Participei das últimas duas semanas de eventos da área da saúde. Neles, pude perceber o enorme desafio para a área no Brasil, infinitamente maior do que eu imaginava.
Sabemos que hospitais matam. São conhecidos os problemas com os (maus) cuidados com os pacientes que adentram no sistema hospitalar e sofrem com diversos problemas adicionais. Entrar com um problema perfeitamente curável e sair morto parece ser uma marcante rotina hospitalar.
Neste final da semana, a revista Época publicou uma matéria especial na capa intitulada “Porque a Medicina pode levar você à falência”, que mostra a profundidade da crise no país. Além de matar os pacientes, os hospitais “matam” as famílias, que não conseguem pagar as dívidas devido a coberturas limitadas, mal explicadas, gastos extras não previstos etc.
Isso para quem tem capacidade de pagar um plano privado, pois os que dependem dos serviços públicos morrem pela ausência dos serviços e, quando conseguem ter acesso a eles, morrem por sua péssima qualidade.
O Brasil gasta, per capita, o equivalente aos países desenvolvidos, exceto os EUA. Porém os serviços nesses países são muito mais amplos e abrangentes, além de uma qualidade muito superior.
Há um enorme consenso sobre o mau desempenho do setor. Usuários/pacientes, hospitais, clínicas, laboratórios, planos de saúde, fornecedores de insumos e equipamentos etc, todos parecem concordar que as coisas vão muito mal. Os sintomas são claros e evidentes.
Porém apenas reclamar não adianta. É preciso fazer algo. E, para tanto, o diagnóstico não está claro e não há acordo sobre ele. E, se isso não ocorrer, os remédios a serem tomados poderão não resolver os problemas.
Quais são as estratégias que estão sendo pensadas e implementadas para melhorar o desempenho do setor? Continua o clamor por mais e mais e mais recursos. Porém sabemos que há recursos de sobra no sistema que são mal utilizados.
Uma alternativa parece ser a criação de cada vez mais normas e regulamentos. Sabemos que o sistema não funciona, mas não é por falta de normas. Na verdade, seu excesso mais atrapalha do que ajuda. As normas são criadas para serem desmoralizadas quando o sistema é planejado para não funcionar.
A falta de confiança entre as partes envolvidas e a falta de uma visão integrada e única do setor geram uma quantidade crescente de enganações e fraudes. A falta de transparência gera normas regulatórias que procuram entrar em mínimos detalhes, o que gera a indústria de burlar a norma, mas “dentro da lei”. Ganha quem pode pagar os melhores advogados. Espremem-se ou se enganam os mais fracos e os mais vulneráveis.
Mas as pessoas preferem o “não me engana que eu não gosto” até serem obrigados a chamar advogados para resolver problemas que são essencialmente da alçada médica. O mundo dos profissionais da saúde está sendo substituído pelo mundo dos litígios e dos processos jurídico-penais. Os oftalmologistas vão ter cada vez mais trabalho cuidando de pacientes com problemas cada vez maiores causados pela dificuldade da leitura de letras cada vez menores em contratos cada vez mais ininteligíveis.
Ou seja, mais do mesmo. O que se mostrou ineficaz precisa ser abandonado. Precisamos reverter a equação dos custos demais, cuidados de menos.
O grande problema é a péssima gestão do sistema de saúde. Apesar de gerações formadas em cursos de graduação e pós-graduação, de investimentos em inovações tecnológicas, de iniciativas de profissionalizar e modernizar o setor, “estamos na escuridão total”, como uma colega do setor mencionou em um desses eventos de que participei.
A falta de confiança e transparência, a cultura de esconder problemas e a busca pelos culpados se algo de errado acontece, a falta de dados essenciais e indicadores claros, os dirigentes distantes da realidade e dos problemas reais, administrando via power point, as reuniões e planilhas excel, tudo prejudica o desempenho.
O setor parece entrar em um estágio onde os indicadores financeiros são mais importantes do que os cuidados com os pacientes. O EBTIDA impera sobre indicadores clínicos ligados aos pacientes/usuários. O resultado financeiro é importante, mas como consequência de um bom cuidado ao paciente, e não como objetivo em si.
Tudo parece projetado para funcionar mal, gerando desperdícios, desde que “a conta possa ser paga pelo outro, e o lucro fique comigo”.
Muitas mudanças parecem acontecer no sistema. Algumas são essenciais, como novos métodos de diagnóstico, novos tratamentos etc. Porém muitas mudanças são simplesmente cosméticas e superficiais, dando a impressão e aparência de que há algum progresso e de que as coisas vão bem. Ou até mesmo há pequenas ilhas de bom desempenho que não escondem o fato de que o sistema como um todo vai muito mal.
Entender onde estamos, fazer com que todas as partes concordem sobre isso, definir uma visão comum de futuro e estabelecer um plano concordado de como vamos chegar lá é essencial e urgente.
Há milhares de profissionais dedicados e competentes no setor. Tive a sorte, na minha vida, de contar com profissionais excelentes que sempre fizeram o melhor possível. Porém estamos falando de processos quebrados onde as pessoas, apenas com boa vontade, não serão capazes de melhorá-los.
Hospitais matam. Pacientes e famílias. A continuar assim, as vítimas serão eles mesmos.
Fonte: Revista Época NEGÓCIOS