LOGÍSTICA E CADEIA DE SUPRIMENTOS

Norte Verdadeiro para a Indústria 4.0

Alvair Silveira Torres Júnior
Norte Verdadeiro para a Indústria 4.0
Entenda como o Modelo de Gestão Lean pode orientar a adoção de novas tecnologias nas empresas e em suas cadeias de valor e suprimentos como parte do chamado Norte Verdadeiro da estratégia corporativa.

Um grupo de pesquisadores liderados por Krzysztof Ejsmont publicou uma revisão sistemática de literatura em 2020 que investigou pesquisas realizadas sobre as relações entre o Modelo Lean e a Indústria 4.0 desde 2013. Foram coletados 87 estudos relevantes, que convergem para a conclusão de que as aplicações combinadas dos dois modelos aumentam a criação de valor em toda a cadeia.

A partir da análise dos estudos, os pesquisadores chegaram às conclusões de que a Indústria 4.0 permite atingir alto grau de materialização dos princípios lean em toda a cadeia e de que o Modelo Lean é um pré-requisito para a implementação da Indústria 4.0 na empresa.


O problema da Indústria 4.0

Quando examinamos a Indústria 4.0, identificamos em suas origens a presença do conceito de fluxos integrados de materiais e informações nos propósitos de integração tecnológica, assim como acontece também nas bases do Modelo Lean de Gestão do Supply Chain.

Contudo, não há compreensão e maturidade na aplicação de tais conceitos em empresas cujos setores (até mesmo os responsáveis pela tecnologia da informação e digital) estão separados e não integrados entre si, ainda segundo estruturas departamentais que mais concorrem por recursos do que colaboram compartilhando informações e ativos.

Se o objetivo não for a convergência e a integração entre elas, construindo um sistema que alcance a conexão de todos os fluxos físicos, digitais e biológicos, e se esse objetivo não se alinhar plenamente aos propósitos de fluxo contínuo e puxado do Modelo Lean, com a efetivação total, ampla e concreta dos seus princípios de maximizar valor ao cliente e stakeholders em todos processos da empresa e do Supply Chain, nenhum ganho significativo poderá vir dessa aplicação infundada.

Por exemplo, quando os pesquisadores de um estudo indagaram um profissional de supply chain de uma grande corporação sobre a Indústria 4.0, cujo relatório de relacionamento com investidores indicava investimentos nas tecnologias, a resposta recebida foi “esse assunto ainda não veio para nós; ele está no departamento de inovação”. Claramente, faltava um propósito para a aplicação do conceito na empresa, que estava somente surfando na onda.


O lean como solução

Se compreendermos que a Indústria 4.0 leva à materialização do ideal do lean, com um fluxo de valor totalmente articulado e sincronizado com a demanda, o Modelo Lean de Gestão passa também a funcionar como guia e orientação para a introdução e transformação da Indústria 4.0 em cada realidade organizacional e da sua cadeia de suprimentos.

Para alcançar um alto grau de integração com total e ampla conexão física e virtual, sem fronteiras departamentais e barreiras organizacionais, o Modelo Lean oferece uma visão de gerenciamento horizontal em todo seu fluxo de valor, desde marketing, vendas, logística de abastecimento até produção e entrega, para não falar de todas as etapas e dos serviços associados por toda vida pós-venda e pós-consumo, sem fronteiras entre empresas e departamentos.

A capacidade orientativa da inovação no Modelo Lean sempre esteve presente em seus princípios. Em uma entrevista que realizei em 1998 com o então consultor Chihiro Nakao (ex-integrante do grupo de especialistas de Taiichi Ohno), ele explicou de forma metafórica e peculiar como o just-in-time é habilitado pelo fluxo contínuo e como o fluxo contínuo, por sua vez, é um reflexo de “o cliente pensar no produto, e ao abrir os olhos, o produto estar na sua frente”, instantaneamente.

Agora, com a Indústria 4.0, o lean pode alcançar um grau mais alto de efetividade ao servir-se da integração e aplicação da tecnologia mais avançada e adequada àqueles propósitos. As tecnologias podem ser escolhidas, aplicadas e orientadas pelo Modelo Lean para realizar o objetivo de maximizar a criação de valor, conectando em fluxo contínuo demandas e variações de mercado às respostas just-in-time de produção e entrega dos agentes do Supply Chain.

Por exemplo, um gestor que estiver na dúvida se deve investir no sensoriamento dos seus bens de capital para configurar uma IoT no acompanhamento da performance ou utilizar os sensores para aquisição de dados e construção de um Digital Twin na simulação de eventos, encontrará na abordagem do Modelo Lean orientação objetiva sobre o grau de impacto de cada alternativa na eliminação das causas e em que medida elas estarão integradas com o objetivo do fluxo contínuo e da busca da perfeição.


Um exemplo concreto

Em um caso real, presenciei um gestor descontente com o resultado global alcançado no lead time do pedido desde sua reposição. Ele fez uma otimização interna com a adoção de armazéns inteligentes com robôs movimentando todos pedidos e suportados por IA na localização otimizada dos BINs visando à redução da movimentação interna e à aceleração do put away e do picking. Contudo, em função das docas sobrecarregadas em dados horários por falta de sincronização entre sellers e buyers, ainda havia um fluxo descontínuo na entrada e saída do armazém.

Em certa medida, o armazém, seu algoritmo de IA e todo o investimento somaram-se ao capital circulante em excesso para dar conta de uma meta de D+1 na entrega, mas cuja causa raiz mais impactante para atingi-la com menos custo não era a movimentação interna, mas a falta de sincronização entre inbound e outbound.

Nesse caso, um sistema de Cloud Computing conectando as plataformas e um de Digital Twin para simulações e predições de rotas e demandas seriam mais pertinentes. Em termos de capital, o armazém high-tech não resolveu a causa, apenas aliviou o sintoma.

Orientado pelo conceito prático, objetivo e sem ambiguidades do one-piece flow, fundamental para realizar o fluxo contínuo e puxado característicos do just-in-time, o gestor da operação certamente iria considerar outras alternativas mais integradoras em vez de começar pelo armazém inteligente, tornando-o uma ilha de excelência cercada por desperdícios em todos os lados.

Em outros termos, a reconfiguração rápida do sistema robótico de armazenagem foi subutilizada na medida em que a cadeia como um todo não estava conectada às mesmas necessidades de reconfigurações no inbound e outbound do armazém.


O Modelo Lean como pré-requisito para a Indústria 4.0

As grandes possibilidades abertas pela Indústria 4.0 exigem uma maturidade organizacional para que as tecnologias sejam aplicadas no alcance das melhorias e inovações em consenso com seu sistema gerencial, sem haver interrupções e conflitos na transformação, ao mesmo tempo que promova uma cultura de sustentação da jornada de mudanças.

A expressão nemawashi no Modelo Lean ilustra uma abordagem de alcance da maturidade e do consenso antes da mudança. Herdada das suas origens japonesas, o termo significa metaforicamente “preparar o terreno para o plantio” e é aplicada no Lean Supply Chain através de técnicas de coleta de dados e evidências segundo uma estrutura denominada de Plano A3, em que os gestores alcançam objetivamente o consenso organizacional para a mudança.

A Indústria 4.0 também apresenta seu modelo de verificação da maturidade organizacional para implantação das tecnologias. O conhecido modelo da ACATECH (Academia Alemã de Ciências e Engenharia) tem este objetivo e tem sido difundido para avaliar em que estágio da evolução tecnológica certa organização está no momento da avaliação, indicando as etapas e ações tecnológicas para seguir na evolução.

Observando o modelo da ACATECH, não é difícil ao leitor perceber que desde os passos de conectividade dados pela digitalização na etapa 2, seguido da visibilidade e da transparência nas etapas 3 e 4, diversos conflitos com as estruturas tradicionais terão que ser superados.

Diante de uma maturidade organizacional ainda calcada na departamentalização, serão exigidos esforços de tempo e recursos ainda maiores para avançar nas etapas do modelo ACATECH.

Por outro lado, se a organização adotar o modelo Lean Supply Chain, a gestão irá alterar sua cultura para uma visão horizontal, com práticas de fluxo contínuo de valor, tornando natural a adoção de ações de conectividade, que é exercida no Modelo Lean através de técnicas como Gerenciamento Diário, mapas de fluxo de valor, kaizens sistêmicos e outras ferramentas (um conjunto de práticas que criam uma cultura de inovação coletiva).

Há exemplos em nossa experiência e investigações de casos reais em que a prática lean acaba como que puxando espontaneamente tecnologias que permitam mais conectividade, visibilidade, transparência, predição e adaptabilidade, uma vez que estes atributos já são aplicados e aprendidos nos métodos gerenciais com os recursos humanos.


Um último exemplo

Um relato de caso que obtivemos com uma empresa nacional praticante do lean ilustra esta perspectiva do modelo enxuto como pré-requisito na adoção da Indústria 4.0 e, mais além, como elemento puxador das novas tecnologias.

A empresa em questão havia identificado nos mapeamentos de fluxo de valor grandes perdas nas paradas de máquinas e equipamentos de sua fábrica e de seus principais fornecedores, incluindo veículos e equipamentos de movimentação. Tais perdas foram avaliadas como o maior problema na continuidade dos fluxos produtivos e foram escolhidas como objeto do primeiro ciclo de melhoria na aplicação do Lean Supply Chain.

Ferramentas lean aplicadas à manutenção produtiva foram implantadas para promover conexão entre departamentos e informações distintas e aumentar a visibilidade da performance e dos problemas e a transparência de fatores intervenientes e da pesquisa de causas.

Os indicadores OEE tornaram-se competitivos e benchmark na organização, porém ainda havia avanços que somente a tecnologia poderia alcançar rumo à perfeição. Por exemplo, o processo de monitoramento para predição de paradas e ações preventivas avançou até onde o sensoriamento convencional e humano permitiu com suas limitações tecnológicas.

Com o advento de novas tecnologias, técnicas de sensoriamento, simulação e machine learning foram escolhidas visando à predição e prevenção de paradas de máquinas, equipamentos e veículos, avançando ainda mais na manutenção do fluxo contínuo que o modelo lean havia identificado como central naquele contexto.

A cultura da inovação, da melhoria contínua e da busca pela perfeição do fluxo por meio de ações coletivas já estava posta; havia consenso entre os colaboradores. O pré-requisito do Modelo Lean havia preparado o terreno para aprofundar os avanços através da Indústria 4.0.

Publicado em 23/08/2022

Autor

Alvair Silveira Torres Júnior
Head para Supply Chain e Logística no Lean Institute Brasil
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal