CULTURA E LIDERANÇA

As três faces do lean

Jeffrey K. Liker
As três faces do lean
Neste texto, Jeffrey Liker faz um apelo à comunidade lean: é hora de ir além das ferramentas e dos modelos prontos. Transformações duradouras exigem a integração das dimensões técnica, social e científica, simultaneamente ao desenvolvimento das pessoas.

A Máquina que Mudou o Mundo inaugurou uma nova era ao afirmar que a “produção lean” era o futuro — e que as empresas precisavam se comprometer com ela ou seriam eliminadas por concorrentes que o fizessem. Depois, aprendemos que, por trás dos sistemas de produção lean, havia uma forma de pensar — o lean thinking — que precisava ser adotada por todos os executivos e gestores. E o modelo de produção lean não era das montadoras japonesas em geral, mas sim da Toyota, tendo origem no Sistema Toyota de Produção (TPS). 

Desde então, a Toyota continuou praticando e refinando o TPS, e, fora da Toyota, houve uma explosão de livros sobre lean, treinamentos, certificações e programas lean em praticamente todos os setores — empresas privadas, governos, organizações sem fins lucrativos e ONGs. Tendo ocupado uma posição privilegiada como participante e observador de transformações lean, pude perceber três abordagens gerais, que muitas vezes são adotadas isoladamente. Defendo que essas três faces do lean, quando combinadas, são muito mais poderosas do que qualquer uma delas individualmente. 

  1. Lean como soluções técnicas A forma mais simples de entender o lean é como um sistema técnico cujo objetivo é fazer fluir um valor específico para cada cliente, eliminando desperdícios. 

A visão é como a de um rio, sem represas ou rochas que interrompam o fluxo e causem estagnação. O mapeamento de fluxo de valor (MFV) tornou-se a ferramenta preferida para visualizar o fluxo atual com todos os seus desperdícios indesejáveis. Os usuários mais experientes, então, definem um mapa do estado futuro lean. O passo seguinte é criar um plano de ação com o quê, quando e quem. Depois, implementam-se todas as contramedidas lean do estado futuro e, voilà: você terá um sistema lean que entrega valor ao cliente com mais fluidez, alta qualidade, baixo custo e tempos de resposta rápidos. 

(Importante observar que o MFV chamado na Toyota de diagrama de fluxo de materiais e informações, foi criado com o propósito de mostrar apenas os fluxos técnicos de materiais e informações — e isso de forma bastante macro, a 10 mil pés de altura. Não há absolutamente nenhum sistema humano representado. E, na visão da Toyota, o mapa do estado futuro é uma visão geral do que se deseja alcançar — não um conjunto de ferramentas a ser implementado.) 

Em outros casos, organizações implementam ferramentas lean como soluções isoladas. "Não temos trabalho padronizado, que faz parte de um sistema lean, então vamos escrever o trabalho padronizado e fixar uma folha para cada processo, depois auditar os operadores para garantir que sigam os passos."

"A Toyota não programa a produção, ela puxa usando kanban, então vamos substituir a nossa programação por sistemas puxados." E assim por diante. 

O objetivo passa a ser transformar processos o mais rápido possível, com ações conduzidas principalmente por especialistas em lean e pela área de gestão da mudança. Muitas vezes, esse processo é chamado de “conversão lean”, com a expectativa de que, em poucas semanas ou alguns meses, a empresa passe de “não lean” para “lean”. Esse caminho é comum entre os que usam eventos kaizen como a principal abordagem de transformação ou que impulsionam o lean por meio de black belts em lean six sigma

Se você perguntar a alguém da Toyota, bem familiarizado com o TPS, o que mais os preocupa no movimento lean, a resposta será quase unânime: muitas pessoas acham que se trata apenas de ferramentas. Na Toyota, eles levam a sério o fato de que o TPS é um sistema — e que inclui tanto os aspectos técnicos quanto os sociais, trabalhando em conjunto em direção a objetivos claros: o propósito. De alguma forma, isso parece ter se perdido na obsessão por implementar ferramentas o mais rápido possível. 

O TPS é um sistema que inclui tanto os aspectos técnicos quanto os sociais, trabalhando em conjunto em direção a objetivos claros — o propósito. 

Isso não quer dizer que transformar um fluxo de valor com base em mapeamento de fluxo de valor ou introduzir ferramentas lean como o trabalho padronizado seja uma perda de tempo. Criar processos conectados é uma intervenção poderosa e pode gerar inúmeros benefícios. Existe uma arte no desenvolvimento de soluções lean, e eu já me maravilhei com a criatividade dos verdadeiros mestres do TPS — embora a maioria de nós, meros mortais, não possua o mesmo nível de expertise

Implantar ferramentas lean é algo relativamente rápido e eficiente, e, como seres humanos, gostamos de ver resultados rápidos para nossos esforços. No entanto, muitos de nós já vivenciamos a deterioração desses sistemas após a saída dos especialistas, quando eles seguem para outros projetos. 

  1. Lean como soluções sociaisUma outra forma popular de entender o lean é como algo totalmente centrado nas pessoas. 

Existem diversos livros — incluindo os meus — que descrevem os sistemas de gestão de pessoas da Toyota, especialmente no chão de fábrica. Os mais visíveis são as reuniões de gerenciamento diário, em que os membros da equipe se reúnem em um círculo (huddle) para discutir o que aconteceu no dia anterior, o que esperar do dia atual e como melhorar os processos. Eles se reúnem em torno de quadros visuais bem projetados, com indicadores-chave (KPIs) e sinalizações de status em verde, amarelo e vermelho. O foco deve estar no vermelho. 

Você pode fazer isso. Mas há outro ingrediente essencial: as pessoas que conduzem essas reuniões. A Toyota as chama de “líderes de equipe” (team leaders) — operadores de produção que foram treinados em habilidades de liderança e nos fundamentos do TPS — e “líderes de grupo” (group leaders), que são a primeira linha de supervisão. Isso é um pouco mais desafiador do que apenas instalar quadros e agendar reuniões. É necessário envolver o setor de Recursos Humanos e, se houver, o sindicato, na criação formal desses cargos. Como você já possui supervisores, pode treiná-los em lean e solução de problemas, criando assim um programa de green belt. Mais adiante, pode-se adicionar o papel do líder de equipe. 

Ao perceber os benefícios das reuniões de gerenciamento diário, você então estuda o desdobramento da estratégia (policy deployment) e implementa reuniões escalonadas por nível (tiered meetings) em toda a organização, para que haja metas alinhadas e acompanhamento do progresso em relação a essas metas. Esses especialistas em TPS podem dormir tranquilos à noite, sabendo que você foi além das ferramentas. 

O que você fez foi intervir no sistema social, mas, de certo modo, isso é semelhante à abordagem de soluções técnicas. Você copiou estruturas e atividades sociais e presumiu que poderia implementar essas soluções de forma padronizada, como se fosse uma receita pronta. Geralmente, há pouco treinamento envolvido e parte-se do pressuposto de que a implantação em massa de reuniões, quadros visuais, obeyas e metas em cascata terá, por si só, algum poder — sem que se desenvolva, de fato, uma capacidade profunda nos líderes. 

Sem desenvolver a liderança, podemos até ter os cargos definidos no organograma e pessoas ocupando essas posições — mas, na prática, não temos de fato os papéis de liderança sendo exercidos. 

Ainda mais do que nas soluções técnicas, a qualidade dessas intervenções tende a ser baixa na maioria dos grupos e, rapidamente, o nível de interesse se dissipa, transformando tudo em rituais vazios. Existe, de fato, um conjunto de habilidades importantes nos líderes da Toyota — inclusive no papel de líder de equipe — e a Toyota é obcecada por treinamento e desenvolvimento. 

Sem desenvolver a liderança, podemos até ter os cargos definidos no organograma e pessoas ocupando essas posições — mas, na prática, não temos de fato os papéis de liderança sendo exercidos. 

  1. Mentalidade leanUma terceira forma de entender o lean é como uma maneira de pensar. 

Tive o prazer de entrevistar diversos alunos diretos de Taiichi Ohno, considerado por muitos o pai do Sistema Toyota de Produção (TPS). Receber a tarefa de aprender com o mestre era uma experiência intimidadora. O que ele ensinaria primeiro? Sobre células, kanban, andon? Ohno não fazia nada disso. Ele desenhava um círculo no chão e ordenava que o aprendiz ficasse ali parado, observando. Voltava de tempos em tempos e perguntava o que a pessoa via. Quando o aprendiz se esforçava para descrever o que estava acontecendo, Ohno parecia irritado e mandava continuar observando. Perguntei a um de seus alunos como terminava esse treinamento, e ele respondeu que, ao fim do dia, Ohno dizia: “Você parece cansado. Vá para casa.” Os melhores alunos não precisavam voltar no dia seguinte. 

O que Ohno e seus discípulos faziam era colocar o aprendiz em uma posição de aprendizado por meio da prática. Eles estavam ensinando uma forma de pensar — aquilo que foi descrito no primeiro manual do TPS como “pensamento científico”. Passo um: aprender a observar profundamente no gemba. Quando achar que já entendeu tudo, observe mais um pouco. Há sempre uma nova camada da realidade a ser percebida. Esse é apenas o primeiro passo — uma entre muitas habilidades exigidas para ser um líder eficaz na Toyota. Como em qualquer habilidade complexa, aprendemos dividindo-a em partes menores e praticando cada sub-habilidade repetidamente, com feedback corretivo, até dominá-la — e então passamos à próxima micro-habilidade. Nas artes marciais japonesas, cada uma dessas habilidades é chamada de kata. E você começa executando exatamente como o mestre instrui. 

Hajime Ohba foi um dos melhores alunos de Ohno. Ele foi enviado aos Estados Unidos para ensinar o TPS, e fez isso criando o que hoje é chamado de Toyota Production System Support Center (TSSC). Recusava-se a ensinar em sala de aula. Em vez disso, reunia-se com a equipe executiva para definir a visão e um grande desafio, e juntos escolhiam uma “linha modelo” — uma área dentro de uma planta industrial para ser usada como laboratório de aprendizado. 

Ohba também ensinava os membros da Toyota designados ao TSSC, que ajudavam nos projetos de consultoria. Ele os treinava na técnica do diagrama de fluxo de materiais e informações, mas não permitia que mostrassem os diagramas aos clientes. Queria que os clientes aprendessem fazendo — começando com o desafio, identificando o próximo problema e aprendendo por meio de ciclos rápidos e repetidos de PDCA até construírem um sistema que atendesse aos seus próprios objetivos. Ele estava ensinando uma forma de pensar, não um método de desenhar diagramas. 

Mike Rother incorporou o conceito de kata e criou o que chama de “improvement kata” (kata de melhoria) e “coaching kata” (kata de desenvolvimento de pessoas). Desenvolveu um modelo de quatro passos para melhoria contínua: 

  1. Definir o desafio de longo prazo,
  2. Compreender a condição atual,
  3. Definir a próxima condição-alvo de curto prazo,
  4. Experimentar até alcançar essa condição.

 

Depois, refletir e repetir — continuamente — no caminho rumo ao desafio maior. Ele chama isso de um modelo prático de pensamento científico cotidiano. 

A ideia central do kata é praticá-lo, não implementá-lo como uma solução pronta, com o objetivo de desenvolver habilidades e mentalidade. No entanto, é comum ver pessoas tentando adotar os katas como se fossem apenas mais um método de solução de problemas, algo a ser implementado como uma “solução lean” e adicionado ao kit de ferramentas para uma implantação em massa. Isso contraria totalmente a proposta do kata, que é aprender uma forma de pensar por meio de prática deliberada e de longo prazo. 

Não surpreendentemente, esse processo de quatro etapas se parece muito com o que os treinadores da Toyota fazem. Eles treinam líderes no gemba, em projetos reais, sempre começando com um grande desafio aparentemente avassalador. Sugerem que o aluno observe o processo e, então, escolha algo menor para trabalhar primeiro. Incentivam o aluno a testar suas ideias rapidamente e de forma econômica — e assim, aprender rápido, mesmo que isso signifique falhar rápido. São incansáveis e empurram o aluno para um nível de foco e persistência que ele nem sabia que era capaz de alcançar. 

Rother observou esses mestres da Toyota em ação e criou o Toyota Kata para simular seu processo de ensino. Se você visitar uma fábrica da Toyota e olhar abaixo da superfície, encontrará uma obsessão com o desenvolvimento do pensamento científico — ou, como a Toyota chama, solução de problemas — em todos os níveis. Cada gestor é, ao mesmo tempo, aluno e mentor, e o treinamento acontece todos os dias, no gemba. 

Juntando tudo 

A essa altura, deve estar claro que as três faces do lean não são mutuamente excludentes. Existe, sim, um corpo de conhecimento formado por ferramentas poderosas e estruturas sociais relevantes. Mas copiá-las exatamente como são perde o sentido. Elas são ideias, conceitos, princípios — pontos de partida para reflexão. Podem ajudar você a desenvolver uma visão de estado futuro. 

Mas, no fim das contas, você está tentando liderar uma mudança positiva dentro do seu contexto específico, com desafios e obstáculos próprios para atingir as metas que você definiu — idealmente de forma estratégica. Mesmo que você tivesse uma visão de estado futuro idêntica à da Toyota, seu ponto de partida seria diferente, assim como os obstáculos. E, na prática, é provável que você esteja em um negócio diferente, com desafios empresariais distintos e sistemas técnicos próprios. 

Dei ao último capítulo da segunda edição de O Modelo Toyota o título: “Seja consciente e faça sua empresa evoluir.” Falo isso com total seriedade. O TPS evoluiu de forma contínua, ao longo de décadas — não como um programa de gestão da mudança planejado em uma sala de reuniões. Ele continua evoluindo até hoje. 

O que sustenta o TPS é uma forma de pensar: o pensamento científico. Esse modo de pensar é treinado exaustivamente — e com persistência — em cada líder. O pensamento científico pode acompanhar você em qualquer contexto e situação. Ele permite aplicar, talvez, o princípio mais sagrado do lean — e provavelmente a chave para um crescimento orgânico: o PDCA. 

Uma pergunta óbvia, diante da existência de múltiplas abordagens ao lean, é: Qual é a melhor forma de aplicar essas três faces do lean? Se você perguntar a um líder da Toyota bem treinado como aplicar o lean, com qual timing e em que sequência, é provável que a resposta seja: “Depende.” 

Se perguntar ao Mike Rother, ele diria para não encarar o processo como a implantação de soluções por meio de um método rígido, padronizado como receita de bolo, mas sim como um processo de aprendizado orientado cientificamente. 

Siga os passos do modelo do kata e suas rotinas de prática:

Qual é a sua visão? — não a dos gurus do lean ou da Toyota.

Qual é o seu estado atual?

Quais são os seus planos estratégicos?

Como transformar isso em desafios claros? 

E, então, comece a desenvolver líderes que pensem de forma mais científica, à medida que aprendem enquanto avançam em direção aos desafios. O que você está aprendendo? 

Isso é um processo evolutivo. É o caminho para criar uma organização que aprende. E, em certo sentido, é o oposto da implantação em massa de soluções padronizadas. 

É claro que existem princípios, ferramentas e estruturas sociais muito poderosas que a Toyota descobriu ao longo da sua trajetória. Estudá-las, considerá-las na construção da sua visão, integrá-las nas suas condições-alvo e até desenvolver sua própria visão de fluxo de valor para cada cliente é algo extremamente válido. 

Em certos momentos, talvez você queira ensinar conceitos lean. Mas eu prefiro o ensino “just-in-time”: ensine a ferramenta quando o aluno tiver necessidade dela. 

Não estou sugerindo que isso seja fácil. Nem estou dizendo que é algo provável de acontecer na maioria das organizações. Nesse sentido, a Toyota é mesmo especial. Há espaço para uma implantação “kamikaze”, voltada a ganhos rápidos de eficiência ou para resolver problemas de qualidade que ameacem paralisar a empresa. Também há aprendizados positivos que podem surgir a partir de huddles, metas em cascata e mapeamentos de fluxo de valor. Nada disso será em vão. Mas, em algum momento, é desejável dar o próximo passo — o lean thinking praticado de forma científica.

Publicado em 24/12/2024

Autor

Jeffrey K. Liker
Professor de Engenharia Industrial e de Operações na Universidade de Michigan, proprietário da Liker Lean Advisors, LLC, associado da Toyota Way Academy e do Lean Leadership Institute.

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