FINANÇAS E CONTABILIDADE

A Controladoria na Lean Enterprise

O modelo clássico ou tradicional de atuação da área da Controladoria não atende plenamente às necessidades de gerenciamento e controle dos processos das organizações que operam de acordo com os conceitos e a filosofia Lean Enterprise. Em um ambiente lean, além de exercer as funções contábeis, legais e financeiras, consideradas clássicas ou normais para a área, a Controladoria assume um papel mais abrangente, complexo e participativo, envolvendo-se diretamente nos aspectos operacionais dos setores. Passa a apoiar a gestão do fluxo de valor, evidenciando e combatendo desperdícios e perdas, tornando-se um facilitador à disposição de todas as outras áreas da empresa, estimulando e motivando melhorias através de informações gerenciais objetivas, simples e significativas para todos aqueles que estão envolvidos com os processos da empresa, desenvolvendo, mantendo e aprimorando um sistema de contabilidade gerencial estruturado, lógico e consistente, para rapidamente identificar problemas e fornecer subsídios para obtenção de soluções definitivas para os mesmos.

Estabelecer ou definir as funções e atribuição exatas e claras da área da Controladoria dentro das organizações é tarefa quase impossível, pois o papel da Controladoria é influenciado por diversas variáveis e sofre adaptações e adequações de acordo com: o ramo e tipo do negócio da empresa; o tamanho da organização; a estrutura do capital da empresa; a região, país ou países que a empresa atua; o tipo de produto, processo ou serviço que a empresa fornece; a participação ou não nos mercados de capital; a relação com os clientes e governos; o estilo de gerenciamento da administração da empresa; o risco financeiro ligado ao negócio da empresa; a responsabilidade social; a responsabilidade com o meio ambiente. Na realidade, o papel da Controladoria depende de uma combinação de parte ou de todos os fatores citados acima. Cada organização adota um formato da área da Controladoria que melhor atende à combinação do tipo de negócio com as necessidades geradas pelo modelo de gerenciamento e a cultura da empresa. Dessa forma, nas organizações norteadas pelo modelo tradicional, as funções da Controladoria se alinham com esse sistema, apresentando, de maneira clara, uma postura também tradicional.

Já nas organizações gerenciadas com base no modelo Lean Enterprise, a área da Controladoria desempenha um papel fundamental e determinante para o sucesso da empresa enxuta, tendo envolvimento direto nos programas e ferramentas do sistema lean. Nesse ambiente, é natural e esperado que a Controladoria desempenhe com eficiência e eficácia o gerenciamento de todas as funções e atribuições clássicas que são necessárias para a rotina do negócio, mas é imperativo e necessário que a área da Controladoria atue também dentro dos princípios da Lean Enterprise, executando suas tarefas com mais velocidade, mais acuracidade, mais segurança e menos complexidades. No ambiente lean, a Controladoria tem total envolvimento com a microgestão dos processos, o que significa envolver-se nos detalhes de cada setor, atuando nas questões estratégicas, táticas e também nas operacionais, disponibilizando informações de valor para todos os níveis, de acordo com a necessidade de cada usuário, equipe ou setor. Com essa postura, a Controladoria desempenha papel crítico na transferência de autoridade com responsabilidades para todos os funcionários, promovendo o fortalecimento do empowerment das equipes e, como consequência, dos indivíduos.

Analisamos, a seguir, os detalhes de algumas funções e atribuições da área da Controladoria que, em um ambiente lean, são atitudes e práticas comuns no seu dia a dia:

Planejamento e controle dos inventários:

Nas empresas gerenciadas por modelos tradicionais, o papel da Controladoria também envolve um forte controle dos diversos estoques da empresa, seja por motivos legais, operacionais ou financeiros. Entretanto, nas empresas gerenciadas com o conceito lean, esse papel assume dimensões críticas, devido aos seguintes aspectos: a) Nas organizações enxutas, poderosas ferramentas, como, por exemplo, kanban, just-in-time, fluxo contínuo, FIFO etc., são rotineiramente e largamente aplicadas para todos os processos de entrada, meio e saída operarem com níveis mínimos de estoque e, nesse contexto, a área de Controladoria deve incorporar essas ferramentas ao seu sistema de informações e torná-las parte da contabilidade formal; b) Os níveis mínimos de estoques, praticados em todas as fases dos seus processos, exigem que a Controladoria lidere ou facilite a adoção de sistemas eletrônicos e visuais, que controlem separadamente os estoques com uma acuracidade quase exata, desenvolvendo sistemas com atualização em tempo real, reduzindo ao mínimo (ou eliminando) a burocracia para movimentação dos materiais; c) É também função da Controladoria estabelecer mecanismos de treinamento contínuos, que envolvam toda organização de forma que as rígidas premissas do sistema lean - quanto ao gerenciamento dos inventários - sejam incorporadas nas rotinas normais dos funcionários e por toda a organização; d) Por outro lado, o baixo volume e o forte controle dos estoques em todas as áreas da empresa facilitam algumas funções da Controladoria, como, por exemplo, a realização de contagens físicas, que devem ser rápidas, frequentes e precisas. Outro benefício é que, nesse cenário, a geração de itens obsoletos ou itens de baixo giro é mínima.

Planejamento e controle das despesas e gastos:

Nas organizações lean, a identificação, combate e redução dos desperdícios em todos os processos e postos de trabalho, técnicos ou não, é também uma cultura, um hábito. Isso faz com que cada área, cada setor, cada equipe, todos sejam os responsáveis diretos pelo planejamento e controle das despesas e gastos relacionados com as tarefas e processos sob seu domínio. Assim, a área da Controladoria também sofre um forte impacto em suas funções e atribuições, em comparação com as empresas administradas de forma clássica. A divisão da responsabilidade pelas despesas e gastos por toda empresa facilita a atuação da Controladoria no gerenciamento das metas e resultados, porém esse ambiente participativo, com forte empowerment, exige um esforço adicional da Controladoria para: a) Desenvolver, manter e melhorar um sistema descentralizado de controle das despesas gerais da empresa, no qual cada setor da organização tenha conhecimento, controle e atuação sobre as contas relacionadas com suas tarefas; b) Projetar sistemas que acompanhem e monitorem essas despesas e gastos em tempo real, para permitir que as equipes de trabalho consigam rapidamente identificar desvios indesejados, tomando ações imediatas para a manutenção do resultado esperado dentro do próprio período em curso, e não apenas esperar o final do período para concluir que “puxa, algo saiu do controle e, por isso, a meta não foi atingida”; c) Estabelecer mecanismos para estimular e controlar projetos de melhoria contínua por toda empresa, assegurando que cada projeto adicione valor para a organização; d) Validar os ganhos dos projetos sugeridos pelas equipes, disponibilizando recursos para implantação desses projetos, respeitando as políticas da gestão financeira da organização.

Tecnologia da informação (TI):

Em um ambiente lean, os sistemas de informação, desde os sistemas visuais até os sistemas eletrônicos, são fundamentais para conferir segurança, velocidade e eficácia na identificação das oportunidades de melhoria e na tomada de decisões em todos os níveis da empresa, desde a alta administração até os times do chão de fábrica. Assim, a Controladoria, quando no comando das funções de TI, assume as seguintes responsabilidades: a) Desenvolver, manter e melhorar um sistema de informações integrado, com os principais dados disponíveis em tempo real, com rotinas velozes e acessos rápidos; b) Planejar, implantar e manter atualizados os recursos de hardware, software e treinamento – que são necessários para atender exatamente ao que os usuários precisam – em todas as áreas da empresa, customizando soluções, integrando com o sistema de gerenciamento visual e em sintonia com a velocidade das ações e decisões geradas pelas equipes na sua rotina de combate aos desperdícios; c) Desenvolver e manter sistemas confiáveis, para obter e manter com acuracidade e consistência todos os registros necessários para o cumprimento das obrigações legais, gerenciais ou operacionais; d) Estabelecer procedimentos e rotinas para que os registros sejam facilmente recuperados, compilados, estratificados, analisados e interpretados por qualquer nível de usuário da empresa, em tempo real quando necessário, e com o conteúdo exato para o desempenho da tarefa em curso naquele momento.

Planejamento e controle dos custos:

Nas empresas enxutas, a utilização maciça e rotineira dos conceitos e das ferramentas lean gera, como consequência automática, um sistema acurado e personalizado de custos dos produtos ou serviços. Materiais, despesas e mão de obra são criteriosamente e detalhadamente alocados, controlados e conhecidos. Fluxos lógicos de processos são determinados de forma a manter tempos de ciclo, tempos de fabricação, tempos de processamento, tempos de transporte, tempos de setup e tempos de espera, que são estabelecidos e respeitados. A cadeia toda se torna mais robusta e previsível. As anormalidades têm seu efeito rapidamente mensurado. Variações e surpresas são reduzidas ou eliminadas, fazendo com que o sistema de custos efetivamente reflita a realidade de cada produto ou processo, permitindo análises reais de produtividade, lucratividade e margens de contribuição, tanto pela alta administração como pelas diversas equipes que gerenciam os setores. Nesse ambiente, a Controladoria exerce papel central nas análises relacionadas ao estabelecimento de metas de despesas, custo dos materiais e preço de venda dos produtos e serviços.

Contabilidade Gerencial:

A contabilidade gerencial tradicional ou clássica normalmente fornece informações para tomada de decisão para a alta administração, não havendo uma transparência para a maioria das outras pessoas da organização e, normalmente, a identificação dos problemas é tardia, ocorrendo depois do período estar encerrado. Além disso, existe um foco míope nos sintomas dos resultados negativos, quase sempre sem a identificação das causas reais dos problemas. De maneira geral, os administradores percebem e atuam apenas sobre as consequências desses problemas, não considerando que quem está efetivamente envolvido com as tarefas é quem mais conhece os processos e, portanto, pode identificar com mais facilidade as verdadeiras causas dos problemas. Uma empresa gerenciada pelo modelo Lean Enterprise, deve contar com uma Controladoria que implante e mantenha uma contabilidade gerencial voltada a apoiar a gestão do fluxo de valor em tempo real, estimulando por toda organização a eliminação sistemática das fontes de perdas ainda dentro do período medido para corrigir a tempo as tendências negativas.

Planejamento e controle dos investimentos:

Nas organizações lean, a administração dos investimentos é mais detalhada e complexa que nas empresas tradicionais. A Controladoria deve estabelecer procedimentos e sistemas para realizar a avaliação dos aspectos econômicos de um projeto de investimento, como acontece em empresas tradicionais, entretanto, cumulativamente aos aspectos financeiros, os processos de avaliação devem incluir análises relacionadas com os princípios e conceitos do modelo lean, avaliando os efeitos do projeto de investimento na cadeia de valor da empresa, como, por exemplo, o impacto nos inventários, nos tempos de ciclo dos produtos, processos ou serviços, no nivelamento e balanceamento da demanda, no bem-estar dos funcionários, entre outros.

Planejamento estratégico:

Organizações lean operam com o dimensionamento de seus recursos no limite do mercado que atuam, incluindo a infraestrutura, equipamentos, pessoal, materiais etc. Nas empresas enxutas, as expansões precisam ser muito bem planejadas, principalmente pela complexidade com que os processos existentes estão interligados e o impacto que o novo projeto causa nesse equilíbrio. Por esse motivo, a alta administração deve revisar frequentemente seu planejamento estratégico, para identificar rapidamente as eventuais variações no cenário macroeconômico da empresa e fazer as correções necessárias naturalmente, sem afetar a cadeia de valor já estabelecida. Nesse cenário, a área da Controladoria assume um papel direto na elaboração dos planos estratégicos, colaborando com dados e análises geradas por uma contabilidade gerencial estruturada, eficiente e em tempo real.

Recursos humanos:

Em qualquer organização e, em especial, nas empresas lean, o gerenciamento dos recursos humanos é determinante para a consolidação dos sistemas e ferramentas e, mais uma vez, a área da Controladoria desempenha um papel estratégico nessa função. Além das tarefas tradicionais ligadas às implicações financeiras do quadro de funcionários, a área da Controladoria deve, acima de tudo, ser um agente facilitador do esforço coletivo para melhorias contínuas e redução de desperdícios, estruturando a contabilidade gerencial com sintonia aos programas, ferramentas e princípios do lean e adequando às atividades das equipes e times. Mais ainda, a Controladoria age como um catalisador do empowerment desses times e dos indivíduos que os compõem, desenvolvendo, entre outros: a) Sistemas de avaliação de desempenho em nível das equipes, setores, áreas, empresa e corporação, elaborando um sistema de indicadores transparentes e abrangentes, adequados para cada nível, mas com foco no resultado do trabalho de equipes, e não somente de cada indivíduo; b) Disponibilizar recursos para treinamento, qualificação e segurança dos funcionários nos planejamentos financeiros de longo, médio e curto prazos, assegurando a perpetuação e a evolução contínua dos programas, processos e pilares que sustentam o modelo Lean Enterprise; c) Garantir a todos os funcionários o acesso a toda e qualquer informação, técnica ou não, que seja relevante e agregue valor para o cumprimento de suas tarefas. A troca de informações entre a alta administração e todos os funcionários é uma das chaves para se criar um ambiente de empowerment na organização e condição essencial para estabelecer um sistema lean. A Controladoria tem como função liderar o processo do uso e partilha da informação, utilizando adequadamente o critério de valor agregado à tarefa.

Finalizando, concluímos que o papel da Controladoria nas organizações gerenciadas com base no modelo Lean Enterprise tem significativas diferenças em comparação com a mesma função em uma empresa tradicional. Embora as funções e responsabilidades clássicas da Controladoria também devam ser eficientemente desempenhadas nas empresas lean, essas funções e responsabilidades têm um enfoque mais detalhado e segmentado, o que faz com que a Controladoria, em um ambiente enxuto, tenha suas atribuições aumentadas quantitativamente e qualitativamente. Em compensação, o rígido controle das entradas, processos e saídas, faz com que as rotinas legais e obrigatórias sejam executadas com rapidez e confiabilidade – com poucas surpresas –, exigindo, assim, menos esforço e menos recursos da área para o seu gerenciamento. Assim, quase que naturalmente, o esforço maior da área passa a ser direcionado para os sistemas internos da organização, onde a Controladoria passa a ter um envolvimento muito mais próximo com todos outros setores da empresa. Talvez, em comparação ao sistema tradicional, o papel da Controladoria em relação aos funcionários/pessoas é o que tem o maior impacto, pois, no modelo lean, efetivamente a Controladoria assume o papel de facilitador, agindo em todos os setores como um catalisador do combate ao desperdício, utilizando a informação com sabedoria, desenvolvendo em cada equipe e em cada individuo o financial mindset – que nada mais é do que criar uma cultura financeira por toda empresa, na qual cada funcionário adquire o hábito de enxergar o impacto financeiro de qualquer tarefa executada ou decisão tomada.

A Tabela abaixo apresenta um quadro sintético das principais diferenças do papel da área da Controladoria inserida em uma empresa gerenciada de forma tradicional ou clássica e o papel da área da Controladoria em organizações gerenciadas com base no modelo Lean Enterprise:

Processo Modelo Tradicional Modelo Lean Enterprise
Informações e dados Restritos e controlados (macrogestão) Divididos e compartilhados (microgestão)
Tecnologia de Informações Integrado Integrado e em tempo real
Confiabilidade das informações A acuracidade é uma meta A acuracidade é uma necessidade
Divisão das responsabilidades Direção/Gerência/Supervisão Direção/Gerência Supervisão/Equipes
Controle das despesas Contas controladas por área Contas controladas nas equipes
Relatórios Foco nos relatórios externos Foco nos relatórios internos
Tomada de ações Ações corretivas Ações preventivas
Custos Imprecisos Detalhados e acurados
Investimentos Análise de risco e retorno Impacto na cadeia de valor
Planejamento estratégico Direção/Gerência Direção/Gerência Supervisão/Equipes
Perfil da Controladoria Controle e cobrança Controle e treinamento

Fonte: Tabela elaborada por Normides Carbonera Junior em Dez/2007.

Normides Carbonera Junior: Diretor da New Mindset. Adquiriu seu conhecimento lean enquanto gerente da Invensys.

Publicado em 24/04/2012

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