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Transformação digital exige pensamento lean

Flávio Augusto Picchi e Christopher Thompson
Transformação digital exige pensamento lean
As novas tecnologias têm apontado um potencial de grandes transformações nas companhias. Mas sem um propósito claro de agregação de valor e uso de princípios lean básicos. Essas iniciativas, que demandam alto esforço e investimento, correm o risco de não trazer os resultados esperados.

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As empresas estão cada vez mais interessadas na chamada “transformação digital”, seja pelas possibilidades de racionalizar, inovar e criar novos modelos de negócios, seja pelo medo de ficarem para trás da concorrência estabelecida, ou de novas startups que alterem disruptivamente o cenário competitivo, ameaçando posições construídas ao longo de anos.

As mudanças de hábitos dos clientes, que cada vez mais incorporam ao seu dia a dia tecnologias digitais e dispositivos móveis, aliadas à disponibilidade de tecnologias, tais como:  IoT (internet das coisas), cloud (computação em nuvem) e análise de dados (uma série de conceitos para tratamento de grandes volumes de dados gerando informações úteis, como big data analytics, machine learning, e outros), abrem inúmeras possibilidades ainda não exploradas em sua totalidade. 

Mas para que as oportunidades sejam aproveitadas em sua totalidade, é importante integrar o pensamento lean nesse esforço, para que haja um correto entendimento sobre como a transformação digital pode realmente eliminar desperdícios e aumentar a agregação de valor. Não faz sentido iniciativas tecnológicas desconexas, sem um propósito claro. Todo esforço deve iniciar com uma definição estratégica de qual valor adicional se pretende oferecer aos clientes, o princípio básico do pensamento lean.

Muitos estão tateando nesse sentido, porém às vezes traçando objetivos com uma visão bastante limitada: “ter um app próprio para se comunicar com o cliente”, “instalar mais robôs e automação nos processos”, “precisamos ser mais digitais” etc. Outras buscam absorver conceitos que têm sido úteis nas empresas que iniciam novos negócios, como os conceitos de lean startup, design thinking, práticas ágeis e outros, mas muitas vezes apenas focando nas ferramentas de maneira isolada.

Para que haja um real salto competitivo, é necessário um entendimento amplo do que é a transformação digital. A Forrester, por exemplo, uma organização de pesquisa e consultoria bastante conceituada no mundo da tecnologia, traz uma interessante definição de negócios digitais: aqueles que ganham, servem e retêm clientes através da contínua criação e exploração de recursos digitais, para entregar novas fontes de valor aos clientes e aumentar sua agilidade operacional.

A definição acima tem uma visão bastante alinhada com a filosofia lean. Da nossa experiência, apoiando empresas pioneiras nessa jornada, percebemos que a transformação digital precisa estar integrada à transformação lean, ambas condicionadas à maior agregação de valor ao cliente. Compartilhamos a seguir cinco pontos chave já percebidos, que podem ser úteis para os que estão iniciando ou evoluindo seus esforços digitais: 

  1. Inicie com um propósito claro

As tecnologias podem criar grandes oportunidades, muitas ainda não descobertas, e de certo modo fascinam as empresas, lideranças e investidores. Vemos em muitas empresas frases vagas que propagam um modelo mental de que aplicar intensamente as tecnologias é o objetivo. As pessoas envolvidas podem ser induzidas, por exemplo, ao “over investiment”, criando aparatos complexos, mas que ao final não trazem resultados significativos, pois não estava claro qual problema se queria resolver.

 Na filosofia lean, toda e qualquer melhoria deve iniciar de um entendimento muito claro de qual valor se pretende agregar ao cliente e de como cada iniciativa é reflexo do desdobramento da estratégia da empresa, o que, no lean, chamamos de hoshin kanri. O uso de todas as tecnologias disponíveis para inovar produtos, processos, modelos de negócio, deve ser puxado por objetivos de posicionamento e desempenho específicos. Experimentos que gerem aprendizados são a essência do lean, e sem dúvida devem ser utilizados, mas sempre com um rumo bem definido.

  1. Aprenda com os clientes

Entender as necessidades dos clientes é sempre o primeiro passo no pensamento lean. As maiores oportunidades que as novas tecnologias digitais trazem estão sem dúvida nas possibilidades que elas abrem para que as empresas tenham uma interação muito maior com seus clientes, fazendo com que o diálogo com eles ocorra efetivamente nos dois sentidos e de maneira infinitamente mais rápida gerando curtos ciclos de aprendizado.

O uso de realidade aumentada na experimentação de conceitos, a incorporação de comunicação e inteligência aos serviços e produtos através de dispositivos móveis e IoT e tantas outras formas, por exemplo, trazem uma gama enorme de informações sobre preferências, hábitos de consumo, formas de uso dos produto e necessidades de assistência técnica. Se bem usadas, podem fazer as empresas permanentemente reverem seus produtos, serviços e modelos de negócio. 

Aprender sobre o cliente e possibilitar que eles aprendam sobre seus produtos e serviços, criando reusable learning, deve ser um foco da transformação digital real, pois possibilita a permanente evolução do seu propósito, de maneira ágil.

  1. Redesenhe fluxos de valor completos

Essa é a ponta por vezes mais visível de muitas iniciativas digitais. No campo da manufatura crescem as discussões e as aplicações caracterizadas como manufatura 4.0, smart factory, internet industrial e outras. A convergências das tecnologias tem possibilitado aplicações em diversos campos, gerando maior eficiência e flexibilidade. São aplicações, por exemplo, em:  redesenho de fluxos de informação e programação, conexão entre equipamentos automatizados e robotizados, gerenciamento em tempo real do fluxo de materiais e da manutenção de equipamentos, etc.

A conexão com os fornecedores e toda a cadeia logística também experimenta diversas novas possibilidades, com dispositivos avançados de comunicação e rastreamento alimentando sistemas inteligentes de monitoramento, ajuste e decisão rápida.

Nos serviços, crescem as possibilidades de automatizar atividades transacionais com novas tecnologias de interação por voz, por exemplo, e até mesmo de análise e interação avançada, através da aplicação de inteligência artificial. 

Por vezes vemos iniciativas de mudanças nos processos de produção e administrativos, porém realizadas de forma isolada. Um grande risco é automatizar desperdícios, sendo fundamental (e nem sempre realizada) uma análise prévia questionando cada etapa e sua real necessidade. As ferramentas de mapeamento de fluxo de valor, bastante conhecidas dos que aplicam o lean, devem ser ampliadas, para o mapeamento da jornada do cliente, conceito abordado por Womack e Jones desde 2005 em seu livro Soluções Lean. Esse conceito, possivelmente bastante avançado para a época, passa a ter maior condição de ser colocado em prática, facilitado pelas novas tecnologias.

A conexão dessas mudanças de processo e formas de realizar as operações com os mecanismos de aprendizado com o cliente são as que efetivamente possibilitarão saltos em fluxos de valor completos, operando de forma puxada e flexível, adequando-se e respondendo prontamente às demandas dos consumidores.

  1. Transforme a organização toda

A transformação digital não pode ficar limitada a pequenos grupos segmentados do restante da empresa. Grupos iniciais para experimentação e aprendizado são válidos, mas a perspectiva deve ser sempre: como integrar, desde o início, esses esforços com a visão de futuro, para a companhia toda. 

Uma real evolução ocorrerá quando as mudanças impactarem a forma como todos na organização trabalham, como se conectam com os clientes, e como permanentemente inovam e melhoram os processos e negócios da empresa. Isso exige mudanças culturais, de estilo de liderança, na forma como as pessoas são desenvolvidas e de estrutura organizacional.

  1. Integre a transformação digital à transformação lean

Todos os itens anteriores mostram que a transformação digital potencializa e se apoia em diversos pilares da filosofia lean: foco no valor para o cliente, eliminação de desperdícios, flexibilidade, agilidade etc. E depende da transformação em todas as dimensões: propósito, processo, capacidades das pessoas, sistema de gestão e liderança, modelos mentais. 

Se entendermos a transformação lean como sendo a aplicação dessa filosofia visando maximizar a agregação de valor aos clientes de forma a atingir os objetivos de negócio, fica fácil perceber que a transformação digital real não pode ocorrer sem estar alicerçada na transformação lean. E que a transformação lean pode experimentar um salto no atendimento aos clientes se aproveitar adequadamente as oportunidades ainda pouco exploradas das novas tecnologias digitais.

Publicado em 13/09/2017

Autores

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil
Christopher Thompson
Diretor do Lean Institute Brasil.

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