A saúde é um sistema de alta complexidade, no qual decisões clínicas, administrativas e financeiras se entrelaçam em tempo real. Cada componente, das equipes assistenciais às cadeias de suprimento, dos processos regulatórios aos modelos de financiamento, influencia o desempenho do todo. Quando um desses elos se desajusta, o sistema inteiro perde coerência: a produtividade cai, os custos aumentam, e a qualidade se fragiliza.
O cenário atual expõe essa falta de sintonia. Custos crescentes, judicializações, instabilidades regulatórias e modelos de remuneração desalinhados revelam uma gestão que ainda opera em silos, reagindo a crises em vez de aprender com elas. O resultado é uma “orquestra descompassada”, em que cada parte atua isoladamente, e o valor ao paciente se dispersa no ruído do sistema.
Restaurar a harmonia exige mais do que controle de gastos ou digitalizações. Requer uma forma de gestão baseada em aprendizado, estabilidade e propósito – um modo de pensar e agir que integre produtividade, qualidade e segurança como partes de um mesmo desafio. É nesse ponto que a gestão lean se torna essencial.
Pressão financeira e desequilíbrio estrutural
Em 2025, o setor de saúde foi marcado por uma pressão financeira persistente que ameaça a estabilidade de toda a cadeia de valor. O aumento dos custos de medicamentos e insumos tem criado tensões severas sobre distribuidoras, clínicas e hospitais. As distribuidoras, elo crítico entre a indústria farmacêutica e as instituições de saúde, enfrentam margens comprimidas e inadimplência crescente. Pagam à indústria em cerca de 42 dias, mas recebem dos hospitais após aproximadamente 75 dias, o que pressiona capital de giro e reduz liquidez.
Nos hospitais, a situação é semelhante. Custos com energia, manutenção e pessoal crescem mais rápido do que as receitas. A gestão passa a operar em curto prazo, buscando equilíbrio financeiro imediato, muitas vezes às custas de cortes nos investimentos em qualidade e inovação. Quando o fluxo econômico se torna imprevisível, a atenção tende a migrar do paciente para a sobrevivência institucional.
Insegurança fiscal e impacto sistêmico
Além da pressão de custos, o setor enfrenta um ambiente fiscal instável. O acordo que mantém a isenção de ICMS para dispositivos médicos foi renovado até o fim de 2026, evitando, por ora, um aumento médio estimado em 20% nos custos desses produtos. Estudos apontam que, se essa isenção fosse encerrada, haveria impacto significativo no SUS e na saúde suplementar, incluindo cerca de 29% das cirurgias oncológicas e mais de 17 milhões de sessões de hemodiálise por ano.
Essa incerteza compromete o planejamento de longo prazo e inibe investimentos. Fabricantes e prestadores reduzem estoques e adiam compras de equipamentos, elevando o risco de desabastecimento e de atrasos em procedimentos eletivos. Países que tratam a saúde como setor estratégico mantêm políticas fiscais previsíveis. Preservar esse equilíbrio é essencial para garantir acesso a tratamentos e tecnologias de ponta, além de manter a competitividade do setor produtivo nacional.
A expansão da judicialização
A judicialização da saúde cresce de forma acelerada. O Brasil já ultrapassou 570 mil ações judiciais relacionadas ao setor, número superior ao total de médicos no país. Entre 2023 e 2024, as ações por erro médico aumentaram mais de 500%, e os processos contra planos de saúde dobraram. Embora muitas dessas ações representem a busca legítima por direitos, seus efeitos colaterais são profundos.
Cada decisão judicial fora do planejamento desloca recursos, desorganiza fluxos e pressiona equipes. Hospitais e operadoras são obrigados a custear medicamentos e procedimentos de alto custo, muitas vezes sem evidência clínica consolidada. Essa imprevisibilidade cria um ambiente de gestão em constante tensão. Diretores financeiros, médicos e equipes assistenciais precisam equilibrar conformidade jurídica, segurança clínica e viabilidade econômica. Esse quadro reforça a importância de sistemas de gestão capazes de prever, aprender e reagir com base em dados e métodos – não apenas em urgências.
Modelos de remuneração em crise
A forma como o sistema de saúde remunera o trabalho é uma das raízes mais antigas e persistentes de instabilidades. O modelo predominante ainda remunera volume, não valor. Essa lógica fragmenta o cuidado, estimula redundâncias e desloca o foco das equipes do paciente para a produção de procedimentos.
Nos últimos anos, surgiram iniciativas de transição para modelos baseados em valor, com foco em desfechos clínicos e experiências dos pacientes. Contudo, o avanço tem sido lento. Faltam dados integrados sobre custos e resultados, e os sistemas de informação entre operadoras e hospitais permanecem pouco interoperáveis. A ausência de métricas confiáveis e a falta de confiança entre os agentes bloqueiam os avanços.
Na prática, os gestores ainda se movem entre dois modelos. De um lado, a remuneração por volume, previsível, mas limitada em eficiência. De outro, o pagamento por valor, mais promissor, porém complexo de implementar. Avançar nessa transição requer maturidade organizacional: compreender custos com precisão, medir resultados com consistência e desenvolver lideranças e equipes capazes de aperfeiçoar processos e reduzir variabilidade.
É relevante ressaltar que o funcionamento efetivo do pagamento por valor está relacionado à necessidade de reorganizar os fluxos de cuidado, no sentido de se criar centros focados em determinadas áreas e especialidades, gerando uma combinação de maior escala, fluxo e valor. Do contrário, pode ocorrer uma grande ociosidade no sistema que não será remunerada e um custo fixo muito alto.
A gestão lean oferece essa base. Ao criar visibilidade sobre o trabalho, conectar resultados clínicos e econômicos, eliminando desperdícios, o lean estabelece as condições para uma remuneração centrada em valor real. Sem essa sustentação gerencial, qualquer novo modelo permanece frágil. Quando o sistema aprende a medir o que importa e a agir sobre as causas, a mudança de modelo deixa de ser discurso e se torna consequência.
Nesse contexto, é importante entender o desafio de estabelecer “famílias de produtos” como especialidades e redistribuir as operações, desenvolvendo hospitais especializados e focados na regionalização. Ainda assim, centros de alta complexidade inviáveis do ponto de vista econômico deverão continuar a existir, pois muitos deles são necessários ou mesmo indispensáveis por conta das distâncias para acesso e a urgência em se realizar certos procedimentos.
Qualidade e segurança: o verdadeiro núcleo da produtividade
Produtividade em saúde não é reduzir custos, mas aumentar valor. Valor significa oferecer cuidado seguro, efetivo e acessível, com uso racional de recursos e tempo. A busca por eficiência deve caminhar junto com a busca por qualidade e segurança, pois ambas dependem das mesmas condições: processos confiáveis, decisões baseadas em evidência, além de profissionais capacitados para resolver problemas na origem.
Estudos apontam que falhas de processos, retrabalhos e incidentes evitáveis respondem por até um quarto dos custos hospitalares. No cotidiano, isso se traduz em internações prolongadas, exames repetidos e erros de medicações – sintomas de sistemas instáveis. Cada falha consome recursos, tempo e confiança.
O pensamento lean ajuda a enfrentar essas causas de forma prática. Ele ensina a enxergar o cuidado como um fluxo contínuo que atravessa fronteiras funcionais e profissionais. Ao reduzir variabilidade e tornar problemas visíveis, o hospital ganha previsibilidade. E previsibilidade é o alicerce da segurança.
Segurança do paciente não é programa ou selo, é resultado. Surge quando o trabalho é bem desenhado, quando as pessoas entendem o propósito do que fazem, e quando cada incidente é tratado como oportunidade de aprendizado. Isso requer liderança próxima, times estáveis e método disciplinado de melhoria.
Quando qualidade e segurança se tornam o centro da produtividade, forma-se um ciclo virtuoso: menos falhas, menor custo, maior moral das equipes e melhor cuidado. A prática lean não trata esses elementos como metas separadas, mas como partes de um mesmo sistema. Produtividade só é sustentável quando qualidade e segurança também o são.
A gestão lean como base da sustentabilidade
A gestão lean é um sistema de aprendizado contínuo que alinha propósito, processos e pessoas em torno do valor para o paciente. Sua força está em transformar problemas complexos em oportunidades estruturadas de melhoria. Tudo começa pela direção certa: é preciso entender qual problema se busca resolver e por quê. Quando o propósito é claro, o esforço coletivo se orienta para o essencial.
O foco está no trabalho real. Melhorar produtividade significa eliminar barreiras que impedem o valor de fluir: esperas, retrabalhos, duplicações e decisões sem base em dados. Processos estáveis reduzem variabilidade, previnem falhas e fortalecem a segurança. Nenhum processo evolui sem o desenvolvimento das pessoas. A prática lean forma profissionais e líderes capazes de observar, testar e aprender. O aprendizado deixa de ser evento e se torna modo de operar.
Um bom sistema de gestão conecta esse aprendizado ao propósito institucional. Reuniões curtas, gestão visual e ciclos de reflexão tornam os problemas visíveis e resolvíveis. A governança passa a ser instrumento de aprendizado, não de controle. Quando esse modelo amadurece, surge uma cultura de colaboração e curiosidade intelectual. Produtividade deixa de ser resposta à pressão e se torna consequência natural de organizações que aprendem e mantêm o foco no que importa: o valor para o paciente.
Liderança e aprendizado contínuo
A liderança é o elo que transforma princípios em prática. Líderes lean não controlam, ensinam. Criam condições para que as equipes pensem cientificamente sobre o trabalho e resolvam problemas na origem. O papel do líder é desenvolver a capacidade das pessoas para melhorar o sistema. Ele não dá respostas, faz perguntas que estimulam raciocínio e reflexão. Cada problema é tratado como oportunidade de aprendizado, não como falha a punir.
Essa liderança se expressa pela presença. Estar no gemba, observar o trabalho real, compreender o contexto e apoiar as equipes fazem parte da rotina diária. Ao alinhar propósito e operação, o líder transforma a gestão em aprendizado coletivo. Quando a liderança é exercida com método e exemplo, o aprendizado se torna sistêmico. Cada equipe ganha autonomia para identificar causas, testar soluções e compartilhar conhecimento. A cultura de melhoria contínua se enraíza, sustentando qualidade, segurança e produtividade como partes do mesmo compromisso com o paciente.
A liderança lean não é um cargo, é uma competência organizacional. É ela que mantém a coerência entre propósito e execução, assegurando que cada decisão avance na direção certa: gerar valor real para o paciente.
Afinando a orquestra da saúde
Produtividade, qualidade e segurança são dimensões de um mesmo sistema. Quando se fortalecem mutuamente, formam a base de um modelo de saúde capaz de sustentar valor, confiança e propósito ao longo do tempo. Mais do que um método de melhoria, a gestão lean representa uma forma de pensar e praticar gestão. Ela permite enxergar o sistema de saúde como um fluxo integrado de criação de valor, em que cada decisão, processo e profissional contribui para o mesmo objetivo: cuidar com eficiência, segurança e respeito.
O futuro da saúde será determinado menos pela tecnologia e mais pela maturidade com que as instituições aprendem e aprimoram o próprio trabalho. Organizações que unem pensamento e prática lean constroem resiliência, melhoram resultados clínicos e consolidam uma cultura em que aprender e cuidar são dimensões do mesmo ato. Em última instância, o lean é uma prática de lucidez diante da complexidade. Ele ajuda a alinhar esforços, eliminar ruídos e manter a clareza necessária para que o cuidado continue sendo, ao mesmo tempo, o propósito e o resultado de todo o trabalho.