Todos que têm aplicado a filosofia lean em suas empresas sabem do impacto positivo que essa transformação tem nas operações e nas pessoas, levando o negócio a um novo patamar de desempenho.
Na verdade, melhorar os processos atuais é fundamental, mas projetar novos produtos e processos, e até mesmo novos negócios, é mais importante ainda, estando no centro da estratégia competitiva de toda empresa que queira ser líder em seu campo de atuação. Não é à toa que o assunto inovação ganha cada vez maior atenção.
Ao desenvolver novos produtos que realmente agreguem valor aos clientes, bem como processos lean que irão produzi-los e entregá-los, a empresa está definindo seus fluxos de valor futuros.
Aquelas que têm maior capacidade de projetar esse futuro saem sempre na frente e, a partir daí, continuam melhorando constantemente, olhando para a frente. Os que não têm boas formas de desenvolvimento vão estar sempre olhando para trás, retrabalhando falhas de produtos e corrigindo desperdícios dos processos existentes.
A boa notícia é que os conceitos lean podem também nos ajudar enormemente nessa tarefa de desenhar o futuro de nossas organizações. Vários desses conceitos têm sido reunidos no que tem sido chamado de LPPD, sigla de “Lean Product and Process Development”. Menos conhecido que as ferramentas lean utilizadas na melhoria das operações, esse lado do lean thinking vem sendo desvendado aos poucos através de artigos, livros e casos de aplicação, que trazem à tona os principais elementos desse enfoque.
Uma recente contribuição nesse sentido é o livro de James Morgan e Jeffrey Liker, “Projetando o futuro”, que acaba de ser lançado pelo Lean Institute Brasil. Nele, os autores apresentam a essência do LPPD através de cinco elementos básicos, conforme vemos na figura abaixo, abrangendo processos, pessoas e ferramentas. Destaco, a seguir, alguns pontos importantes desses elementos.
Entender os clientes e o contexto
A base inicial do LPPD é entender, da forma mais profunda possível, o cliente. Isso significa compreender suas necessidades, seus problemas e seus desejos, assim como seus contextos sociais, nos locais reais e cotidianos onde o produto é adquirido e usado pelos clientes.
Isso exige ir ao gemba – o local onde está o cliente – para, como um antropólogo, fazer uma imersão no ambiente, experimentar e compreender a relação emocional e funcional que o cliente tem com o produto.
Com isso, é possível gerar não apenas uma solução, mas conjuntos de soluções sob a forma de produtos, que possam atender aos “personagens” – clientes-alvo bem caracterizados quanto às suas necessidades.
A partir desse conhecimento, diversos experimentos podem ser realizados, de forma a gerar ciclos rápidos de aprendizagem. Esse é um princípio utilizado há décadas no desenvolvimento lean de produtos, por exemplo, com prototipagem rápida, mockups e simulações, e foi fortemente incorporado por lean startups no conceito de MVP – Minimum Viable Product.
Uma vez definido o que será o produto, quais serão seus objetivos e diferenciais etc., essa visão precisa ser claramente alinhada e compartilhada com todos que participarão do desenvolvimento, o que pode ser feito através de um “concept paper”.
Excelência dos processos
Desenvolver um novo produto ou serviço significa também projetar um novo fluxo de valor: conceito, engenharia, fabricação, cadeia de fornecedores, vendas, distribuição, assistência técnica, logística reversa etc. Assim, o desenvolvimento lean concentra esforços no início e prioriza a idealização e a implementação de processos integrados, feitos em paralelo, buscando que um simplifique o outro.
Para isso, um dos conceitos e práticas fundamentais aqui é a obeya, ou “big room”. Mais do que uma sala, um sistema de compartilhamento de informações centrado na equipe – algo muito mais profundo que do que uma sala com painéis pendurados na parede.
Trata-se de um sistema que deve reunir equipes, promovendo a troca de ideias e a exposição do andamento através de gestão visual. Tudo isso com foco em expor problemas e gerar soluções, fortalecendo continuamente a comunicação entre todos.
Outro aspecto importante é a inclusão de fornecedores-chave ativamente no desenvolvimento, o que exige relações duradouras de parceria e construção de confiança mútua, algo bastante distante de conceitos ainda predominantes, de antagonismo cliente-fornecedor.
Uma ideia bastante interessante no processo de desenvolvimento é a de buscar aliar o que é “fixo” a o que é “flexível”. Isso significa aliar padronizações de soluções já existentes em busca constante por inovação. Por exemplo, utilizando peças padronizadas de qualidade comprovada e processos estáveis, que afetam aspectos pouco percebidos pelos clientes, e inovar naquilo que vai realmente diferenciar o produto.
O desenvolvimento lean faz com que os processos já nasçam enxutos, viabilizando fluxos de valor flexíveis e sem desperdícios. É muito comum as empresas iniciarem sua jornada lean pela melhoria dos processos de produção existentes. Conforme avança na compreensão da filosofia, percebem que a aplicação do LPPD evitaria muitos esforços, que são um verdadeiro retrabalho de melhorar processos que foram mal concebidos originalmente.
Pessoas excepcionais
O desenvolvimento de produtos e processos lean depende de pessoas e equipes de alto desempenho. O sistema visa “desenvolver pessoas e produtos simultaneamente”, uma máxima repetida frequentemente entre os líderes da Toyota.
Os especialistas envolvidos precisam ter capacidades avançadas de solucionar problemas, considerando todas as interfaces, e de desenvolver e consolidar conhecimento gerado durante o desenvolvimento, de forma que possa ser utilizado em projetos futuros. Isso é um papel bastante diferente de somente saber aplicar um conhecimento técnico em sua área de formação.
Diversos elementos são importantes no desenvolvimento de pessoas excepcionais no LPPD. Por exemplo, o planejamento de carreiras, passando por diversas áreas, inclusive a de atendimento a clientes, antes de se aprofundar numa disciplina, o uso do processo A3 para a solução sistemática de problemas e a criação de especialistas que aprofundam conhecimentos específicos e suportam matricialmente os diferentes produtos que estão em desenvolvimento.
No LPPD, o desenvolvimento das pessoas ocorre em meio aos trabalhos cotidianos. Para isso, é preciso que os líderes “puxem” seus liderados, provocando-os cotidianamente a encontrar e resolver problemas, além de transferir para eles seus conhecimentos já adquiridos. Para isso, os líderes devem deixar seus egos em segundo plano e buscar a humildade como característica básica do processo de liderança.
Tem papel fundamental nesse processo o desenvolvimento de sistemas de gestão que combinem comportamentos de liderança desejados – focados em desenvolver seu time como solucionadores de problemas – e sistemas operacionais que exponham desvios e estimulem a solução rápida em times.
Nesse sistema, assumem papel fundamental os engenheiros-chefe e os líderes de desenvolvimento com paixão pelo produto, profundo conhecimento dos clientes, visão estratégica e capacidade de integração técnica e de comunicação com o time.
Capturar e aplicar o know-how
O resultado de um sistema lean de desenvolvimento não é somente o produto e o processo criados. O conhecimento gerado é igualmente importante, devendo ser registrado, compartilhado e utilizado em outros projetos.
Isso faz com que ensaios, por exemplo, tenham o objetivo de criar conhecimento sobre limites de utilização, e não somente o de comprovar que aquele produto atende uma especificação. O tempo todo especialistas registram o conhecimento, em formas que possam ser utilizadas de maneira prática por outros envolvidos no desenvolvimento. Por exemplo, equipes de produção e manutenção gerando diretrizes que possam alertar projetistas sobre parâmetros que podem comprometer a qualidade, a durabilidade e o custo.
Em diversas empresas a busca pela gestão de conhecimento gira em torno de ferramentas. Um software é adotado esperando que as pessoas registrem lições aprendidas e que tudo isso seja usado em desenvolvimentos futuros.
Claro que ferramentas adequadas, que facilitem o compartilhamento, são importantes. Quanto a isso, os recursos digitais, como bancos de dados, visualização 3D, realidade virtual etc., são grandes facilitadores, mas não são suficientes.
Aspectos culturais em geral são as grandes barreiras a serem vencidas, como a valorização do conhecimento e os aprendizados gerados em contraponto a soluções imediatistas, o trabalho em equipe, e não individual, a eliminação do medo de expor problemas, a visão de outras áreas como parceiros, e não adversários etc.
Excelência dos produtos
Por fim, é preciso manter e reforçar em todo esse processo a busca cotidiana pela excelência em tudo o que se faz, que é o norte verdadeiro do desenvolvimento sob a mentalidade lean.
As pessoas envolvidas no desenvolvimento devem atuar como “mestres das suas artes”, tendo paixão pela excelência e pelo produto. São aqueles profissionais dedicados que buscam a melhoria contínua em tudo o que fazem e jamais se contentam com soluções “mais ou menos”.
Isso é comum, por exemplo, em empresas inovadoras e líderes de mercado, que idealizam produtos que todos adoram e querem comprar. São companhias que trabalham intensamente para reunir e integrar nesses produtos uma série de fatores de excelência, como design, acabamento, confiabilidade, sustentabilidade, eficiência, funcionalidade, manutenibilidade etc., que juntos formam uma identidade qualitativa poderosa e muito aparente: uma imagem excelente do produto.
Então, é preciso entender que o desenvolvimento lean de produtos e processos depende de múltiplos elementos interdependentes, que interagem para criar um todo complexo, mas eficiente. Nesse contexto, o LPPD reúne e integra fatores que viabilizam um sistema capaz de evoluir e melhorar.
Como bem escreveu o famoso executivo que liderou profundas transformações na Boeing e na Ford, Alan Mulally, no prefácio do livro “Projetando o futuro”: “O que define uma empresa de sucesso é a capacidade de criar bons produtos várias e várias vezes. E assim gerar um crescimento rentável para todas as partes interessadas”.
No cenário em que as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas ocorrem em ritmo cada vez mais acelerado, aplicar os conceitos lean também no desenvolvimento de produtos e processos é fundamental para toda empresa, para que ela seja competitiva no futuro próximo.