Empresas de todos os setores estão buscando o que tem sido chamado de transformação digital. Isso em grande parte se deve ao aumento de disponibilidade e menor custo de diversas tecnologias, com grande potencial para criar maior conexão com os clientes, e oferecer novos produtos, processos e negócios.
Já apontamos, em Lean Mail anterior, que essa transformação digital, para ser efetiva, deve estar integrada à jornada lean, que permanentemente busca formas de cada vez agregar mais valor aos clientes.
Passados já alguns anos de tentativas de empresas nesse sentido, podemos dizer que um número considerável se encontra ainda na fase de aprendizado. Os resultados, seja para os clientes, seja para as empresas, estão ainda, em sua maioria, aquém do esperado e dos investimentos, que em diversos casos são significativos.
Alguns problemas, que se tornam frequentes e recorrentes, já podem ser identificados, nos propiciando a adotar estratégias que possam evitá-los, tornando essa jornada lean digital mais ágil e efetiva, seja para os que já iniciaram, seja para os que pretendem iniciar.
PROBLEMAS RECORRENTES
Ação restrita à tecnologia
Apesar do discurso corporativo afirmar que a transformação digital é na organização toda, o que se vê na prática é que ainda persiste a “visão da área de TI”. Inúmeras companhias já atuam com times formados para aplicar métodos e framework ágeis, como Kanban e Scrum, porém os investimentos e os profissionais envolvidos continuam se concentrando em “silos” e em poucas áreas das organizações. Ainda se vê o digital como um aspecto “do setor de tecnologia”, desconectado das áreas de negócio, que muitas vezes continuam demandando e interagindo com esses “times ágeis” de maneira tradicional.
Visão deturpada do cliente final
Nesse contexto e até como uma consequência dessa visão de silos, as equipes que atuam com digital regularmente se esquecem que precisam trabalhar sempre com o foco no cliente final, que é aquele que compra os produtos ou serviços da empresa. Ocorre uma distorção sobre o assunto, levando a uma maior preocupação com o “cliente interno”, aquele que está mais próximo do seu processo no fluxo de valor, perdendo-se a visão completa, horizontal da jornada e do valor que todo o fluxo deve entregar ao cliente externo, na ponta.
Rotatividade nos times
As empresas já perceberam que os times digitais precisam atuar não mais em projetos específicos, que terão um fim após determinado tempo, mas sim organizadas em torno de missões e propósitos perenes, com mentalidade e atuação de longo prazo, e profundo conhecimento das necessidades dos clientes que atendem. Esta primeira parte está bem norteada, o problema é que estes times são formados pelos profissionais existentes na companhia, oriundos dos processos antigos estabelecidos anteriormente. As práticas de contratações por tempo determinado, utilização de terceiros e autônomos constituem uma base considerável nos projetos com prazos e escopos fechados. A rotatividade não era algo que preocupava, sendo comum a troca completa de todos os profissionais em menos de dois anos, porém a perda de conhecimento e continuidade em times perenes traz consequências graves ao aprendizado e à capacidade de entregas.
Carreiras e incentivos que reforçam os silos
Uma efetiva transformação digital exige uma visão há muito enfatizada na filosofia lean, que é a de fluxo de valor. Os times (com algumas variações e diferentes nomenclaturas, como squads, comunidades, tribos, equipes, células, etc.) são em geral criados, reunindo-se profissionais de diferentes especialidades originários de distintas partes do fluxo de valor. O problema caracterizado é que sistematicamente estes profissionais permanecem respondendo a seus gerentes de especialidades, e os mecanismos típicos de avaliação, promoção e recompensa, continuam reforçando mais os antigos silos, que os objetivos comuns dos novos times formados.
Liderança ausente
Em qualquer ambiente lean, é fundamental que as pessoas tenham mais autonomia, proatividade e capacidade de resolver problemas rapidamente, e os líderes devem ser os apoiadores e desenvolvedores dos membros dos times, para que isso aconteça. Líderes formados em estruturas verticais e departamentalizadas, acostumados a serem o centro de decisão de tudo, ficam sem saber ao certo como interagir nestes novos ambientes, bem mais horizontais. Uma reação que vem ocorrendo é de evitar se expor e indispor com o time, levando a uma ausência desta liderança. Na jornada digital esse distanciamento é prejudicial podendo levar a um rompimento da relação do líder com o time em pouco tempo. Há uma grande intensidade de mudanças e evoluções que o time estará passando neste início e se não for orientado e desafiado adequadamente pode se desenvolver na direção incorreta, gerando resultados pífios para a empresa e seus clientes.
Medo de expor problemas
Os times envolvidos em estruturas de transformação digital normalmente incorporam diversas rotinas, de gestão visual, reuniões diárias, etc. Estas práticas são fundamentais para expor problemas, de forma que sejam rapidamente resolvidos. Infelizmente muitos destes rituais se tornam burocráticos, com pessoas gerando indicadores que não mostram os reais problemas, devido ao clima de medo que ainda existe. A liderança em geral ausente, eventualmente aparece para interagir com o time, atitudes antigas e típicas de comando e controle e de procura de culpados ainda persistem. Diferentemente das práticas, comportamentos demoram e dão mais trabalho para mudar.
COMO EVITAR ESSAS ARMADILHAS
Como se vê, ainda são muitos os percalços que atrapalham um real desenvolvimento do lean digital. Como tentar evitar essas armadilhas? A seguir sugerimos algumas práticas, que podem ajudar a tornar essa evolução mais real e eficaz.
Propósito claro focado no cliente
Algumas empresas lançam iniciativas digitais sem objetivos claros. Isso, ao invés de gerar pretensos “aprendizados com as novas tecnologias”, pode gerar descrédito e muitos recursos jogados fora, sem resultados. Uma boa forma de iniciar uma verdadeira transformação lean digital é entende-la como parte da estratégia da empresa, identificando muito bem que valores adicionais aos clientes vão ser buscados, sejam em novos produtos, formas de entrega, experiência, negócios, etc.
Times compreendendo o fluxo de ponta a ponta
Para que todo um fluxo de valor seja redesenhado ou criado, gerando uma nova jornada do cliente, os times devem dominar todas as especialidades envolvidas, e não somente as de tecnologia. Negócio, marketing, vendas, finanças, etc., precisam fazer parte do time, e todos devem ser puxados por um profundo conhecimento dos problemas dos clientes finais. Os indicadores de todos devem olhar para a maximização da experiência desse cliente, e não para entregas parciais ou indicadores de sub etapas, que nem sempre retratam o que ocorre no final do fluxo.
Estrutura matricial
Se por um lado é fundamental reforçar a visão horizontal do fluxo de valor de ponta a ponta, por outro os conhecimentos específicos, das inúmeras especialidades, precisam continuar a serem desenvolvidos e alinhados, entre os distintos fluxos de valor. Existem diversas formas de preservar esse conhecimento (ex. comunidades de prática, nas quais pessoas de diferentes times interagem sobre assuntos específicos), e uma das mais efetivas é a de estruturas matriciais. A manutenção da estrutura da área funcional, concentrando o conhecimento específico da especialidade facilita o compartilhamento, a retenção e o desenvolvimento de novos profissionais focados em determinada habilidade, o cuidado está em criar estas estruturas para “servir” aos fluxos de valor.
Práticas de agilidade enxuta
A transformação digital tem uma forte componente de tecnologia. Nessa área, e em particular nos ambientes de desenvolvimento de software, os conceitos e ferramentas ágeis são muitas vezes mais conhecidos que os princípios da filosofia lean. Métodos e framework ágeis, como Kanban e Scrum, partem declaradamente de influências nos conceitos lean, mas é claro que abrangem apenas parte da filosofia, e em formatos originalmente concebidos para o ambiente de desenvolvimento de software. O movimento de abranger o negócio por completo com a transformação digital, e não meramente a tecnologia, tem demonstrado a todos os envolvidos, que é fundamental combinar as práticas ágeis com os conceitos e ferramentas lean. Esse é um movimento, que chamamos de agilidade enxuta, que já se iniciou, e que tem trazido importantes contribuições.
Desenvolver pessoas para estabilidade do time
Temos acompanhado empresas que já nos primeiros experimentos de transformação digital percebem a necessidade de mudanças em seus sistemas de gestão de pessoas. Mecanismos que levam à competição interna, por exemplo, inviabilizam times que devem perseguir objetivos comuns multidisciplinares. A estabilidade de times deve ser uma prioridade, com mecanismos que reduzam a rotatividade. As necessidades de desenvolvimento se ampliam, sejam em habilidades técnicas, visando multifuncionalidades, sejam nas novas práticas lean e ágeis, sejam em habilidades interpessoais, uma vez que as habilidades de colaboração, comunicação e trabalho em equipe são exigidas em graus muito mais elevados. Iniciativas lean digital têm que ser fortemente acompanhadas de processos de transformação das pessoas.
Consolidar o aprendizado antes de escalar
Muitas empresas, logo após os primeiros times piloto, em geral parciais e limitados a TI, querem rapidamente escalar, ou seja, disseminar para a empresa toda. O risco é propagar um modelo parcial, que perpetua muitos dos problemas apontados anteriormente. É claro que rapidez é um objetivo, mas a capacidade de sustentação da transformação não pode ser comprometida. É mais importante aprofundar e estabilizar as primeiras iniciativas, nas diversas dimensões, como integração horizontal do negócio e tecnologia, pessoas, liderança, etc, consolidando o aprendizado, para uma disseminação em bases mais duradouras e efetivas.
Líderança lean inspiradora
Se todas as pessoas envolvidas na transformação lean digital necessitam ser desenvolvidas, os líderes são os primeiros que precisam passar por uma transformação, pois são eles que inspiram as mudanças de todos na organização. Os papéis passam a ser muito mais de coaches e mentores, desenvolvendo as pessoas, e de gerentes de fluxos de valor, com visão mais horizontal que departamental. É uma mudança bastante grande, em papéis e comportamentos, que deve ser praticada de forma explícita desde as primeiras iniciativas lean digital. Caso contrário, a liderança ao invés de puxar a transformação, pode até atrapalhar, pois rapidamente é ultrapassada pelos times, em termos de vivência e entendimento das novas formas de trabalhar.
Cultura lean digital na empresa toda
A empresa toda precisa “respirar” lean digital, e não só esta ou aquela área, ou grupo apartado. É preciso incutir em todas as pessoas o orgulho em revelar e resolver problemas dos clientes, de maneira ágil e efetiva, com método estruturado, e utilizando da maneira mais inteligente todos os recursos tecnológicos disponíveis. Essa é a verdadeira transformação lean digital, que deve ser puxada pelo Presidente, ou CEO da empresa, e não por um departamento específico.
Se você está envolvido em iniciativas digitais em sua empresa, temos certeza que já percebeu alguns dos problemas recorrentes que citamos. Se pretende iniciar, muito provavelmente vai se deparar com eles rapidamente. Esperamos que as ideias que trouxemos possam ajudá-lo a evitar essas armadilhas, acelerando e tornando mais efetiva e sustentável sua jornada lean digital. Experimente, aprenda, corrija, compartilhe.