A transformação lean depende, fundamentalmente, da transformação das pessoas. A mudança exige formas diferentes de interação entre equipes e líderes, além de novas capacidades, iniciativas etc.
Em muitas empresas, a transformação inicia nos “processos fim”. Ou seja, naqueles que entregam diretamente os serviços ou produtos, o que é bastante coerente, pois o foco principal do lean é agregar mais valor aos clientes. Nessa dinâmica, os primeiros gestores a vivenciar, compreender e propagar a filosofia na companhia em geral são aqueles ligados às áreas de operações.
Eles rapidamente percebem que a aplicação das ferramentas lean e as mudanças nos processos, que começam a acontecer, dependem de mudanças no sistema de gestão de pessoas, na cultura da empresa e na atuação da liderança para obter sucesso.
Porém, na maioria das organizações, identificamos uma enorme lacuna: a área de gestão de pessoas muitas vezes “fica para trás” na transformação lean. Esse setor, em muitos casos, tem uma participação acessória e formal. Por exemplo, organizando os treinamentos sem assumir o papel necessário para apoiar a profunda transformação organizacional que o lean representa para a empresa e para as pessoas.
Mas qual seria, então, o papel das áreas de gestão de pessoas nas empresas lean? O que elas deveriam mudar em si próprias para que sejam efetivas parceiras estratégicas da transformação lean, desenvolvendo pessoas com novas habilidades, que vão atuar em novos processos, sustentando uma nova visão de futuro do negócio?
Sem a menor pretensão de trazer uma resposta completa a essas perguntas, cujo debate é relativamente recente, apresentamos a seguir algumas ideias que podem ajudar nessa reflexão. Destacamos três ações que as áreas de gestão de pessoas poderiam desenvolver para ampliar seus papéis na transformação lean: desenvolver a liderança e a cultura lean, transformar o fluxo de valor de pessoas e racionalizar seus próprios processos.
Desenvolver a liderança e a cultura lean
Uma transformação lean sustentável só é possível com a alta direção liderando o processo. Mas, para isso, ela precisa mudar a cultura, o sistema de gestão e suas práticas de como a liderança é exercida na empresa em diversos aspectos.
Por exemplo, revendo os próprios valores e princípios da empresa e enfatizando o foco no valor para o cliente e o compromisso com a estabilidade das pessoas. Também, mudando o processo de gestão ao implantar mecanismos de gerenciamento diário que exponham problemas. Ainda, mudando as atitudes da liderança perante os problemas, priorizando sempre rever processos, e não procurando culpados. E atuando como coach, desenvolvendo todas as pessoas da empresa como solucionadores de problemas e como desenvolvedores de seus times.
Mas como a liderança pode exercer esse novo estilo sem conhecer profundamente os conceitos lean?
Uma atividade estratégica da área de gestão de pessoas é o desenvolvimento dos líderes, preparando-os para que se tornem líderes lean.
Alguns elementos disso abordamos no Lean Mail “Liderança lean: para mudar a empresa, você também precisa mudar”, no qual discutimos as mudanças que são necessárias para a construção desse novo tipo de liderança. Só para citar alguns desses elementos, dentre os mais difíceis de serem praticados, podemos destacar: a atitude gemba, de ir e ver os problemas com os próprios olhos onde as coisas acontecem, e a habilidade de saber fazer a pergunta certa, em vez de querer ter sempre a resposta pronta.
A grande dificuldade é que lean só se aprende fazendo, de forma que esse desenvolvimento não pode ser somente conceitual. Deve adotar estratégias de aprendizado baseadas intensamente em ciclos rápidos de experimentação e reflexão.
Transformar o fluxo de valor de pessoas
A área de gestão de pessoas é em geral estruturada por atividades, como recrutamento e seleção, avaliação, benefícios etc. Mesmo o conceito de “Business Partner”, que busca uma visão mais integrada e próxima das áreas de negócio, muitas vezes esbarra em processos segmentados e na falta de uma atuação holística, consistente e alinhada com os objetivos do negócio.
Hoseus e Liker, no livro “Cultura Toyota”, trazem o conceito de que a área de gestão de pessoas é responsável pelo fluxo de valor de pessoas, o que representa uma tremenda quebra de paradigma. Traz o foco para o fluxo de carreira de cada pessoa e de sua contribuição para a empresa ao longo desse fluxo, desde que ela é prospectada para entrar na empresa.
Nas implementações lean, estamos bastante acostumados a utilizar mapas de fluxos de valor de produtos, através dos quais analisamos processos que agregam valor e os desperdícios que existem entre eles.
No fluxo de pessoas, as atividades que agregam valor são aquelas que geram aprendizado e desenvolvimento e que desafiam os colaboradores a buscar sempre formas melhores de agregar valor para os clientes.
Isso traz uma visão totalmente diferente, que faz com que os processos tradicionais de Recursos Humanos (RH) sejam revistos à luz de princípios lean.
Por exemplo, a seleção, numa empresa lean, deve buscar prioritariamente atrair pessoas com capacidade de aprender durante toda a vida, trabalhar em equipe e solucionar problemas e que se comprometam com os valores da companhia no longo prazo, muito mais do que somente buscar colaboradores que tenham conhecimentos anteriores que vão preencher necessidades imediatas.
O treinamento e o desenvolvimento, no sistema lean, ocorrem de diversas formas, com uma ênfase bastante grande na interação do líder com os membros das equipes em cada local de trabalho através do gerenciamento diário. Para isso, a estrutura tem que ser diferente (com supervisores e líderes muito mais próximos e com um número menor de subordinados) e com uma formação desses gestores imediatos para que exerçam novos papéis. Por exemplo, o apoio através da cadeia de ajuda, sempre que um problema impeça um membro da equipe de realizar seu trabalho dentro do padrão estabelecido.
O engajamento e a inspiração das pessoas também se dão através de processos concretos, como o gerenciamento diário. Através disso, os propósitos e as metas da organização são desdobrados até cada grupo de trabalho. Os padrões de trabalho são estabelecidos. Os problemas são expostos rapidamente, desencadeando o apoio imediato dos líderes e a solução dos problemas, com a participação dos que realizam o trabalho.
A solução de problemas através do método estruturado conecta os fluxos de valor de produtos e de pessoas. Os processos são melhorados, ao mesmo tempo que os colaboradores são desenvolvidos como solucionadores de problemas, o que gera enorme motivação.
A operação desses processos de gerenciamento diário, que é elemento fundamental do fluxo de valor de pessoas, é realizada nas diversas áreas de trabalho, pelos gestores imediatos.
Mas a implantação e a manutenção disso depende totalmente da área de gestão pessoas, pois demanda alterações no próprio desenho de como o trabalho é organizado e novos conhecimentos e habilidades, para que essas práticas, que estão no coração do sistema lean, funcionem efetivamente.
Racionalizar os processos de gestão de pessoas
Quanto maior a empresa, mais complexa pode ficar a própria estrutura organizacional da área de gestão de pessoas, demandando consequentemente uma abordagem lean de sua estrutura e forma de atuação.
As diversas atividades das áreas de gestão de pessoas desencadeiam uma série de processos administrativos que atendem diretamente aos colaboradores e aos gestores, que são seus clientes internos.
Muitos desses processos são de natureza transacional, como processamento de folha, pagamentos de benefícios etc. Há, inclusive, uma tendência de transferir isso para outras áreas mais operacionais ou para centros de serviços compartilhados, próprios ou terceirizados.
Outras atividades típicas do fluxo de pessoas, como recrutamento e seleção, avaliação do desempenho etc., também demandam processos administrativos, em geral operados pelo back office da área de gestão de pessoas.
A qualidade da execução de todos esses processos é fundamental para o alto nível da excelência da gestão de pessoas, e não pode ser menosprezada.
Quando essas atividades são realizadas de forma burocratizada, desmotivadora, com alto custo e baixa produtividade, com longos prazos de entrega e falhas de qualidade, sem atender com precisão e consistência às necessidades dos clientes internos, isso tira totalmente a credibilidade da área de gestão de pessoas para qualquer ação estratégica.
Para evitar que isso ocorra, a área de gestão de pessoas precisa aplicar o lean a todos seus processos internos através das técnicas largamente difundidas de lean office, tornando-se exemplo de agilidade e eficiência, de forma a obter plena satisfação de seus clientes internos.
As três linhas de ação que destacamos não são estanques. Pelo contrário, estão intimamente ligadas de uma forma que uma depende da outra. Da mesma forma, a realização dessas ações pela área de gestão de pessoas depende da integração desse setor com os esforços lean realizados pelos gerentes de todas as áreas da empresa.
Se em sua companhia a área de gestão de pessoas não está ainda totalmente integrada aos esforços da jornada lean, isso precisa mudar. Procurar desenvolver algumas práticas discutidas aqui pode ser um bom começo.