LOGÍSTICA E CADEIA DE SUPRIMENTOS

Uma perspectiva lean sobre os impactos da reforma tributária em logística e supply chain

Flávio Battaglia e Daniel Felipe de Oliveira
Uma perspectiva lean sobre os impactos da reforma tributária em logística e supply chain
Entenda como a gestão lean pode conectar as necessidades do negócio à racionalidade econômica que emerge da nova lógica de tributação, orientando o redesenho dos fluxos, a revisão dos métodos de trabalho e a coordenação entre áreas que precisam atuar de forma integrada nesse novo contexto

A Reforma Tributária inaugura uma nova lógica competitiva para a logística e a gestão da cadeia de suprimentos no Brasil. Durante décadas, decisões de localização industrial e desenho de redes de distribuição foram condicionados pela tributação “na origem”, o que historicamente incentivou a dispersão geográfica, distorceu fluxos e elevou o custo sistêmico das operações no país. 

A transição para um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) mais moderno, estruturado sobre a tributação “no destino”, considerando o crédito financeiro amplo e a não cumulatividade plena – tem potencial para reposicionar o sistema tributário em coerência com a lógica econômica e com o funcionamento real das cadeias produtivas. 

A migração da origem para o destino não será meramente um ajuste técnico. Representará um incremento na racionalidade do sistema. Ao tributar onde ocorre o consumo, o novo modelo tende a reduzir incentivos artificiais e a recolocar no centro variáveis que sempre deveriam orientar as decisões, como custo total, lead time, estabilidade e aderência à demanda real. Isso permitirá reexaminar estruturas logísticas que foram construídas para otimizar alíquotas e não para servir clientes. Redes de distribuição poderão deixar de ser moldadas por regimes regionais e passarão a ser avaliadas por produtividade, eficiência e coerência de fluxo em direção ao cliente.

O “crédito financeiro amplo” tem condições de eliminar ambiguidades presentes no modelo atual e de tornar o fluxo tributário mais alinhado ao fluxo físico. Estoques carregarão custos financeiros ainda mais evidentes como crédito parado. Lead times longos retardarão a compensação tributária. Erros operacionais comprometerão o aproveitamento de créditos. Cadeias físicas e financeiras tenderão a se tornar ainda mais interdependentes, o que ampliará a importância da estabilidade operacional.

A “não cumulatividade plena” tende a aprofundar esse realinhamento porque elimina camadas de tributação indireta que hoje distorcem preços, sobretudo em cadeias longas e com forte presença de serviços. Ao padronizar créditos e débitos ao longo da cadeia, a decisão entre internalizar ou terceirizar deixa de ser influenciada por efeitos tributários pouco transparentes e volta a depender, principalmente, de produtividade, capacidade e nível de serviço. Com isso, cadeias complexas ficam mais claras do ponto de vista econômico e passam a refletir melhor seus custos reais.

A transição entre 2026 e 2033 será o período de maior complexidade. Durante vários anos, empresas conviverão com dois sistemas tributários simultâneos. Essa coexistência exigirá ajustes contínuos nos ERPs (Enterprise Resource Planning), além de disciplina na gestão de cadastros, no rigor documental e em processos estáveis, para evitar erros que comprometam créditos ou gerem retrabalho. O risco não estará no modelo final consolidado, mas, sim, na jornada de implementação. A capacidade de manter operação, informação e conformidade alinhadas poderá se tornar, por si só, um diferencial competitivo.

Nesse contexto, a gestão lean tende a ser determinante. Ela pode oferecer a estabilidade necessária para se operar em situações “híbridas”, reduzir erros que comprometerão créditos e organizar os processos internos para que o fluxo físico e o fluxo tributário permaneçam sincronizados. O sistema lean pode acelerar a adaptação, pois trabalha com padronização, visibilidade, resposta estruturada a problemas e proporciona a integração entre as áreas. Também pode criar condições de reduzir o custo da transição ao evitar variabilidade desnecessária, desperdícios e desconexão entre etapas críticas do macroprocesso, que tendem a se amplificar em momentos de mudança estrutural como essa.

A lógica de tributar “no destino” ampliará a importância de sistemas puxados, redes de distribuição mais diretas e decisões críticas baseadas na demanda real. Isso pode tornar os lead times mais curtos e estáveis, algo não apenas desejáveis sob a ótica lean, mas agora coerentes com o novo desenho tributário. A tecnologia ampliará esse potencial por meio de roteirizações mais inteligente, visibilidade de “ponta a ponta” e simulações; desde que tudo isso esteja apoiado por processos disciplinados e equipes preparadas.

O ambiente pós-reforma exigirá maior coordenação entre os elos da cadeia estendida. Sem incentivos regionais determinados pelas localizações, empresas precisarão compartilhar recursos, integrar informações e buscar soluções que combinem eficiência e capacidade de resposta. Centros regionais compartilhados, estruturas urbanas otimizadas e modelos coordenados de distribuição poderão se tornar alternativas poderosas, sobretudo em grandes centros. O objetivo não deve ser replicar modelos de maneira inercial, mas, sim desenhar fluxos coerentes com o comportamento da demanda e com a maturidade operacional de cada organização.

A partir desse ponto, o impacto deixará de ser apenas local ou setorial e passará a ter implicações macroeconômicas. A reforma tem potencial promover um raro alinhamento entre eficiência microeconômica e racionalidade sistêmica. Ao reduzir distorções endêmicas, simplificar o aproveitamento de créditos e permitir decisões logísticas mais coerentes, o país poderá avançar na direção de uma estrutura tributária compatível com economias de maior produtividade. No entanto, esse potencial dependerá da calibragem final da alíquota do IVA. Modernizar o sistema sem preservar competitividade real da economia seria um “tiro no pé”. O desafio será conciliar arrecadação com a vitalidade do sistema produtivo brasileiro.

Se esse equilíbrio for alcançado, a reforma poderá abrir uma oportunidade histórica. Cadeias de suprimentos mais racionais poderão superar desperdícios estruturais, reduzir lead times, aumentar previsibilidade e ampliar produtividade. A eliminação da cumulatividade pode criar condições de recomposição de margens e redução de custos ocultos, que distorcem preços e decisões. Nesse cenário, a economia brasileira disporá de novas condições sistêmicas para acomodar as decisões de negócio que definirão nosso futuro competitivo.

Nesse contexto, a gestão lean tende a atuar como “aceleradora” e “amortecedora” ao mesmo tempo. Pode “acelerar” ao ajudar a incorporar rapidamente o novo arcabouço tributário e convertê-lo em práticas superiores de operação, planejamento e decisão. Pode “amortecer” ao reduzir desorganização típica de grandes transições, evitando que a mudança de sistema se traduza em instabilidade para o cliente ou queda de desempenho operacional. A abordagem lean pode encurtar a curva de adaptação e aumentar a probabilidade de se materializarem, no nível micro, os ganhos projetados no nível macro.

A oportunidade de se criar convergência entre um sistema tributário mais racional e uma maneira de fazer gestão focada em entregar valor para o cliente é rara. Se bem aproveitada, tem potencial para elevar o padrão competitivo de cadeias, setores e, no limite, da economia como um todo. A reforma tributária definirá as bases da nova estrutura. A maneira lean pode fornecer o método. A combinação das duas forças pode definir uma nova fronteira de competitividade para o Brasil. As organizações que compreenderem essa convergência e agirem com rigor terão condições de transformar mudanças tributárias em vantagem estrutural duradoura. As que não o fizerem, possivelmente permanecerão presas a complexidades que o novo sistema já não exigirá, mas que os processos reais ainda insistirão em reproduzir.

Fonte: Lean Institute Brasil
Publicado em 03/12/2025

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Daniel Felipe de Oliveira
Head para Supply Chain, Logística e Varejo no Lean Institute Brasil

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