GESTÃO DA PRODUÇÃO

Bases para padrões inteligentes

Flávio Battaglia
Bases para padrões inteligentes
A padronização é a base para consolidar a produtividade como um real diferencial competitivo. Sem ela, não há estabilidade no desempenho nem alicerces para a melhoria contínua. Descubra como superar desafios e alcançar resultados mais sustentáveis

A padronização é um desafio constante em muitas organizações. Embora a criação de padrões seja uma etapa relativamente simples, a verdadeira dificuldade está em garantir que isso seja cumpridos de maneira consistente, dia após dia, em diferentes contextos e sob pressão. O grande problema não é ter padronização, mas, sim, conseguir que ela se torne parte da rotina, sem se transformar em burocracia inútil – algo que apenas está no papel, mas não é efetivamente aplicado.

Esse desafio se aplica a uma vasta gama de setores, de hospitais a fábricas, de equipes de software a operações de serviços. A lacuna entre o que é estabelecido como padrão e o que é realmente executado explica, em grande parte, os custos ocultos em qualidade, segurança e produtividade. A causa raiz desse problema reside na forma como abordamos a padronização e o tipo de esforço necessário para implementá-la de maneira eficaz.

Como James Womack observa em um artigo publicado no Planet Lean, ideias que não exigem práticas deliberadas se difundem rapidamente; aquelas que demandam mudanças em crenças, rotinas e sistemas avançam lentamente — como é o caso da padronização de processos. A solução está em tornar o correto mais fácil de executar, além de visível e compreensível no gemba. O “placebo” é tratar isso como um conceito abstrato.

Womack também destaca que, sem o suporte de um sistema de gestão robusto, os ganhos de melhoria podem ser insustentáveis. Ele enfatiza que a verdadeira transformação requer mudanças profundas na forma como os gestores operam, passando de uma postura de comando e controle para uma abordagem de coaching e de remoção de obstáculos. Portanto, a padronização eficaz vai além da simples implementação de ferramentas; ela exige uma mudança cultural e estrutural que permita a sustentação e a evolução contínua dos processos. (Planet Lean).

A história ilustra essa questão em diversos campos. Na medicina, Joseph Lister (1827-1912) foi pioneiro na antissepsia em 1867, estabelecendo rotinas simples, como o preparo de mãos e instrumentos, o que reduziu drasticamente as infecções cirúrgicas. No entanto, essa adoção foi lenta, dependendo da prática coletiva recorrente para se tornar parte de uma verdadeira “cultura operacional”.

Surpreendentemente, os mesmos desafios enfrentados por Lister e seus seguidores continuam a nos afetar até hoje. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 7 e 15 infecções ocorrem a cada 100 pacientes hospitalizados, com altas taxas de mortalidade. Isso acontece mesmo com a existência de estratégias comprovadas para reduzir essas infecções, como a higiene “multimodal”, que envolve práticas de prevenção mais rigorosas (https://tinyurl.com/mkxht7vb). Da mesma forma, nos Estados Unidos, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) observa progressos variáveis na adoção dessas práticas, destacando que a adesão local é um fator crítico para o sucesso (https://tinyurl.com/32mp56f8).

Porém, esse paradoxo vai muito além da saúde. Na manufatura, setups de máquinas seguem padrões para minimizar interrupções no fluxo de produção, mas frequentemente falham se o ambiente de trabalho não facilita o acesso rápido a ferramentas ou se o treinamento não considera as diferenças individuais entre operadores. Nesse contexto, o segredo para o sucesso reside em criar condições que tornem esses padrões intuitivos e visíveis, como ritmos de operação claros e estoques organizados, garantindo que a padronização se integre naturalmente ao dia a dia em vez de se tornar uma barreira adicional.

No desenvolvimento de software, processos como revisões de código (code reviews) são padrões de qualidade essenciais. No entanto, a adesão a essas práticas pode diminuir se ferramentas não automatizarem verificações (checks) ou se o feedback for demorado. Empresas como o Google utilizam “engenharia de prompt” em ferramentas como o GitHub Copilot para tornar o processo correto mais automático (como em testes unitários), aumentando a produtividade em até 20%, conforme relatórios internos e pesquisas doStack Overflow. Sem essas ferramentas, bugs “invisíveis” no curto prazo podem gerar custos elevados no longo prazo.

Em serviços como call centers ou no atendimento no varejo, interações com clientes seguem scripts para garantir consistência nas relações. No entanto, sem o reforço contínuo por meio de lembretes visuais ou treinamentos práticos, isso pode se tornar apenas uma formalidade burocrática, sem impacto real na experiência do cliente.

A Zappos, por exemplo, padroniza os chamados "wow moments" para promover a autonomia dos colaboradores, mas reforça essa prática com métricas no ponto de execução, o que resultou em uma redução de 15% no churn (taxa de cancelamento de clientes), de acordo com a Harvard Business Review (https://hbr.org). Da mesma forma, na logística da Amazon, os padrões de picking são cruciais para evitar erros, mas essa eficácia depende de layouts ergonômicos e da automação por meio de scans, garantindo a adesão consistente aos processos.

 

Ao discutir a padronização, é importante entender a diferença crítica entre padrões de trabalho e trabalho padronizado. Padrões de trabalho são instruções simples que guiam a execução das tarefas, enquanto o trabalho padronizado é um sistema completo, que envolve ritmo claro, sequência definida e treinamento contínuo no gemba. Essa abordagem fundamenta estratégias eficazes, como a multimodal da OMS (https://tinyurl.com/fnnt2tys), que busca garantir adesão e eficácia por meio de práticas de monitoramento e feedback contínuos.

Na prática, o trabalho padronizado falha quando seus benefícios não são visíveis, quando há atritos, instruções genéricas, ameaças à identidade ou feedback tardio. Para superar esses desafios, é necessário aplicar uma boa “engenharia lean”, com um design de trabalho bem estruturado, ensino baseado em técnicas como o Training Within Industry (TWI), que envolve decomposição de tarefas, demonstração e prática, além de uma governança sólida para garantir a eficácia do sistema ao longo do tempo.

 

Esse caminho é bem conhecido, mas exige disciplina para ser trilhado com eficácia. A seguir, apresentamos quatro pontos-chave para alcançar esse objetivo:

Defina a “essência”: identifique o que é essencial para garantir qualidade e segurança, e foque no que deve ser padronizado para quem realiza as tarefas. Por exemplo, em uma fábrica de alimentos, garantir que quem executa o trabalho siga os procedimentos de higiene e controle de temperatura é essencial e deve ser padronizado.

Desenhe o “como”: crie o ambiente e as ferramentas que favoreçam a adesão natural aos processos, eliminando atritos desnecessários. Por exemplo, implementar automação para validar entradas de dados automaticamente, posicionar dispensers de higiene de forma intuitiva em ambientes de saúde ou otimizar layouts na fábrica para garantir que ferramentas e materiais fluam de maneira lógica, minimizando a tentação de atalhos.

Priorize o aprendizado: ensine de forma estruturada, decompondo as tarefas em passos claros, destacando os pontos-chave e o raciocínio por trás de cada ação. Demonstre na prática como cada etapa deve ser realizada, permitindo repetições supervisionadas até que a execução se torne natural e fluida, seguindo abordagens como o TWI.

 

Lidere à moda lean: por fim, lidere no ritmo do dia a dia, estabelecendo rotinas breves no local de trabalho para identificar e remover barreiras em tempo real, reforçando comportamentos positivos com feedback imediato e utilizando checagens visuais, como painéis de métricas ou lembretes no ponto de execução, para manter a visibilidade e a accountability coletiva.

Quando implementada com consistência, a padronização vai além da ação individual, tornando-se um comportamento coletivo e se enraizando na cultura da organização. Por exemplo, setups rápidos em manufatura não apenas elevam a eficiência operacional, reduzindo tempos de parada e desperdícios, mas também fomentam uma mentalidade de melhoria contínua entre as equipes. Da mesma forma, code reviews fluídos em desenvolvimento de software minimizam débitos técnicos acumulados, promovendo códigos mais robustos e colaborativos ao longo dos ciclos de vida dos produtos.

 

Embora o caso da higiene das mãos na saúde sirva como um exemplo clássico de prevenção invisível, os mesmos princípios se aplicam universalmente, seja na preparação precisa de máquinas para evitar falhas mecânicas, nas revisões rigorosas de código para capturar erros precocemente ou nas interações padronizadas com clientes em serviços que constroem confiança e consistência na experiência do usuário.

No cerne dessa questão, a aderência sustentável aos padrões depende muito mais de um projeto inteligente do que de esforços de persuasão isolados, pois é o redesign do ambiente de trabalho que torna o comportamento desejado o caminho de menor resistência. Ideias “lentas”, como as de caráter preventivo e transformador, ganham tração real apenas quando o fluxo do trabalho é reestruturado para tornar o certo intuitivo e o errado improvável, eliminando barreiras sutis que sabotam a execução diária.

O convite prático é direto: selecione um processo crítico na operação, identifique os elementos essenciais, redesenhe o ponto de execução para fluidez, ensine com profundidade e método, e estabeleça checagens regulares e visíveis. Assim, você não só converterá conhecimento teórico em prática tangível, mas também cultivará uma resiliência organizacional que poderá perpetuar a excelência ao longo do tempo.

A padronização eficaz vai além de simplesmente ter processos estabelecidos; ela se refere a integrá-los de forma que façam parte do dia a dia da organização. A verdadeira transformação vem quando padrões se tornam parte da cultura, sustentados por um sistema de gestão robusto e por uma abordagem contínua de aprendizado, feedback e melhorias. Ao adotar uma estratégia de padronização consistente e focada, as organizações não apenas garantem eficiência e qualidade, mas também promovem um ambiente de trabalho ágil e colaborativo, capaz de se adaptar e evoluir continuamente.

Publicado em 08/10/2025

Autor

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil

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