GERAL

Mude o comportamento da liderança e terá uma empresa lean

Michael Ballé e Daniel T. Jones
Mude o comportamento da liderança e terá uma empresa lean
A única maneira de o lean ter sucesso é mudando o comportamento do líder para que o resto da organização também mude e as pessoas obtenham o apoio necessário para se tornarem solucionadores de problemas.

Trinta anos depois de termos usado pela primeira vez a palavra “lean” para descrever a maneira única de gerenciar o desempenho empresarial que descobrimos na Toyota, o termo tornou-se parte da linguagem de negócios, principalmente no sentido redutivo de “produção lean”. Qual é o sentido da palavra? Ao longo dos anos, houve debates intermináveis sobre se a palavra “lean” realmente descreve o Sistema Toyota de Produção (TPS). Ironicamente, dentro da Toyota, os veteranos em STP argumentam se o termo “sistema de produção” é adequado. Isso implica que o STP é a soma das técnicas de produção da Toyota, o que é absurdo, uma vez que elas continuaram evoluindo enquanto a estrutura geral – o sistema – mudou muito pouco (na verdade, impulsionando a constante evolução das práticas). Nampachi Hayashi, que foi aluno de Taiichi Ohno (o “fundador” do lean), argumenta que o STP deveria ter sido chamado de Sistema Toyota de Desenvolvimento de Processos – um método de desenvolvimento que se esforça para fazer as pessoas pensarem sobre custos evitáveis. Outros veteranos da Toyota dizem que  STP deveria ser chamado de Sistema de Pessoas Pensantes.

Palavras evocam; elas não descrevem. A palavra lean (do inglês, enxuto) foi escolhida pois ela evoca velocidade, agilidade, elegância e, claro, sem desperdício. O que nos impressionou quando comparamos a Toyota com outras montadoras no final dos anos 80 foi o quanto seus processos eram mais enxutos e como isso se traduzia em um desempenho superior. Sabíamos “o que” a Toyota fazia, mas não “como” ela fazia, então embarcamos em uma jornada para descobrir exatamente isso. Também sabíamos que precisávamos ter cuidado com o “efeito sucesso”, a tendência dos escritores de negócios de atribuir boas práticas às empresas consagradas, como se elas fossem perfeitas e por isso conseguiam alcançar o sucesso. Como todos sabemos agora, a maioria das excelentes empresas usadas como modelos em best-sellers como “Em Busca da Excelência” e “De Bom a Excelente” deixaram de ser excelentes apenas alguns anos após os lançamentos dos livros, embora continuassem a operar da mesma forma. A Toyota, entretanto, continuou a superar seus concorrentes, tornando-se o player dominante no setor, e sua abordagem diferente de gestão é notavelmente visível na forma como lida com as crises. Nos últimos anos, por meio de bloqueios e da escassez de chips, a Toyota sofreu muito menos do que seus concorrentes ao aplicar seus principais conceitos de STP, como just-in-time, jidoka e kaizen.

Muitas empresas tentaram imitar a Toyota aplicando suas práticas e obtendo, em geral, resultados decepcionantes. Alguns líderes empresariais, entretanto, mergulharam muito mais fundo no que torna a Toyota diferente (em vez de escolher ideias “lean” interessantes) e de fato descobriram que a promessa do lean é real. Alguns, como Art Byrne, da Wiremold, ou, mais recentemente, Nicolas Chartier, cofundador do Aramis Group, escreveram sobre sua experiência ao aprender e usar o pensamento lean em livros como “The Lean Turnaround: a grande virada” e “Raise the Bar”. O que eles descrevem é muito diferente do que a maioria dos executivos e consultores entendem como “lean”. Eles exploram em profundidade como as ferramentas lean são usadas não para extrair a produtividade de um processo, mas para desenvolver o capital humano por toda a empresa. Ao fazer as pessoas pensarem mais profundamente sobre o que fazem, elas aprendem a tomar melhores decisões no dia a dia e a cooperar umas com as outras, e isso aumenta o desempenho em todos os níveis.

O foco aqui não é usar técnicas lean para atingir um objetivo, como a abordagem “Seis Sigma” de reduzir sistematicamente a variação para aumentar a produção, mas apoiar as pessoas a pensarem sobre os problemas contextuais que enfrentam e, em seguida, tentarem contramedidas para aprender, para superar obstáculos. Transformar a estrutura com foco em atividade/objetivos para uma com foco em problema/contramedida parece bastante simples, mas, como se vê, é difícil de alcançar em escala – nossas organizações são projetadas para disseminar atividades e objetivos a partir do topo, e não para incentivar o pensamento autônomo em todos os níveis. O sistema burocrático lutará contra o sistema lean sempre.

Como conquistar uma mudança de paradigma? Os leitores entenderão o que reconhecem de acordo com suas próprias mentalidades, então como descrever uma mudança de visão de mundo? A gestão por objetivos de Peter Drucker foi uma dessas mudanças. As organizações hierárquicas de meados do século passado usavam em grande parte o comando e controle: o chefe diz, e o empregado faz. Na verdade, na época, havia um entendimento generalizado de que o empregado tinha que concordar com a ordem para cumpri-la e que a cooperação entre os patrões era necessária para o sucesso global, mas tais argumentos foram progressivamente abandonados à medida que o quadro financeiro passou a ser usado como uma representação definitiva do negócio. Na verdade, Drucker sentiu que estava liberando os gerentes da ditadura dos executivos por meio de seu sistema de gestão por objetivos. Com esse sistema, o executivo e o gerente analisam os números conforme eles aparecem no orçamento, decidem os objetivos de desempenho e, então, o gerente fica livre para encontrar sua própria maneira de atingir esse desempenho. Esta é a verdade central por trás da ideologia do MBA: faça o que você tem que fazer para que os números financeiros para o curto prazo pareçam bons.

A estrutura de lucros e perdas divide qualquer negócio em categorias claras: primeiro, o retorno, suas vendas mensais. Depois, os custos operacionais, quanto custa administrar o negócio dia após dia, comprar material, pagar o salário das pessoas e despesas gerais como marketing e engenharia. Em seguida, os lucros e perdas financeiras das atividades de financiamento, em grande parte relacionados ao financiamento de investimentos ou ao refinanciamento de dívidas. Por fim, ganhos ou perdas excepcionais, onde se esconde tudo o que não se quer explicar. Com essa estrutura, os gerentes agora podem explicar como escolhem determinadas atividades para aumentar as receitas ou reduzir os custos. O argumento é que, se todos estão se saindo melhor do que o orçamento, a empresa deve seguir em frente como está.

Com essa estrutura em mente, os gerentes propõem planos para atingir os objetivos. Esse pensamento tornou-se tão onipresente que ninguém mais questiona sua validade. Especificamente, ninguém questiona como os custos são contabilizados e como as atividades se relacionam (ou não) com o desempenho da empresa. Toda uma indústria de consultoria surgiu para substituir a supervisão de comando e controle antiquada pela gestão de projetos: vamos fazer isso para atingir esse objetivo. Não importa se a empresa é um sistema e se qualquer pressão em um aspecto pode transferir a carga para outro lugar e não alcançar muito no geral.

O STP apresenta uma visão completamente diferente do negócio. Sua prioridade é a satisfação do cliente. Com a satisfação do cliente em primeiro lugar, segundo o raciocínio, a empresa prosperará, desde que mantenha seus custos gerais baixos. Para fazer isso, ela precisa que as pessoas pensem constantemente em alcançar a satisfação do cliente, evitando custos evitáveis. Custos evitáveis, muitas vezes chamados de “desperdícios”, são difíceis de identificar; portanto, as pessoas precisam ser treinadas diariamente para vê-los, entendê-los e eliminá-los para entregar mais valor. Isso requer, em primeiro lugar, a gestão de cargas de trabalho. Se uma equipe está sobrecarregada, ela não consegue pensar com clareza e, se está pouco trabalhada, não o fará. O just-in-time é realmente um mecanismo para visualizar carga versus capacidade e equilibrar a carga de trabalho em toda a empresa para evitar mura (variação de carga de trabalho), que criará muri (sobrecarga) e resultará em muda (desperdício).

Além disso, para satisfazer todos os clientes todos os dias, cada pessoa deve ser responsável por sua própria qualidade. A qualidade é complicada, porque há uma maneira certa de fazer as coisas e um milhão erradas de maneiras de fazê-las, e as circunstâncias mudam o tempo todo. Desde os primórdios da tradição Toyota, Sakichi Toyoda entendeu que os problemas têm que aparecer onde e quando surgem e que as pessoas precisam abordar cada instância imediatamente para entender como as coisas dão errado para aprender a fazê-las melhor. Após o fato, a análise geralmente não é boa, porque o contexto terá mudado e o problema real será muito mais difícil de descobrir. Essa percepção levou ao desenvolvimento do conceito “jidoka” de automação inteligente: cada máquina deve ser equipada com os meios para dizer se está fazendo um bom trabalho ou não, e as pessoas devem ser capazes e dispostas a reagir imediatamente a qualquer anormalidade. Essa ideia foi mais tarde generalizada para todos os processos e atingiu uma visão profunda sobre a aprendizagem de adultos: os adultos aprendem com seus erros quando percebem e aceitam que cometeram um, então precisam de maneiras de testar sua própria qualidade. Ter um inspetor fazendo isso e repreendendo-o leva a uma maior conformidade, mas não ao aprendizado – nem a uma maior competência.

Além disso, para focar diariamente na satisfação dos clientes com qualidade sempre melhor, as pessoas precisam estar engajadas com seu trabalho e envolvidas com suas equipes e seus grupos. Eles precisam querer pertencer a uma empresa que faz a coisa certa e onde os colaboradores são competentes. As atividades de kaizen da equipe e o apoio a sugestões individuais são a chave para criar um maior envolvimento quando os executivos se interessam ativamente pelas ideias e iniciativas das pessoas. Esforços kaizen e revisões kaizen por gerentes seniores, trocas de pontos de vista, explicações de desafios globais e a escuta ativa de problemas locais criam uma atmosfera muito diferente do ambiente burocrático frio e apático habitual de tomada de decisões estratégicas na sede e execução disciplinada em campo. O envolvimento das pessoas na melhoria de sua própria qualidade, entrega e custos e o envolvimento executivo no desenvolvimento de pessoas são a base de todos os outros princípios do STP. Como já ouvimos inúmeras vezes, para fazer peças, primeiro você aprende a fazer pessoas.

Por fim, a empresa funcionará se seus sistemas fundamentais funcionarem: a mão de obra, as máquinas, os materiais e as análises de métodos (além dos dados) são a chave para a estabilidade básica dos processos e para a criação de um ambiente onde as pessoas possam trabalhar com segurança, produtividade e, ousamos dizer, alegria. Essa abordagem difere radicalmente da visão de gestão de projetos para fazer as coisas. Ela entende que a empresa é um sistema dinâmico e procura melhorar as condições para melhorar o desempenho. Os proponentes do pensamento lean acharam óbvio que otimizar o desempenho local raramente levaria a resultados globais e sempre ficavam perplexos com todas as tentativas ocidentais de fazer exatamente isso.

Esses dois frameworks, o financeiro e o STP, não se misturam. O objetivo da estrutura financeira é permitir que cada gerente estabeleça (e aceite) objetivos e, assim, faça o que for necessário para alcançá-los. A estrutura do STP trata do reconhecimento de problemas operacionais por meio de uma melhor visualização do valor e da busca por contramedidas através de tentativa e erro. O pensamento é radicalmente diferente.

Como argumentamos em “A Estratégia Lean”, o processo de raciocínio subjacente a essas estruturas difere radicalmente. A abordagem financeira começa com uma descrição abstrata da situação (onde está o volume de negócios e qual é o custo) para definir a situação em termos de objetivos e, somente depois, decidir qual opção tomar ou atividade a seguir, conduzindo a decisão através de fileiras e, assim, lidar com todas as consequências imprevistas das decisões tomadas em uma visão de mundo distorcida. Por outro lado, o pensamento lean começa com a realidade das operações para encontrar problemas, através da visualização de fluxo e qualidade, para então enfrentar os aspectos dos problemas que atualmente não sabemos como resolver, enquadrando essa lacuna de conhecimento como um desafio para assumir um problema para resolver, a fim de formar soluções a partir das experiências de todos em contramedidas e compartilhar o aprendizado. O STP não é um conjunto de práticas reutilizáveis conhecidas a serem aplicadas de forma simples. É um sistema de aprendizado reutilizável que pode orientar o aprendizado em qualquer condição.

Como conta Chartier, seu momento “a-ha" com o pensamento lean aconteceu depois de ter tentado a rota usual de consultoria para aplicar as práticas lean: ele percebeu que, em suas palavras, “os processos sempre foram o problema, e as pessoas, sempre a solução”. Como líder de negócios, ele precisa de processos repetíveis para que sua empresa opere rotineiramente. Isso envolve tanto a divisão do trabalho (para se beneficiar de uma especialização estreita e pontual) quanto a padronização do trabalho (para economias de escala). Mas os processos são sempre muito rígidos e falíveis, principalmente quando as circunstâncias mudam rapidamente. Processos padronizados são estruturalmente uma fonte de problemas tanto para os clientes (que desejam coisas diferentes) quanto para as pessoas (que lidam com questões de contexto). Ao orientar as pessoas para encontrar o sucesso na solução de problemas e apoiá-las nessa tarefa, a empresa aprende a superar seus concorrentes em movimento. Na verdade, os processos são o que as pessoas fazem.

Ao estudar a Toyota, percebemos desde cedo que estávamos olhando para uma maneira diferente de pensar. Na verdade, no primeiro livro sobre lean que um de nós foi coautor, o termo que aparece é pensamento lean, e não produção lean ou empresa lean. Capturar essa diferença, entretanto, tem sido um desafio interessante, conforme descrito pelo número de grandes contribuições de outros pesquisadores que estão olhando para a Toyota de perto desde então, como nosso colega e mentor Jeff Liker, que descreveu os “paradoxos” da Toyota, ou o que Hirotaka Takeuchi, da The Knowledge-Creating Company, chamou as contradições radicais da Toyota. Acreditamos que tais paradoxos ou contradições refletem nossas próprias dificuldades para encaixar o novo paradigma do pensamento lean no velho paradigma da gestão por objetivos. Uma das dificuldades é que, para realmente compreender o pensamento lean, primeiro precisamos entender a estrutura financeira e reconhecer a lacuna. Por exemplo, você tem um orçamento para kaizen? Um plano de investimento para jidoka?

Programas lean de fábrica não entregam resultados significativos que mudarão o resultado final, porque não há nada enxuto no lean deles. A partir do velho paradigma de gestão por números, os líderes interpretam ferramentas que foram feitas para fazer as pessoas pensarem sobre seu próprio trabalho à moda taylorista, com especialistas otimizando processos e forçando as pessoas a cumpri-los. Um porco com batom continua sendo um porco, como podemos ver com a mania atual de interpretar hoshin kanri como objetivos de implantação no negócio. Além disso, a partir de fascinantes relatos em primeira mão de veteranos da Toyota, como o livro “Welcome Problems, Find Success”, de Nate Furuta, agora sabemos que a Toyota sofre das mesmas dificuldades de mentalidade. Furuta dá uma descrição detalhada de sua virada na divisão Europa, onde o hoshin kanri foi usado como um processo sem enfrentar nenhum dos verdadeiros desafios para tornar a divisão lucrativa. Furuta liderou um retorno ao verdadeiro significado do hoshin kanri: visualizar condições-alvo desafiadoras, enfrentar problemas difíceis, dividi-los em pedaços gerenciáveis que as próprias pessoas pudessem atacar e criar o processo de catchball de comunicação ascendente e descendente (a marca registrada do verdadeiro hoshin kanri) – eventualmente vendo melhorias radicais em todas as dimensões, tanto financeiramente quanto na cooperação interna em todas as operações europeias. Sua perspectiva e atitude importam.

Ao olharmos para 30 anos de tentativas de aprender com a Toyota, podemos ver que o fator diferencial é a atitude do CEO. Eles tratam o lean como um projeto para reduzir os custos orçamentários linha por linha? Agora sabemos que isso falhará – todas as vezes. Ou eles se comprometem a aprender o lean por si mesmos, com um sensei, e depois ensinam o que aprendem a seus subordinados diretos, dando o exemplo no chão de fábrica, como fizeram Art Byrne e Nicolas Chartier? Como Paul Adler viu claramente ao estudar o experimento NUMMI da Toyota em sua tentativa inicial de trabalhar com a General Motors, a burocracia é necessária para criar grandes organizações, mas pode ser uma burocracia burocrática (que todos conhecemos e odiamos) ou uma burocracia facilitadora, onde todos os esforços e insights contribuem para o bem posterior. A diferença, acreditamos agora, depende da atitude do líder de aprender com o local de trabalho e de mudar a linguagem da empresa de obediência (“faça isso para alcançar esse objetivo”) para uma de desenvolvimento de pessoas (“olhe mais profundamente o problema, tente novas contramedidas e pense e compartilhe sobre os resultados”) para que todos aprendamos juntos à medida que criamos valor.

Se há uma lição aqui, é que o pensamento impulsiona o comportamento e que o comportamento dos que estão no topo modela o resto da organização. Mude o pensamento no topo, mude o comportamento, mude as pessoas, mude os resultados. As atividades de melhoria não visam melhorar os processos, mas aprofundar a compreensão de cada pessoa sobre os problemas e alavancar sua capacidade de percepção e iniciativas por meio de novas contramedidas. A menos que o pensamento mude, particularmente no topo, todas as ferramentas lean na caixa de ferramentas e todos os programas lean no mundo não irão entregar o potencial lean. Ninguém pode fazer isso por você. Você é quem decide!

Publicado em 18/08/2022

Autores

Michael Ballé
Autor lean, executivo coach e cofundador do Institut Lean France.
Daniel T. Jones
Coautor de livros seminais sobre lean, incluindo “A Máquina que Mudou o Mundo”, “A Mentalidade Enxuta nas Empresas”, "Soluções Enxutas” e “A Estratégia Lean”.
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal