá-la à capacidade da organização para gerar novos canais de inovação e modelos de negócios mais adequados ao contexto competitivo. Sempre partindo do conhecimento mais profundo sobre as capacidades da organização, dos resultados e dos objetivos de médio e longo prazo.

Assim, a empresa precisa entender, fundamentalmente, como gerar novos conhecimentos para, então, conseguir implementar e conduzir a estratégia de transformação digital da maneira lean, indo além da “inercial” adoção de mais e mais tecnologia.;

Para isso, é necessário investir em capacitação, treinamentos e desenvolvimento de mentores (internos e externos) que possam apoiar, na prática, a assimilação de habilidades necessárias, do lean à tecnologia, para que transformação digital não naufrague pela falta crítica de capital intelectual. Essa evolução precisa acontecer das lideranças até as bases, atingindo todos os níveis da organização.

 

3 – Foco “financeiro”

Todo negócio precisa de resultados financeiros e retornos adequados sobre seus investimentos. A questão é o tempo necessário para que os resultados aconteçam e os “meios” que serão utilizados para alcançá-los. Em boa parte das vezes, é preciso adotarmos uma perspectiva de médio e longo prazos.

Não é incomum perceber empresas que iniciam a transformação digital, obtêm os primeiros resultados e acham que são suficientes ou que não são escaláveis. Trata-se de um erro, pois a transformação pode demorar a deslanchar. E interrupções precoces geram danos bastante relevantes.;

Assim, é preciso evitar o pensamento imediatista e entender que a jornada lean digital, ao ser bem pensada e executada, trará seus melhores e mais sustentáveis resultados considerando o médio e o longo prazos. Ganhos rápidos são possíveis e desejáveis, mas precisam estar associados a esforços estruturados e conectados às reais necessidades estratégicas do negócio.

Foco financeiro não é errado. A armadilha é acreditar cegamente nos números e deixar para traz as premissas que envolvem mudanças mais profundas, relacionadas às pessoas, à relação delas com o trabalho, à maneira de fazer gestão e liderar.;

Precisamos perceber com clareza as expectativas e os problemas enfrentados por nossos clientes, para que estejamos aptos a desenvolver novos modelos de negócio e maneiras mais inovadoras ou até disruptivas de produzir e entregar valor. É isso que poderá criar as reais vantagens competitivas necessárias para se viabilizar melhores taxas de retorno sobre o capital investido, perenidade da organização e sucesso econômico sustentável.

 

4 - Obstáculos técnicos e operacionais

Sob a ótica lean, melhorar a gestão não significa a necessidade de ter mais e novas tecnologias. Por vezes, ao se aplicar de maneira correta os conceitos e práticas lean é possível “consertar” os processos e aumentar a capacidade de criar e entregar valor, mantendo-se os níveis tecnológicos existentes. No entanto, em determinadas situações, passos mais ambiciosos precisam ser executados e novos patamares de digitalização passam a ser necessários.

Com isso, podem emergir obstáculos técnicos e operacionais, pois uma nova tecnologia, por vezes, exige uma integração trabalhosa com plataformas já existentes ou mesmo a “aposentadoria” de estruturas defasadas, demandando uma nova “arquitetura digital”, geralmente muito distinta daquela que existia previamente.;

É preciso, também nesses casos, efetuar essa integração de maneira lean, evitando sobreposições, redundâncias ou retrabalhos, típicos em iniciativas superficialmente planejadas e desconectadas dos reais desafios de transformação. Além disso, é necessário também considerar o desafio de garantir “escalabilidade” das novas soluções, conforme os esforços forem progredindo.;

Novas tecnologias, geralmente, têm altos custos de implementação. No entanto, se forem frutos de uma estratégia realmente lean, tendem a ser “sob medida”, sem dispêndios desnecessários, e “na hora certa”, sem sobrecarregar a necessidade de caixa e de acordo com a capacidade de “absorção” das novidades por parte das pessoas e da organização. Sem essa cadência estratégica, podemos jogar fora muito dinheiro junto com o tempo de muita gente.;

Outra armadilha comum aqui é acreditar que os novos conhecimentos precisam estar concentrados em uma única unidade, área funcional ou setor da organização. Desenvolver mentalidade de inovação que vise a melhoria contínua em todos os níveis, explorando o novo e não simplesmente aprimorando rotinas, são primordiais para que a organização não só cresça sistemicamente, mas reforce a capacidade de gerar recursos de maneira sustentável ao longo do tempo.

 

5 - Segurança digital

Em boa parte das vezes, uma transformação lean digital tenderá a gerar mais e melhores “dados e fatos” sobre o desempenho do todos os processos que ocorrem na organização. Se forem fidedignos, dados e fatos podem ser, sob a ótica lean, um dos principais tesouros de uma empresa, pois podem ser usados para nos ajudar a evoluir, resolver problemas, criar e entregar mais valor para os clientes.;

No entanto, é preciso pensar na segurança das informações, pois dependendo do tipo de produto, de público e das informações manuseadas, isso pode representar riscos relevantes e potenciais prejuízos, tantos para os negócios, quanto para a reputação. As novas leis de proteção ao direito à privacidade são abrangentes e exigem atenção. Os dados são o “coração” de qualquer transformação digital. Em consequência, garantir o correto e seguro uso desse patrimônio é fundamental. E pensar nesse tipo de problema antes que ele ocorra também é fruto de uma abordagem lean.

Esses cinco tipos de preocupações relatadas aqui, que se transformam em desafios a serem vencidos para se ter, realmente, uma transformação lean digital, não são únicos, podem representar variantes e exigir reflexões ainda mais aprofundadas. Cabe a cada um de nós, então, considerar essas dimensões da jornada de transformação digital antes mesmo dela começar, para antever os entraves e gerenciar da maneira lean no sentido de mitigá-los.

A transformação lean digital se torna, a cada dia, mais imperativa para a sobrevivência e prosperidade das organizações. Os desafios são numerosos e complexos. Trata-se de explorar o novo, mas de uma maneira racional, com os “pés no chão”. Isso não é fácil de se fazer, pois precisamos reconhecer nossas limitações e respeitar o ritmo de absorção por parte dos indivíduos e das equipes. É necessário ter uma visão clara de futuro, mas também das nossas reais capacidades de concretizar mudanças efetivas.;

Assim, as organizações devem adotar uma abordagem holística, considerando a transformação digital não apenas como um “projeto de TI”, mas uma iniciativa estratégica ampla e abrangente que requer envolvimento, colaboração e comprometimento em todos os níveis da organização. Só dessa maneira será possível explorarmos de forma completa e sustentável as enormes potencialidades dos ecossistemas digitais.

Publicado em 08/03/2024

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Erasto Meneses
Head de Lean Digital Transformation no Lean Institute Brasil.

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