SAÚDE

Uma UTI “de Amor”... e de Lean!

Uma UTI “de Amor”... e de Lean!
Como conceitos e práticas do sistema lean estão enfrentando e revertando aumentos de infecções hospitalares, afastamentos e transferências de profissionais, além de outras adversidades, nas unidades de terapia intensiva do Hospital de Amor (HA), de Barretos (SP)
Por Samir Khatib, médico coordenador das Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Amor (HA)

Planejar, estruturar e executar uma gestão eficiente do trabalho é um elemento cada dia mais crucial nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) dos grandes hospitais. Isso interfere diretamente na segurança dos pacientes, na qualidade do cuidado, no bem-estar da equipe e nos custos operacionais. 

Nesse contexto, o Hospital de Amor (HA), mais conhecido como Hospital de Câncer de Barretos, do interior de São Paulo, implementou recentemente conceitos e práticas do sistema lean para promover melhorias significativas na gestão do trabalho nas UTIs da instituição. A ação lean foi realizada para reverter problemas ocasionados por uma recente recormulação nas equipes de trabalho. 

O HA tem atualmente duas UTIs, cada uma com 10 leitos. A estrutura conta com uma equipe de cinco técnicos e até dois enfermeiros por UTI. Recentemente, com o objetivo de reduzir custos, as escalas de trabalho nesse setor foram modificadas para turnos de oito horas. Anteriormente, eram entre 6 e 12 horas. Os intervalos também foram mudados. Agora, eles têm duração de uma hora; antes, eram de 15 minutos. 

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Parte equipe da UTI do HA com o doutor Samir Khatib (de avental branco) comemorando os resultados da adoção lean

Essa nova realidade colocou a UTI em um novo patamar no qual, em cada turno de 8 horas, a estrutura de assistência se encontrava, por vezes, insuficiente para o atendimento, com um déficit de mão de obra de até 62%, com relação à capacidade ideal, comprometendo a continuidade e a eficácia dos cuidados prestados. 

Isso tem gerado uma série de desafios: aumentos dos custos operacionais, diminuições na qualidade do atendimento, uma maior incidência de eventos adversos, aumentos das infecções relacionadas à assistência (IRAS), além de insatisfação generalizada da equipe, incluindo um aumento de afastamentos do trabalho, por meio de atestados médicos, por conta de problemas de saúde dos profissionais. 

Nesse contexto, a implementação do sistema lean teve como propósito entender esses problemas, investigar as causas raízes e propor contramedidas, com base nos conceitos e práticas lean. Com isso, os objetivos e metas estabelecidos foram melhorar a estabilidade dos processos assistenciais e a satisfação da equipe, reduzindo em 30% as notificações de IRAS e em 50% os afastamentos do trabalho por meio de atestados.

 

Investigação dos contextos, problemas e causas raízes 

A análise da “situação atual”, uma das bases do sistema lean, evidenciou um cenário multifacetado, no qual o reajuste da jornada impactou diretamente os resultados operacionais. As UTIs do HA tiveram, em 2024, uma taxa de ocupação próxima de 90%. E a classificação dos pacientes, quanto à categoria de gravidade, foi dividida em baixa (25,23%), intermediária (25,43%), elevada (20,79%) e muito elevada (28,54%). Nesse contexto, tornou-se importante aprofundar o conhecimento sobre as atividades dos técnicos de enfermagem na UTI. 

O primeiro passo foi ir ao gemba e para aplicar uma “Folha de Estudo de Processos”. Nela, identificou-se a variação de tempo gasto para realizar cada atividade, o grau de complexidade e se a atividade era corriqueira ou ocasional. Assim, comprovou-se que o tempo e a complexidade das atividades exigem atenção, disciplina e experiência, características indispensáveis para garantir a continuidade e a segurança no processo.  

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Após identificar os processos e o tempo gasto por cada profissional, foi realizada uma análise do “fluxo de espaguete” – fruto da técnica também conhecida como “Diagrama de Espaguete”, que é, em resumo, uma representação gráfica que mapeia o fluxo de movimento de pessoas, processos, informações e produtos – que evidenciou um desafio operacional crítico na UTI, especialmente durante os períodos de descanso dos técnicos de enfermagem. Quando um dos técnicos sai para sua pausa, os demais precisam assumir, de forma imediata, a cobertura dos pacientes a ele designados. Essa redistribuição acarreta um intenso deslocamento interno, impactando diretamente tanto a dinâmica de trabalho quanto a segurança assistencial. 

Em termos práticos, foram identificados dois momentos críticos ao longo do dia. Durante um período de duas horas, a UTI opera com apenas três técnicos para atender 10 pacientes, o que corresponde a 60% da capacidade operacional ideal. Essa redução brusca não apenas evidencia um déficit na cobertura, mas também aumenta a sobrecarga dos profissionais remanescentes, que precisam se deslocar constantemente para garantir o atendimento aos pacientes, aumentando a probabilidade de atrasos e falhas no processo assistencial. No mesmo turno de 8 horas, outro momento em que a situação é um pouco menos crítica ocorre durante um período de 1 hora, em que a equipe conta com 4 técnicos, reduzindo a capacidade de atendimento para 80%. 

Vale lembrar que, mesmo no cenário anterior, com turnos de 6 e 12 horas e com 5 técnicos e 2 enfermeiros para cada 10 leitos de UTI, isso ainda estava aquém do ideal para uma UTI, que lida com alta complexidade, expondo a equipe a riscos persistentes e aumentando a pressão sobre os profissionais. 

Essa complexidade pode ser avaliada pelo NAS (Nursing Activities Score), que mede a carga de trabalho da enfermagem. Nos anos de 2022 e 2024, nossos NAS foram de 95% e 89%, respectivamente, corroborando com a alta complexidade (entre 80 e 100%). 

Esse deslocamento frequente dos técnicos para cobrir as ausências temporárias impacta diretamente a eficiência e a qualidade do atendimento. O tempo gasto nos deslocamentos, a necessidade de adaptação rápida a diferentes demandas e a sobrecarga física e mental comprometem a capacidade de resposta do setor. Além disso, a rotação forçada pode gerar uma quebra na continuidade dos cuidados, prejudicando a comunicação entre os profissionais e, consequentemente, a segurança dos pacientes. 

Com base na análise dos oito meses anteriores (de janeiro a agosto de 2022) e dos sete meses posteriores (de setembro de 2022 a março de 2023), com relação à mudança na jornada de trabalho, um cenário contundente reflete o impacto dessa alteração nos indicadores operacionais e na percepção dos colaboradores (por meio dos resultados da pesquisa de clima). 

O banco de dados trabalhistas, por exemplo, evidenciou um aumento de 600% na emissão de atestados, quando se compara a jornada de seis horas com a de oito horas. Segundo Almeida & Rodrigues (2013), o custo médio do absenteísmo varia de 2% a 6% da folha de pagamento. Projetando para o ano de 2022, os custos associados aos atestados passaram de R$ 54.202,43 para R$ 325.214,58. Esse salto expressivo indica não apenas um acréscimo no índice de absenteísmo, mas também um impacto financeiro significativo para a instituição. 

Outro dado relevante mostrou um aumento de 380% nas solicitações de transferência de profissionais da UTI para outros setores. Esse elevado turnover afeta a estabilidade da equipe e gera um efeito cascata: o trabalho extenuante leva à busca por migração, resultando na entrada de funcionários inexperientes, o que, por sua vez, sobrecarrega ainda mais os profissionais mais experientes. 

Um terceiro ponto preocupante foi um aumento de 450% nas notificações de “Near Miss”. Em hospitais, essa expressão, também chamada de "Evento Quase Adverso" ou "Quase Erro") refere-se a um incidente que não causou dano ao paciente porque foi detectado e corrigido antes de atingi-lo, sinalizando uma falha no processo que poderia ter causado um evento adverso. A notificação e análise desses incidentes são cruciais para identificar riscos, implementar melhorias nos processos e, assim, prevenir futuros danos e acidentes. 

Trata-se de um indicador crítico, pois reflete uma maior incidência de possíveis falhas e implica um custo médio por evento significativo. Com base no estudo de Zhan e outros autores, um único evento adverso pode custar, em média, US$ 8.750,00. Projetando para esse aumento de 450%, chega-se a um valor expressivo de US$ 39.375,00 ou aproximadamente R$ 220.500,00, conforme a cotação utilizada. 

Uma análise sobre o ano de 2022 até um ano após a alteração de jornada evidenciou dados preocupantes: aumentos de 320% na densidade anual de incidência de Infecção do Trato Urinário (ITU), de 54% na Infecção Primária de Corrente Sanguínea (IPCS) e 61% Pneumonia Associada à Ventilação (PAV). Essa elevação indica que falhas na implementação e na execução de protocolos de prevenção estão impactando diversas frentes assistenciais. 

Os aumentos expressivos nos afastamentos e solicitações de transferência de profissionais e nas notificações de “near miss” indicam que a alteração na carga horária afetou não apenas a eficiência e a segurança operacional, mas também o clima organizacional. Esses resultados apontam para uma sobrecarga dos profissionais e para a deterioração das condições de trabalho, o que pode comprometer, a longo prazo, tanto a qualidade do atendimento quanto a sustentabilidade financeira da UTI.

 

Contramedidas lean implementadas 

A primeira medida adotada foi elaborar um mapa da situação desejada. Para isso, foi indispensável para mapear, no gemba, os pontos críticos e construir um plano de ação consistente e realista, abrangendo diferentes estratégias. 

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Nesse contexto, a primeira contramedida pensada foi a reestruturação dos Turnos e Contratação. A proposta previu alternar turnos de 6 horas ao dia e 12 horas à noite, com o objetivo de reduzir os índices de sobrecarga. Esse planejamento previu a contratação de novos profissionais: estimou-se a necessidade de 15 técnicos e 4 enfermeiros para equilibrar a demanda e melhorar a qualidade do atendimento. 

Também começou a ser implementada a Gestão Visual, visando a modernização dos processos manuais, como o preenchimento de sinais vitais e o controle de entrada e saída de medicações. O objetivo foi reduzir a sobrecarga de trabalho e os erros decorrentes da perda de informações. Ferramentas de gestão visual para monitoramento de inventários e fluxos como o rastreamento de dias de internação e dispositivos invasivos permitirão ações corretivas rápidas e eficazes.

 

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Exemplo de gestão visual na UIT do HA

Foram programados ainda os rounds de segurança ou safety huddle, reuniões rápidas e estruturadas, realizada, preferencialmente no início do plantão vespertino, onde enfermeiro, fisioterapeuta, médico e nutricionista se reúnem para discutir os pontos críticos do dia, revisar os indicadores de segurança e identificar antecipadamente potenciais riscos. Com isso esperamos reduzir notificações e falhas assistenciais. 

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Investir em treinamentos regulares e na realização de reuniões diárias também foi essencial para conscientizar sobre boas práticas assistenciais e prevenção de eventos adversos. Essa abordagem busca criar um ambiente de aprendizado contínuo, aumentando a adesão aos protocolos e reduzindo a incidência de erros, com foco na qualidade assistencial ao paciente e na segurança dos profissionais. 

Um dos treinamentos desenvolvido foi a formação do “Time de Resposta Rápida para UTI”. Trata-se de uma equipe multiprofissional treinada para reconhecer sinais precoces de deterioração do paciente e tomar medidas imediats para a estabilização. 

Diante do aumento nas IRAs, foi implementado, em janeiro de 2025, um projeto voltado para a capacitação e conscientização da equipe multidisciplinar em relação à Pneumonia Associada à Ventilação Mecânica (PAV). O projeto conta com a participação ativa de técnicos de enfermagem, médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, odontólogos e a equipe da SCIH, reforçando a abordagem integrada na promoção da segurança do paciente. Na fase inicial, o foco foi na conscientização sobre a PAV, destacando riscos e impactos na qualidade assistencial. Em segunda instancia, com apresentações estruturadas para toda a equipe, uma vez por trimestre, na reunião nomeada “Café sem PAV”, que abordou a estratégia de prevenção baseadas em evidências, promovendo adesão ao bundle de PAV. 

As sessões educacionais foram desenhadas para treinar e e desenvolver um diálogo aberto, além de estimular a reflexão e o compromisso dos profissionais, garantindo a implementação efetiva das medidas preventivas na rotina hospitalar, deixando os a par de toda a evolução dos indicadores. Além do treinamento, foram cards que são aplicados aos pacientes em ventilação mecânica maior que 24h. 

Também se mostrou fundamental promover o monitoramento de indicadores de qualidade e satisfação. E acompanhar de perto os resultados, antes e depois das intervenções. Reuniões mensais e relatórios trimestrais permitirão identificar desvios e realizar ajustes ágeis, garantindo a evolução contínua dos processos e a transparência com toda a equipe.

 

Resultados das ações lean 

Densidade de incidência das IRAs: a tendência da taxa de densidade de incidência de PAV tem se mostrado crescente nos últimos anos. Em 2024, essa taxa atingiu 9,1, evidenciando um desafio significativo na prática assistencial. No entanto, a implantação do treinamento focado na adesão ao bundle de PAV e a ampliação das ações de conscientização sobre as IRAs, implementadas no início de 2025, promoveram uma mudança expressiva. Após essas intervenções, a taxa de incidência reduziu para 6,9, uma diminuição de 32,3%. 

Atestados e turnover: com relação aos afastamentos por atestados, em 2023 foram registrados 168 atestados. Em 2024, houve uma expressiva redução, com o índice passando para 36,7, o que representa uma melhora significativa de aproximadamente 78%. E nos turnovers, em 2023, após a alteração do turno, foram registradas 38 solicitações de transferências, demonstrando um impacto significativo no comportamento dos funcionários. Em 2024, a taxa anual registrou uma média de 31 solicitações, indicando uma redução de aproximadamente 18,4% em relação à elevação observada logo após a mudança. Essa diminuição possivelmente reflete as expectativas dos colaboradores quanto à proposta de retorno ao regime antigo, conforme apontado pelas informações coletadas junto à equipe. 

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Taxa de mortalidade padronizada (TMP): a fim de aprofundar a análise da qualidade assistencial, foi realizada uma avaliação da taxa de mortalidade padronizada, definida como a relação entre a mortalidade observada e a mortalidade esperada, segundo o SAPS 3. Em 2024, essa taxa foi de 1,11, o que indica que a mortalidade observada ficou 11% acima do valor esperado. Com as iniciativas de aprimoramento implementadas, o período de janeiro a abril de 2025 registrou uma TMP de 0,85, representando uma redução aproximada de 23,4%.

 

Resultados iniciais e promissores 

Os resultados alcançados como a redução de 32,3% na densidade de incidência das IRAs, a expressiva diminuição de 78% no número de atestados, a queda de 18,4% nas solicitações de transferências e a redução de 23,4% na taxa de mortalidade padronizada refletem avanços significativos nas práticas assistenciais e na segurança na assistência na UTI. 

Esses ganhos demonstram a importância de abordagens sistemáticas e integradas de melhoria contínua, como as defendidas pelo lean. Ao atuar diretamente na eliminação de desperdícios, no fortalecimento do trabalho em equipe e no foco constante na qualidade e segurança dos processos assistenciais, o lean oferece um caminho estruturado para transformar desafios críticos em oportunidades de crescimento sustentável. Dessa forma, consolida-se uma cultura de excelência operacional, respeito às pessoas e, sobretudo, segurança para pacientes e profissionais. 

Essa implementação lean é ainda mais importante porque o HA é uma instituição filantrópica, mantida pela Fundação Pio XII. Ele foi fundado na década de 1960, no coração da cidade de Barretos (SP). Naquela época, a população da região enfrentava enormes desafios para acessar tratamentos médicos na capital. E o hospital, que inicialmente funcionava como um centro generalista, logo percebeu a necessidade de oferecer um atendimento especializado para atender à crescente demanda por tratamentos oncológicos. 

Em homenagem à identificação afetiva construída ao longo de sua trajetória e à filosofia de cuidado que valoriza não apenas a excelência técnica, mas também o trato humano com cada paciente, o sistema lean felizmente poderá, cada vez mais, explorar e sanar os possíveis gargalos que possam limitar a capacidade do hospital, aperfeiçoando a segurança, o cuidado e os profissionais deste que é um dos mais importantes espaços de saúde do Brasil.

Fonte: Lean Institute Brasil
Publicado em 15/12/2025

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