CONSTRUÇÃO

Desenvolvendo solucionadores de problemas para avançar na construção lean

Flávio Augusto Picchi, Rodrigo Calderon, Luca Martinello, August Casanovas e Mark Reich
Desenvolvendo solucionadores de problemas para avançar na construção lean
O setor de construção está cheio de desperdícios, mas o lean ainda não é amplamente adotado na indústria. Os autores mostram como o lean pode ajudar o setor, enfatizando a importância do desenvolvimento de capacidades de resolução de problemas.

Quando falamos de trabalho, é difícil negar a complexidade que as construtoras enfrentam no dia a dia. Em parte, isso é resultado da diversidade nos tipos de projetos que elas realizam (de infraestrutura, residencial, mineração etc.), mas também da dificuldade de coordenar e integrar o trabalho de diversos atores – incluindo proprietários, projetistas, fornecedores, contratados e subcontratados – em todo o processo, desde o planejamento até a entrega do produto e a pós-venda. O controle da qualidade está quase ausente, e projetos incompletos geralmente causam erros, atrasos, estouros de custo e retrabalho. Além de tudo isso, ainda costumamos ver falta de liderança em toda a cadeia de valor, condições estressantes de trabalho na linha de frente, relações adversas no sistema de contratação tradicional e uma tendência de não confiar que as pessoas (em todos os níveis) podem realmente resolver problemas. Com isso, podemos pensar que a construção não tem como ser salva.

Entretanto, essa indústria tradicional está evoluindo. Enquanto movimento, a industrialização da construção – inspirada em técnicas de manufatura – passou a existir depois da Segunda Guerra Mundial, quando a necessidade de reconstruir países inteiros pressionou o setor a entregar seus projetos mais rapidamente do que nunca. Nos últimos anos, vimos uma nova onda de industrialização, com técnicas externas inovadoras, como construção modular, racionalização de montagem no local de trabalho e avanços em tecnologias digitais (como BIM, Modelagem de Informação de Construção e um novo software de planejamento e gestão).

Nessa nova fase de evolução, a construção também vem apresentando um interesse maior pelo pensamento lean. Cada vez mais empresas estão percebendo que o lean pode trazer uma transformação profunda para a indústria, como já fez em quase todos os setores econômicos. Contudo, com apenas algumas exceções, as empresas de construção ainda tendem a perceber o lean como uma mera melhoria de processo. O que aconteceu com o lean na manufatura há 40 anos, quando as pessoas pensavam que o lean se limitava a kanban e um monte de outras ferramentas, está acontecendo hoje na construção. O pior é que o trabalho de melhoria geralmente ocorre de forma isolada – talvez em um único local de trabalho –, e mesmo quando leva a bons resultados, o fato de o resto da organização não ter exposição ao lean torna o progresso limitado e difícil de sustentar.

Na Rede Lean Global, nosso objetivo é ajudar as empresas a alcançar uma transformação lean sustentável, abordando as cinco dimensões do nosso Lean Transformation Framework (LTF): 1) propósito orientado ao valor, 2) melhoria de processos, 3) desenvolvimento de capacidades, 4) mudança de sistemas de gestão e comportamentos da liderança e 5) modelos mentais transformadores. Se olharmos para a construção sob a ótica do LTF, é possível perceber que grande parte dos trabalhos de melhoria nesse setor se limita à dimensão do processo. Mesmo dentro dessa dimensão, ele só foca na fase do planejamento. Na verdade, em uma indústria baseada em projetos como a construção, o planejamento é fundamental, o que torna o Last Planner System uma ferramenta valiosa para organizações interessadas em alcançar estabilidade básica. Mas há muito mais na construção lean do que apenas o Last Planner!

O LTF nos ensina que há muito a ser explorado aqui. Como se dá o desenvolvimento de pessoas na construção? As construtoras conseguem definir bem o valor para os clientes? Com que frequência os gerentes da construção vão ao gemba para ver o trabalho com seus próprios olhos, ouvir e apoiar as pessoas enquanto elas tentam resolver problemas? A equipe de gestão entende o fluxo de valor em detalhes, do início ao fim, e trabalha com a equipe no local para melhorá-lo como um todo?

No setor da construção, o lean ainda não é visto como um ativo estratégico que pode transformar toda a organização – e sua cultura – transformando os colaboradores da linha de frente em solucionadores de problemas autônomos para que mais valor possa ser fornecido ao cliente final. Acreditamos que já é hora disso mudar. Uma adoção mais ampla do pensamento lean como um sistema de gestão sociotécnico é fundamental para ajudar a indústria a superar seus problemas mais urgentes, como segurança, estouros de custo, baixa produtividade (de acordo com dados da OCDE, a produtividade na construção não mudou em 20 anos), problemas de qualidade e atrasos crônicos.

 

Desenvolvendo solucionadores de problemas na construção

Para resolver os problemas destacados acima, entretanto, precisamos concentrar nossos esforços principalmente no desenvolvimento das habilidades de solução de problemas de todos, desde altos executivos até encarregados, desde comerciantes até colaboradores em funções de apoio. Mas o que é necessário para criar um exército de solucionadores de problemas no setor da construção? Em nossa mente, isso exige que forneçamos às pessoas a capacidade de levantar problemas, as ferramentas e o conhecimento para resolvê-los e o suporte para que a solução de problemas faça parte de seu trabalho diário.

De maneira crítica, também precisamos ter certeza que as pessoas certas estão lidando com os problemas certos. Para isso, a estrutura em quatro tipos de problemas de Art Smalley é particularmente útil. Antes de nos aprofundarmos na solução de problemas, vamos ver como a estrutura pode ser aplicada à construção.

Em primeiro lugar, como pré-condição para que qualquer melhoria sustentável aconteça, precisamos criar estabilidade básica no processo. Isso pode ser alcançado corrigindo os problemas reativos do tipo 1 (contenção) e do tipo 2 (desvio do padrão) bem na linha de frente. Infelizmente, na construção, geralmente há poucos padrões no trabalho, o que torna difícil a solução de problemas. Como você pode resolver um desvio em relação ao padrão se não souber qual é o padrão? Antes que qualquer melhoria possa ser feita, portanto, é necessário estabelecer um padrão de trabalho claro.

Uma vez alcançada a estabilidade básica, a empresa pode começar a prestar atenção a questões estratégicas de mais alto nível que dizem respeito a todo o fluxo de valor – Tipo 3 (condição-alvo) e Tipo 4 (inovação). Para resolver esses problemas, é necessário que a gestão se envolva, juntamente com todas as funções de negócios – da cadeia de suprimentos ao projeto. Nesse estágio, uma organização pode começar a inovar regularmente. Ao atingir a estabilidade básica e estabelecer uma abordagem estruturada para a solução de problemas, o pensamento lean pode dar à inovação na construção um propósito claro.

Vamos agora examinar mais especificamente como podemos transformar nossos colaboradores em solucionadores de problemas qualificados e autônomos.

Para desenvolver habilidades de solução de problemas no gemba, primeiro precisamos tirar o medo do local de trabalho e substituí-lo por confiança. Isso pode causar uma grande mudança na mentalidade de uma organização e incentivar as pessoas a levantarem a mão sempre que ocorrer um problema. Para que isso aconteça, precisamos mudar comportamentos e construir um sistema no qual a gestão visual permita que os problemas sejam rastreados e que as pessoas em toda a empresa estejam cientes deles e saibam o que fazer com eles. Esse é um problema muito grande na construção devido à natureza da obra baseada em projetos, com diferentes empresas e equipes atuando em locais de trabalho diferentes. É por isso que uma implementação lean deve ser vista como uma transformação de toda a empresa, em vez de uma iniciativa que ocorre em um só local ou um só projeto.

Comunicar a todos o que deve ser feito, quem deve fazer e como isso deve ser feito é difícil em um canteiro de obras, onde milhares de pessoas podem trabalhar ao mesmo tempo e os prazos costumam ser curtos. O capataz normalmente toma as decisões sobre que trabalho fazer e quando, mas o foco normalmente está na produção, e não na produtividade. Com essa abordagem, assim que ocorre um problema, a solução normalmente é investir mais recursos (na forma de pessoas ou horas extras, por exemplo). Infelizmente, muitas vezes isso não é suficiente para evitar o comprometimento da segurança e da qualidade. Por outro lado, a padronização divide o trabalho em tarefas menores, define claramente as funções e responsabilidades e, mais importante, torna mais fácil reconhecer os desvios antes que eles se tornem problemas grandes demais para serem resolvidos.

Uma vez que os problemas são vistos como oportunidades de melhoria e um sistema é colocado em prática para identificá-los e resolvê-los de forma rápida e eficaz, é importante se concentrar em fornecer a todos que contribuem para a criação de valor as ferramentas de que precisam para se tornarem solucionadores de problemas. Quando falamos em coaching, as pessoas normalmente pensam em uma sala de aula, mas no mundo lean, o desenvolvimento de capacidades acontece no gemba, no trabalho. Simplificando, não há outra maneira de desenvolver solucionadores de problemas do que fazer com que eles resolvam os problemas!

Mas como podemos resolver problemas no processo sem mentores ajudando as pessoas? Como sempre, o papel da liderança aqui é absolutamente crítico, como mostram os exemplos a seguir.

Precisamos mostrar os comportamentos que queremos ver em nosso pessoal.

A Turner Construction Company (uma das maiores empresas de construção dos EUA e parceira de aprendizagem do Lean Enterprise Institute) está em uma jornada lean há seis anos, com um forte foco no desenvolvimento das habilidades de solução de problemas de seus líderes por meio do Programa Lean Leader (LLP) do LEI. Todos nós sabemos o quão importante é o coaching, mas se você quer que os líderes sejam coaches, eles precisam primeiro se tornar solucionadores de problemas (“precisamos mostrar os comportamentos que queremos ver em nosso pessoal”, disse recentemente um executivo sênior da Turner). Após várias “visitas de campo lean” no gemba, os líderes seniores perceberam que, para realmente engajar seu pessoal, eles precisavam garantir que o trabalho de melhoria fosse focado em seus problemas. Eles se comprometeram a compreender o trabalho pela perspectiva dos colaboradores e a tornar as coisas mais fáceis para eles. Essa atitude, alimentada por um uso extensivo do pensamento A3, tornou-se um poderoso catalisador da mudança na construtora com sede na América do Norte.

O pensamento A3 também foi uma ferramenta fundamental na Socovesa, uma construtora chilena que está em uma jornada lean há quatro anos. O Lean Institute Chile, afiliado da LGN, ajudou a Socovesa a compreender essa importante estrutura de solução de problemas. O primeiro passo foi estabilizar e padronizar o processo de planejamento para todos os projetos – não importando quão diferentes eles fossem. Isso ajudou a gerar uma linguagem comum e criar uma oportunidade de interação semanal. Os experimentos iniciais de solução de problemas, que se concentraram em um projeto específico com três equipes, levaram a resultados excepcionais. De acordo com o gerente de projetos, entretanto, o melhor resultado foi o fato de que os supervisores das áreas começaram a desenvolver as capacidades dos membros de suas equipes e que todos começaram a aprender como resolver problemas.

Uma abordagem semelhante está sendo seguida na Battistella Spa, uma pequena empresa de construção no norte da Itália, que recentemente iniciou sua própria jornada lean com a ajuda do Istituto Lean Management, da Itália. Depois de receber um treinamento básico sobre o lean, a equipe de gestão começou a se concentrar em problemas reais do negócio (usando o Lean Transformation Framework como referência) enquanto o uso do pensamento A3 na linha de frente levou a uma série de resultados rápidos na eficiência do processo. Isso está gradualmente criando conscientização na Battistella de que a mudança é possível e que os processos podem ser aprimorados continuamente.

Na verdade, a maneira mais eficaz de envolver as pessoas na solução de problemas é mostrar resultados, especialmente aqueles que impactam mais diretamente seu trabalho. A liderança deve se envolver em pequenos ciclos de PDCA, ao mesmo tempo em que mostra aos colaboradores como seus esforços de solução de problemas estão tornando o trabalho mais seguro e a empresa mais produtiva.

Essa estratégia funcionou para o conglomerado Andrade Gutierrez, uma grande empresa brasileira de infraestrutura com atuação em vários países. O Lean Institute Brasil (outra afiliada da Rede Lean Global) ajudou a criar uma cultura diferenciada lá apoiando o desenvolvimento de um grupo inicial de facilitadores lean. O LIB forneceu-lhes o conhecimento lean de que precisavam para efetuar mudanças em todo o grupo. Isso claramente valeu a pena, pois ao longo dos anos, a Andrade Gutierrez desenvolveu quatro gerações de facilitadores, que progressivamente foram capazes de introduzir o pensamento lean em todos os canteiros de obras e áreas de negócios.

 

Uma aplicação mais holística do lean

O pensamento lean é mais do que apenas um transformador de operações. Se ele for visto como uma estrutura abrangente, o lean pode causar uma mudança na mentalidade da empresa, em sua liderança e em sua estratégia. Quando aplicado a todo o processo de criação de valor (como deveria), pode levar uma organização a uma virada completa. Já sabemos o quão impactante o pensamento lean tem sido em setores como manufatura e saúde, e não há motivo para acreditar que ela não possa trazer os mesmos benefícios para a construção.

Como mencionado acima, o processo de construção é muito atomizado, e a cadeia de suprimentos que o sustenta é incrivelmente fragmentada. É normal, portanto, que investidores e construtoras entrem com ações judiciais, que projetistas tenham que lidar com constantes mudanças no projeto, que fornecedores de materiais entreguem com atraso, que faturas sejam disputadas rotineiramente no final de cada mês, que o serviço de pós-vendas seja lento e assim por diante. Além disso, e de forma mais perigosa, a cultura que permeia a indústria desencoraja as pessoas a destacar esses problemas. Em última análise, tudo isso impacta no cliente real, seja ele o dono de uma casa ou o operador de uma hidrelétrica.

Graças à visão holística e “ampla” que oferece, o lean pode ajudar a indústria a superar esses obstáculos, tornando-se um poderoso diferenciador para as empresas que decidam dar o salto lean. Em particular, acreditamos que possa ser extremamente benéfico ao abordar questões como cultura, cadeia de suprimentos e industrialização do processo de construção.

Transformar a cultura que prevalece no setor, que é notoriamente difícil e baseada em uma abordagem de comando e controle para a liderança, é talvez o resultado mais fundamental que o lean pode alcançar. Em um ambiente em que falta confiança, as pessoas tendem a esconder os problemas em vez de sinalizá-los, agravando uma situação já difícil. Nesse cenário, os problemas só aparecem no final, quando o projeto é entregue ao cliente. O lean ensina os líderes a respeitar as pessoas, a liderar pelo exemplo, o que é fundamental para a criação de um ambiente de trabalho onde os problemas sejam bem-vindos.

O pensamento lean também pode contribuir para a eficácia da cadeia de abastecimento da construção, aumentando a colaboração entre proprietários, designers, fornecedores, empreiteiros e subcontratados e superando as relações tóxicas que tantas vezes existem entre eles. Assim como na cultura, trata-se de injetar confiança na comunicação e interação entre os diferentes atores – por exemplo, executando experimentos como contratos relacionais e Entrega Integrada de Projetos (IPD). O uso crescente do BIM (Building Information Modeling) é outro facilitador da integração da cadeia de suprimentos e, combinado com os conceitos lean, pode representar um poderoso catalisador para a mudança.

Por fim, o lean pode ajudar esse setor a aproveitar ao máximo as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias para alcançar uma industrialização completa do processo de construção. Para que isso aconteça, a indústria precisará incorporar os princípios apresentados pelo Desenvolvimento Lean de Produtos e Processos, que enfatizam a importância de unir design e produção (neste caso, construção) desde o início.

Concluindo, aplicar o lean na construção pode levar a:

  • Maior segurança no trabalho.
  • Maior qualidade na entrega aos clientes.
  • Prazos de entrega mais curtos.
  • Maior produtividade.
  • Redução de desperdício de materiais.
  • Um ambiente de trabalho propício ao aprendizado contínuo e à colaboração.
  • A capacidade de antecipar problemas e gerenciar melhor os riscos.
  • Mais integração entre subcontratados e donos de projetos.

Para aproveitar ao máximo esses benefícios e sustentá-los, a construção precisa se engajar em uma aplicação mais ampla e estratégica da gestão lean. Uma mudança de foco, deixando de pensar somente nas ferramentas e passando a focar na solução de problemas, pode ajudar esse setor a melhorar consideravelmente e apoiar sua evolução para se tornar uma verdadeira indústria do século XXI.

O Grupo de Trabalho de Construção Lean da Rede Lean Global tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da indústria. Temos testemunhado e apoiado vários experimentos em construção lean e acreditamos que nossa experiência global e multissetorial pode contribuir com ideias e conceitos que até agora não receberam a atenção que mereciam.

Publicado em 04/06/2021

Autores

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil
Rodrigo Calderon
Instituto Lean Chile
Luca Martinello
Istituto Lean Management Itália
August Casanovas
Instituto Lean Management Espanha
Mark Reich
Lean Enterprise Institute, EUA
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal