A padronização é um desafio constante em muitas organizações. Embora a
criação de padrões seja uma etapa relativamente simples, a verdadeira dificuldade
está em garantir que isso seja cumpridos de maneira consistente, dia após dia, em diferentes
contextos e sob pressão. O grande problema não é ter padronização, mas, sim,
conseguir que ela se torne parte da rotina, sem se transformar em burocracia inútil – algo que
apenas está no papel, mas não é efetivamente aplicado.
Esse desafio se aplica a uma vasta gama de setores, de hospitais a fábricas, de equipes de software a
operações de serviços. A lacuna entre o que é estabelecido como padrão e o
que é realmente executado explica, em grande parte, os custos ocultos em qualidade, segurança e
produtividade. A causa raiz desse problema reside na forma como abordamos a padronização e o tipo
de esforço necessário para implementá-la de maneira eficaz.
Como James Womack observa em um artigo publicado no Planet Lean, ideias que não exigem
práticas deliberadas se difundem rapidamente; aquelas que demandam mudanças em crenças,
rotinas e sistemas avançam lentamente — como é o caso da padronização de
processos. A solução está em tornar o correto mais fácil de executar, além de
visível e compreensível no gemba. O “placebo” é tratar isso como um conceito
abstrato.
Womack também destaca que, sem o suporte de um sistema de gestão robusto, os ganhos de melhoria
podem ser insustentáveis. Ele enfatiza que a verdadeira transformação requer
mudanças profundas na forma como os gestores operam, passando de uma postura de comando e controle para
uma abordagem de coaching e de remoção de obstáculos. Portanto, a
padronização eficaz vai além da simples implementação de ferramentas; ela
exige uma mudança cultural e estrutural que permita a sustentação e a
evolução contínua dos processos. (Planet
Lean).
A história ilustra essa questão em diversos campos. Na medicina, Joseph Lister (1827-1912) foi
pioneiro na antissepsia em 1867, estabelecendo rotinas simples, como o preparo de mãos e instrumentos, o
que reduziu drasticamente as infecções cirúrgicas. No entanto, essa adoção
foi lenta, dependendo da prática coletiva recorrente para se tornar parte de uma verdadeira
“cultura operacional”.
Surpreendentemente, os mesmos desafios enfrentados por Lister e seus seguidores continuam a nos afetar até
hoje. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 7 e 15
infecções ocorrem a cada 100 pacientes hospitalizados, com altas taxas de mortalidade. Isso
acontece mesmo com a existência de estratégias comprovadas para reduzir essas
infecções, como a higiene “multimodal”, que envolve práticas de
prevenção mais rigorosas (https://tinyurl.com/mkxht7vb). Da mesma
forma, nos Estados Unidos, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) observa progressos
variáveis na adoção dessas práticas, destacando que a adesão local é
um fator crítico para o sucesso (https://tinyurl.com/32mp56f8).
Porém, esse paradoxo vai muito além da saúde. Na manufatura, setups de máquinas
seguem padrões para minimizar interrupções no fluxo de produção, mas
frequentemente falham se o ambiente de trabalho não facilita o acesso rápido a ferramentas ou se o
treinamento não considera as diferenças individuais entre operadores. Nesse contexto, o segredo
para o sucesso reside em criar condições que tornem esses padrões intuitivos e
visíveis, como ritmos de operação claros e estoques organizados, garantindo que a
padronização se integre naturalmente ao dia a dia em vez de se tornar uma barreira adicional.
No desenvolvimento de software, processos como revisões de código (code reviews)
são padrões de qualidade essenciais. No entanto, a adesão a essas práticas pode
diminuir se ferramentas não automatizarem verificações (checks) ou se o feedback
for demorado. Empresas como o Google utilizam “engenharia de prompt” em ferramentas como o GitHub
Copilot para tornar o processo correto mais automático (como em testes unitários), aumentando a
produtividade em até 20%, conforme relatórios internos e pesquisas doStack Overflow. Sem essas ferramentas, bugs
“invisíveis” no curto prazo podem gerar custos elevados no longo prazo.
Em serviços como call centers ou no atendimento no varejo, interações com clientes seguem
scripts para garantir consistência nas relações. No entanto, sem o reforço
contínuo por meio de lembretes visuais ou treinamentos práticos, isso pode se tornar apenas uma
formalidade burocrática, sem impacto real na experiência do cliente.
A Zappos, por exemplo, padroniza os chamados "wow moments" para promover a autonomia dos colaboradores, mas
reforça essa prática com métricas no ponto de execução, o que resultou em uma
redução de 15% no churn (taxa de cancelamento de clientes), de acordo com a Harvard Business
Review (https://hbr.org). Da mesma forma, na logística da Amazon, os
padrões de picking são cruciais para evitar erros, mas essa eficácia depende de
layouts ergonômicos e da automação por meio de scans, garantindo a adesão
consistente aos processos.
Ao discutir a padronização, é importante entender a diferença crítica entre
padrões de trabalho e trabalho padronizado. Padrões de trabalho são
instruções simples que guiam a execução das tarefas, enquanto o trabalho padronizado
é um sistema completo, que envolve ritmo claro, sequência definida e treinamento contínuo no
gemba. Essa abordagem fundamenta estratégias eficazes, como a multimodal da OMS (https://tinyurl.com/fnnt2tys), que busca garantir adesão e
eficácia por meio de práticas de monitoramento e feedback contínuos.
Na prática, o trabalho padronizado falha quando seus benefícios não são
visíveis, quando há atritos, instruções genéricas, ameaças à
identidade ou feedback tardio. Para superar esses desafios, é necessário aplicar uma boa
“engenharia lean”, com um design de trabalho bem estruturado, ensino baseado em técnicas como
o Training Within Industry (TWI), que envolve decomposição de tarefas, demonstração
e prática, além de uma governança sólida para garantir a eficácia do sistema
ao longo do tempo.
Esse caminho é bem conhecido, mas exige disciplina para ser trilhado com eficácia. A seguir,
apresentamos quatro pontos-chave para alcançar esse objetivo:
Defina a “essência”: identifique o que é essencial para garantir
qualidade e segurança, e foque no que deve ser padronizado para quem realiza as tarefas. Por exemplo, em
uma fábrica de alimentos, garantir que quem executa o trabalho siga os procedimentos de higiene e
controle de temperatura é essencial e deve ser padronizado.
Desenhe o “como”: crie o ambiente e as ferramentas que favoreçam a
adesão natural aos processos, eliminando atritos desnecessários. Por exemplo, implementar
automação para validar entradas de dados automaticamente, posicionar dispensers de
higiene de forma intuitiva em ambientes de saúde ou otimizar layouts na fábrica para garantir que
ferramentas e materiais fluam de maneira lógica, minimizando a tentação de atalhos.
Priorize o aprendizado: ensine de forma estruturada, decompondo as tarefas em passos claros,
destacando os pontos-chave e o raciocínio por trás de cada ação. Demonstre na
prática como cada etapa deve ser realizada, permitindo repetições supervisionadas
até que a execução se torne natural e fluida, seguindo abordagens como o TWI.
Lidere à moda lean: por fim, lidere no ritmo do dia a dia, estabelecendo rotinas breves
no local de trabalho para identificar e remover barreiras em tempo real, reforçando comportamentos
positivos com feedback imediato e utilizando checagens visuais, como painéis de métricas ou
lembretes no ponto de execução, para manter a visibilidade e a accountability coletiva.
Quando implementada com consistência, a padronização vai além da ação
individual, tornando-se um comportamento coletivo e se enraizando na cultura da organização. Por
exemplo, setups rápidos em manufatura não apenas elevam a eficiência operacional, reduzindo
tempos de parada e desperdícios, mas também fomentam uma mentalidade de melhoria contínua
entre as equipes. Da mesma forma, code reviews fluídos em desenvolvimento de software
minimizam débitos técnicos acumulados, promovendo códigos mais robustos e colaborativos ao
longo dos ciclos de vida dos produtos.
Embora o caso da higiene das mãos na saúde sirva como um exemplo clássico de
prevenção invisível, os mesmos princípios se aplicam universalmente, seja na
preparação precisa de máquinas para evitar falhas mecânicas, nas revisões
rigorosas de código para capturar erros precocemente ou nas interações padronizadas com
clientes em serviços que constroem confiança e consistência na experiência do
usuário.
No cerne dessa questão, a aderência sustentável aos padrões depende muito mais de um
projeto inteligente do que de esforços de persuasão isolados, pois é o redesign do
ambiente de trabalho que torna o comportamento desejado o caminho de menor resistência. Ideias
“lentas”, como as de caráter preventivo e transformador, ganham tração real
apenas quando o fluxo do trabalho é reestruturado para tornar o certo intuitivo e o errado
improvável, eliminando barreiras sutis que sabotam a execução diária.
O convite prático é direto: selecione um processo crítico na operação,
identifique os elementos essenciais, redesenhe o ponto de execução para fluidez, ensine com
profundidade e método, e estabeleça checagens regulares e visíveis. Assim, você
não só converterá conhecimento teórico em prática tangível, mas
também cultivará uma resiliência organizacional que poderá perpetuar a
excelência ao longo do tempo.
A padronização eficaz vai além de simplesmente ter processos estabelecidos; ela se refere a
integrá-los de forma que façam parte do dia a dia da organização. A verdadeira
transformação vem quando padrões se tornam parte da cultura, sustentados por um sistema de
gestão robusto e por uma abordagem contínua de aprendizado, feedback e melhorias. Ao adotar uma
estratégia de padronização consistente e focada, as organizações não
apenas garantem eficiência e qualidade, mas também promovem um ambiente de trabalho ágil e
colaborativo, capaz de se adaptar e evoluir continuamente.