FINANÇAS E CONTABILIDADE

Os primeiros passos rumo à Contabilidade Lean

O artigo trata da necessidade de repensarmos a contabilidade como ferramenta de gestão. Empresas lean precisam de uma contabilidade gerencial capaz de apoiar a gestão do fluxo de valor na busca pela melhoria contínua.

Empresas que buscam se tornar lean precisam de uma nova contabilidade gerencial para apoiar a gestão dos fluxos de valor. Essa nova contabilidade, que estamos denominando Contabilidade Lean, deve ser parte de um sistema abrangente de imediata identificação e resolução de problemas. Este artigo discutirá as razões da inadequação da contabilidade tradicional e apontará algumas direções para a construção da Contabilidade Lean.


As contabilidades: financeira e gerencial

A contabilidade financeira tradicional, pautada por leis, princípios e convenções de procedimentos, tem por objetivo prover informações sobre a situação patrimonial de determinada empresa e sobre os fluxos financeiros a que esteve sujeita durante um período de tempo. É através dela que os investidores são informados a respeito da remuneração sobre o capital a que tem direito, os credores tomam conhecimento sobre as condições de solvência da empresa, a Fazenda identifica a parte que lhe cabe na forma de tributos a serem recolhidos e os gestores podem enxergar os resultados financeiros do negócio que administram.

Entretanto, a contabilidade financeira não serve como única ferramenta de gestão. Ela atende aos requisitos de controle por parte da Fazenda, investidores e credores - admitindo que fraudes inexistem - mas deixa a desejar enquanto fonte de informações sobre o desempenho da empresa sob diversas dimensões. Além de retratar o passado de maneira estática, a contabilidade financeira apresenta números demasiadamente agregados, não evidencia a eficácia das operações, é pautada por princípios contábeis que destoam da realidade econômica etc.

É por isso que se faz necessária uma contabilidade gerencial. As empresas e seus gestores precisam de outras informações sobre o desempenho da empresa, que a contabilidade financeira tradicional não fornece. Tais informações devem retratar a realidade operacional da empresa e podem ser preciosos elementos de feedback, capazes de nortear as decisões e as ações que delas decorrem. Mas a contabilidade gerencial, da maneira como está estruturada na maior parte das empresas, não nos parece adequada.

Problemas com a contabilidade gerencial nos moldes atuais

A implementação e a manutenção de sistemas - em sua maioria informatizados - de controle gerencial custam caro e demandam uma carga de trabalho considerável. Sob a ótica lean, os esforços de coleta, síntese, interpretação e divulgação de informações sobre a organização é muda (desperdício) tipo 1: não criam valor para o cliente final, porém são imprescindíveis. Não podendo serem eliminados, tais esforços devem ser reduzidos: o trabalho deve ser simplificado e direcionado a apoiar o fluxo de valor. Não só a contabilidade gerencial, mas também a financeira, podem ser classificadas como muda tipo 1.

Outro problema: muitos dos indicadores gerados estão calcados sob premissas da produção em massa, pois são vinculados ao volume e ao ritmo de produção: quanto mais e mais rápido, melhor. Tais indicadores perdem o sentido quando se adota a lógica da puxada, em que o ritmo de produção deve passar a acompanhar o ritmo de compras do cliente. Trato deste problema, especificamente, no artigo intitulado "Indicadores que enganam".

Mas, a grande questão relacionada à contabilidade gerencial é a seguinte: ela se destina a apoiar a "gestão pelos números" em organizações "multi-departamentais". E, aqui, invadimos o íntimo da mentalidade gerencial que prevalece nas organizações há pelo menos 60 anos. Acredito não ser este o espaço para detalhes sobre as origens e características desse "modelo" de gestão, mas aponto alguns problemas que dele decorrem.

"Gestão pelos números" é aquela em que as pessoas responsáveis pela administração do negócio tomam conhecimento sobre seu desempenho através de determinados indicadores e, a partir daí, tomam suas decisões. Os indicadores, sejam financeiros ou não, são elementos de feedback, cuja função é nortear a ação. Essa prática é tão enraizada, que nos é difícil imaginar como seria possível administrar de maneira diferente.

A "gestão pelos números" é resultante da - e também alimenta a - enorme distância entre conhecimento, responsabilidade, feedback e ação que existe nas empresas. Dificilmente essas quatro dimensões andam juntas e remetem a um mesmo grupo de pessoas dentro das organizações. Isso gera um descompasso enorme e torna raras iniciativas de melhoria: quem detém o conhecimento não faz o trabalho, quem faz o trabalho não recebe feedback e não é responsável por ele e todos são "medidos" para que os responsáveis pelo negócio possam entender o que se passa e, só então, agir.

O que permite criar uma dinâmica sustentável de melhoria contínua é a capacidade de aprender. E, só aprendemos quando sabemos em que erramos. Imaginar que o processo de aperfeiçoar sempre pode prescindir daqueles que estão envolvidos diretamente com o trabalho é ilusão e algumas empresas começam a perceber isso; outras já sabem disso há muito tempo...

Uma organização "multi-departamental" é aquela em que o todo pensa e atua em partes e, na maioria das vezes, de maneira conflitante. Assim, empresas são divididas em departamentos, sub-departamentos, unidades de negócio, centros de custos, etc. Não que as empresas não possam ser divididas para serem melhor geridas, afinal de contas existem áreas com escopo de atuação bastante distintos. O problema é que os critérios dessa divisão desprezam o conceito de fluxo de valor.

Assim, não se enxerga de maneira holística o mais importante: as etapas necessárias para entregar valor ao cliente. Repare que o fluxo de valor geralmente permeia diversos departamentos tradicionais: compras, logística, manufatura, manutenção, vendas etc.

A "gestão pelos números" é a causa de ser da contabilidade gerencial e a organização "multi-departamental" define sua estrutura.

A Contabilidade Lean

Uma empresa lean deve dispor de uma contabilidade gerencial voltada a apoiar a gestão do fluxo de valor, evidenciando desperdícios. Deve ser um meio de motivar melhorias através de sinais de feedback significativos, claros e imediatos para aqueles que estão envolvidos com o trabalho. E, acima de tudo, deve estar amparada por um sistema estruturado de resposta a problemas.

A contabilidade gerencial tradicional provê informações "relevantes" às altas cúpulas das empresas, mas inexiste transparência para a maioria das pessoas. O feedback é pouco democratizado e a identificação de problemas é tardia, com risco de não acontecer. Existe uma distância muito grande entre as reais causas de problemas e os "sintomas" que aparecem sob a forma de indicadores nos relatórios gerenciais: as pessoas que estão próximas ao trabalho são capazes de identificar as causas: os gestores só enxergam os "sintomas"; se o "diagnóstico" for equivocado...

Assim, o que se deve buscar é a disponibilização dos sinais certos, para as pessoas certas, no momento certo e criar meios para que a resposta seja rápida, precisa e desencadeada de maneira estruturada e sistemática por aqueles que estão próximos ao trabalho, coordenando e operando o fluxo de valor ou as áreas que o apóiam.

Os coordenadores do fluxo de valor devem estar em contato com elementos de feedback que evidenciem seu desempenho holístico. Os operadores devem estar em contato com indicadores que traduzam o resultado de suas ações individuais e da equipe da qual faz parte e com a qual interage em seu microcosmo de trabalho. As pessoas que atuam em processos de apoio precisam saber se tais processos estão, de fato, apoiando o fluxo de valor ou lhe estão sendo um entrave ao bom desempenho.

Uma abordagem alternativa

Brian Maskell, durante um dos cursos que ministrou no Lean Summit 2002, apresentou um conjunto de indicadores bastante interessante para medir o desempenho do negócio como um todo, dos fluxos de valor e de células, individualmente. Determinadas empresas já adotam alguns desses indicadores, mas poucas o fazem de maneira integrada e efetiva, ou seja, democratizando as informações e criando meios para que as ações sejam desencadeadas. Segue um quadro-resumo com as medidas sugeridas como "starter set" por Maskell:

Strategic Measures
Value Stream Measures
Cell/Process Measures
Sales Growth
Sales per person
Day-by-the-Hour Production
EBITDA
On-Time Delivery
WIP-to-SWIP
Inventory Days
Dock-to-Dock Time
First Time Through
On-Time Delivery
First Time Through
Operational Equip. Effectiveness
Customer-satisfaction
Average Cost per Unit
-
Sales per employee
Accounts Receivable Days Outstanding
-
Fonte: Lean Summit 2002.

Não comentarei os indicadores: coloco-os aqui com objetivo de trazer para a discussão uma abordagem alternativa objetiva. Ainda que se trate apenas de um "starter set" de medidas, como colocou muito claramente Maskell durante o curso, algumas dimensões muito importantes serão evidenciadas se estes indicadores forem utilizados: satisfação do cliente, performance de entregas, níveis de inventário, capacidade de fazer com qualidade de maneira consistente, geração de caixa etc.

Um passo além

A natureza dos indicadores e a transparência que se dá a eles são fatores muito importantes, mas o fundamental está além dos números: o que realmente importa é a maneira como as ações que os sinais de feedback sugerem são postas em prática, por quem e com quais resultados efetivos. O que se quer é criar meios para que as melhorias ocorram naturalmente e que façam parte da própria natureza do trabalho.

Exemplos interessantes dessa integração entre feedback, ação e resultados imediatos vêm da Toyota.

Um deles é o papel que o heijunka box (ou quadro de nivelamento da produção) exerce no chão fábrica. Trata-se de um instrumento visual desenvolvido pela Toyota cuja função é ordenar os cartões kanban em função das restrições do processo produtivo, comunicando o ritmo e o mix de produção. Um operador familiarizado com o quadro é capaz de entender o que está acontecendo em seu ambiente de trabalho com uma simples olhada para ele: é possível saber se a produção está atrasada ou não, o que deve ser produzido e quando.

O heijunka e o contexto em que é usado nos mostram como fazer uso de sinais simples para que aqueles que estão envolvidos com o trabalho, e são responsáveis por ele no caso da Toyota, estejam também informados sobre o resultado de suas ações de maneira imediata. E o que é mais importante: a resposta a problemas é, também, imediata e destinada a evitar que o problema volte a ocorrer....o conhecimento é incorporado ao sistema!

Outro exemplo: quando detectam algum problema, os operadores têm autonomia para interromper o processo de produção. Quer sinal mais claro e imediato de que as coisas não vão bem? Associados à gravidade do problema, outros sinais (visuais e sonoros) são ativados. Tais sinais desencadeiam ações instantâneas e coordenadas, que têm tempo pré-determinado para resolver o problema.

Conhecimento, responsabilidade ação e feedback caminham juntos na Toyota. Os dois exemplos citados, que são parte do chamado "Sistema Toyota de Produção", são materializações emblemáticas dessa união.

Um conceito em construção

Assim, a Contabilidade Lean deve ser entendida como ferramenta para o aprendizado organizacional na busca por estados futuros cada vez melhores. Estamos propondo algo que transcende a contabilidade em si. Trata-se da criação de sistemas estruturados de resposta a problemas, em que as ações, norteadas por sinais criteriosamente escolhidos, são desencadeadas por aqueles que estão envolvidos diretamente com o trabalho e devem ser responsáveis por ele. A Contabilidade Lean precisa ser um meio de aproximar conhecimento, responsabilidade, ação e feedback nas empresas.

Como diz o título deste artigo, tentei aqui esboçar os primeiros passos em direção àquilo que estamos chamando de Contabilidade Lean. Trata-se de um conceito em construção, cujas aplicações práticas ainda são muito incipientes. Acreditamos ser este um tema de extrema importância e estamos ávidos por trocar experiências e conhecimentos. A sua colaboração no desenvolvimento e aplicação da Contabilidade Lean será fundamental. Por isso, pedimos às pessoas - e empresas - que estejam interessadas no conceito e em sua aplicação que entrem em contato conosco. Estamos abertos a críticas, sugestões e desenvolvimento conjunto de conhecimento.

Publicado em 21/09/2005

Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal