Roberto Priolo: Quais são suas reflexões sobre como
as organizações lean têm reagido aos eventos históricos que
ocorreram no ano passado?
Josh Howell: Uma tendência interessante que vi é a de deixar de
ver o pensamento lean como uma mera melhoria de processo para passar a fazer perguntas mais
fundamentais sobre o propósito. Essa transição talvez tenha precedido a
pandemia para alguns (acho que é justo presumir, por exemplo, que as
organizações digitais tenham alguns anos de vantagem quando se trata de se
adaptar a mudanças nas necessidades dos clientes), mas não há
dúvida de que a Covid-19 de repente colocou essa transição em foco para
a maioria de nós.
No ano passado, as necessidades dos clientes mudaram drasticamente, forçando as
organizações a repensar toda a sua proposta de valor. Vamos pegar os
restaurantes como exemplo. Com o trabalho agora mais focado em entregas e em preparo para
viagem, eles precisam reavaliar seu propósito e encontrar maneiras melhores de
fornecer valor aos clientes em um momento em que comer em casa se tornou a norma.
Por mais difícil que seja essa transição, acho que também
é muito empolgante. O pensamento lean frequentemente tem recebido uma má
reputação pelo fato das pessoas o enxergarem como um foco maníaco no
processo em detrimento do propósito. Não tiro a razão delas. Todos
somos culpados disso até certo ponto, e é por isso que é fundamental
que a mudança que está ocorrendo atualmente permaneça conosco
após a pandemia.
RP: Como o lean pode ajudar de forma prática com essa mudança em
direção ao propósito?
JH: Uma maneira que imediatamente me vem à mente é a ideia
comum do “cliente em primeiro lugar”. Afinal, o valor definido pelo cliente
é o primeiro princípio do lean. Por mais difícil que seja encontrar
alguém – seja ele um pensador lean ou não – que discorde dessa
ideia, o pensamento lean fornece várias maneiras de transformá-lo em
realidade.
O tempo takt, por exemplo, pega conceitos um tanto ambíguos, como a
“voz do cliente”, e os traduz em algo muito prático e concreto, como o
ritmo de uma operação, dando assim um objetivo claro ao trabalho de melhoria
do processo. Conceitos e práticas como o pensamento de fluxo de valor ou mesmo o
desenvolvimento lean de produtos e processos (LPPD) também parecem nos desafiar a
pensar mais profundamente sobre o que nossos clientes precisam e como vamos atender a essas
necessidades, sobre nosso trabalho e sobre como definir nossa proposta de valor de uma
maneira útil.
A mentalidade de experimentação que acompanha o PDCA é em si de grande
ajuda quando se trata de entender o que os clientes desejam. É perfeitamente
aceitável não saber tudo que nossos clientes precisam em determinado momento.
O lean, através do PDCA, nos dá uma maneira de experimentar e iterar para
aprofundar nossa compreensão sobre o que os clientes valorizam, fechando nossas
lacunas de conhecimento ao longo do caminho.
Outra oportunidade para definir melhor nossa proposta de valor aparece quando pensamos sobre
o trabalho dos colaboradores da linha de frente focado no cliente em termos de “fixo e
flexível”. Em seu livro “Steady
Work”, Karen Gaudet fala sobre “rotinas repetíveis” na
Starbucks, das quais me lembro bem de meus anos trabalhando na empresa. A
criação das rotinas partiu do reconhecimento de que o trabalho do barista
envolve tanto a preparação de drinks quanto a interação com o
cliente. Ter uma conversa amigável com um cliente é extremamente
benéfico, mas muitas vezes desafiador – especialmente quando a pessoa precisa
se preocupar em fazer seu trabalho bem. Padronizar os elementos fixos do trabalho, como a
preparação de um café, para torná-los tão fáceis
que quase podem ser executados sem pensar, garantirá que o colaborador tenha energia
e capacidade mental para se concentrar nos elementos flexíveis e criativos. Para mim
fica claro que isso se aplica a qualquer contexto: vamos estabilizar e padronizar o trabalho
repetitivo para que possamos nos concentrar no que realmente cria valor, gastando nossa
capacidade e energia, que são limitadas, neste trabalho mais importante e mais
significativo.
RP: Você acha que existe uma maneira para a comunidade lean contribuir mais
para resolver os problemas sociais?
JH: Acho que há algumas maneiras pelas quais o pensamento lean pode
gerar benefícios sociais. Em primeiro lugar, ainda há muito que pode ser feito
melhorando os empregos que as pessoas têm, eliminando desperdícios e garantindo
que o trabalho eleve os indivíduos e os ajude a alcançar todo o seu potencial.
Precisamos reforçar continuamente que não se trata apenas de valor para as
partes interessadas e que é fundamental criar empregos bons e estáveis com um
bom trabalho, para que as pessoas possam contribuir positivamente para a sociedade fora do
trabalho. As empresas podem ajudar seus colaboradores a ficarem menos exaustos após
um dia de trabalho, reduzindo o desperdício das atividades e, por sua vez,
ajudando-os a conservar um pouco de energia para suas famílias e amigos. Além
disso, ao desenvolver seus colaboradores, as empresas podem ajudar a preencher a sociedade
com solucionadores de problemas mais eficazes. Afinal, não faltam à sociedade
problemas que precisam ser resolvidos.
A outra maneira pela qual o lean pode ajudar a resolver problemas sistêmicos é
facilitando conversas com as outras comunidades que também estão tentando
resolver esses problemas. Por exemplo, recentemente tive a oportunidade de conversar com
Valeria Sinclair-Chapman, a diretora de pesquisa sobre diversidade e inclusão da
Universidade Purdue. Seu parceiro, Christopher Chapman, escreveu recentemente um artigo
sobre como o pensamento lean pode contribuir para a resolução de um problema
tão desagradável quanto o racismo sistêmico. Ela está frustrada
com a abordagem que muitos em sua área estão adotando, que ela considera
excessivamente dependente de treinamento – isso também está presente no
mundo lean –, e interessada em entender como o lean pode contribuir para essa
importante discussão sobre como transformar sistemas. Ela enxerga o movimento lean
como um movimento evolutivo que tem aprendido ao longo do tempo como efetuar mudanças
sistêmicas. Na verdade, grandes conversas acontecem quando os pensadores lean trocam
ideias com pessoas que tentam trazer mudanças positivas em áreas que
são extremamente problemáticas. Podemos aprender muito uns com os outros e,
juntos, podemos tentar criar uma mudança sistêmica.
RP: Se fizermos as coisas que você acabou de descrever, você acha que
podemos até mesmo ser capazes de lidar com a questão da relevância
com a qual o lean parece estar lutando?
O lean é uma forma de melhorar operações e o valor
de forma contínua
O lean é uma forma de melhorar operações e o valor
de forma contínua
JH: Sim, absolutamente. Essa é uma ótima maneira de demonstrar
a relevância do lean, pois tornará permanente a mudança que mencionei
anteriormente, de uma mera melhoria de processos para administrar negócios com um
propósito. Temos que garantir que o pensamento lean seja reconhecido como uma forma
de melhorar as operações e redefinir o valor de forma contínua. Isso
pode atrair mais pessoas de fora da nossa comunidade do que simplesmente falar sobre
redução de custos, eficiência ou melhoria de processos (o que não
quer dizer que não sejam coisas importantes).
RP: Qual é a maior lição que você aprendeu no ano
passado?
JH: Em um nível mais amplo, muito do que falamos nesta entrevista
reflete meu diálogo interno durante o ano passado. A mesma mudança que vejo
acontecer na comunidade é algo que estou reconhecendo em mim e em nossa equipe do
Lean Enterprise Institute. Estamos cada vez mais envolvidos em conversas sobre
“melhoria de valor”. Para continuar a ser útil, precisamos buscar
constantemente novas maneiras de envolver nossa comunidade.
Acho que a pandemia nos tornou menos complacentes e nos obrigou a fazer perguntas muito
difíceis sobre o que estamos fazendo e por que o fazemos. Algumas pessoas já
estavam nessa jornada de descoberta, mas para muitos de nós houve um pequeno
despertar para a importância de desenvolver aquele “músculo do
propósito”. É muito importante que não voltemos ao nosso estado
de dormência quando as coisas eventualmente voltarem ao normal. Dessa forma, seremos
capazes de elevar nossa contribuição e relevância como comunidade e
expandir nosso foco olhando para coisas às quais talvez não
estivéssemos prestando atenção suficiente – seja o
propósito de um negócio ou uma forma inovadora de resolver um problema social.
Agora que fomos lembrados da importância de focar no que realmente importa, nunca
devemos esquecer que desenvolver capacidades e melhorar processos é um facilitador, e
não um fim em si mesmo.