Por muito tempo, os treinamentos em logística seguiram abordagens tradicionais, focadas na transmissão teórica de conhecimentos, muitas vezes distantes da realidade operacional. No entanto, com o alto turnover do setor e a crescente dificuldade de retenção e atração de talentos, as empresas precisam capacitar rapidamente e com qualidade seus profissionais, especialmente os da linha de frente, mas também a liderança. Métodos históricos como o Trabalho Padronizado, o Dojo e o TWI ainda são relevantes, e hoje, mais do que nunca, a capacitação, inclusive da liderança, deve partir de um senso de propósito, conectando cada atividade à entrega de valor. Nesse contexto desafiador, este artigo explora como estruturar programas eficazes de capacitação, que fortaleçam tanto a equipe operacional quanto a liderança, criando um ambiente de trabalho mais engajado, com as pessoas resolvendo problemas todos os dias.
Um panorama do desenvolvimento de pessoas e cultura
O setor de logística enfrenta desafios constantes, impulsionados por um alto turnover, a entrada da geração Z no mercado de trabalho e a pressão contínua para reduzir custos operacionais. Nesse cenário, as empresas precisam capacitar seus funcionários recém-contratados de forma rápida e eficaz. Treinamentos convencionais, muitas vezes baseados apenas em aulas teóricas ou manuais extensos, não são suficientes para engajar e preparar os trabalhadores para o ambiente dinâmico da logística. Em contrapartida, métodos históricos, como o Trabalho Padronizado, o Dojo e o Training Within Industry (TWI), ainda se mostram valiosos e garantem consistência na execução das tarefas, acelerando o aprendizado.
Figura 1 — A “Pirâmide de Shook” (Fonte: Adaptado de Shook, 2010)
O Trabalho Padronizado (TP) está nos fundamentos das práticas Lean, estabelecendo condições claras para a realização das atividades, reduzindo variabilidade e aumentando a previsibilidade dos processos. Já o TWI, desenvolvido na Segunda Guerra Mundial, fornece diretrizes práticas para o treinamento de novos funcionários, enfatizando a importância de ensinar pelo exemplo e garantir que os operadores compreendam não apenas o “como”, mas também o “porquê” de cada tarefa. Além disso, o espaço Dojo tem ganhado espaço como uma abordagem eficaz para a capacitação. Inspirada nas artes marciais, o Dojo cria um ambiente estruturado onde os funcionários podem aprender e praticar habilidades em situações controladas antes de aplicá-las no ambiente real.
Com o avanço tecnológico, essas abordagens têm sido potencializadas por novas ferramentas digitais. Treinamentos imersivos com realidade aumentada, simuladores interativos e plataformas de microlearning permitem que o aprendizado ocorra de maneira mais envolvente e personalizada, aumentando a retenção do conhecimento e preparando melhor os colaboradores para desafios reais. No entanto, a capacitação eficaz não deve se limitar a treinamentos pontuais.
O conceito de lifelong learning tem se tornado essencial no ambiente logístico moderno. A aprendizagem contínua é indispensável para a adaptação a novas tecnologias e metodologias, e para o desenvolvimento de habilidades interpessoais e de resolução de problemas, essenciais para a melhoria contínua. A jornada Lean não se trata apenas de aprimorar processos; ela exige um compromisso permanente com o aprendizado e a evolução cultural. E a mudança de cultura não ocorre da noite para o dia.
Para John Shook, ex-executivo da Toyota e primeiro ocidental a liderar a implantação do Toyota Production System fora do Japão, a transformação cultural ocorre por meio da mudança das ações diárias. O modelo tradicional presume que, para mudar comportamentos, é necessário primeiro mudar o pensamento. No entanto, a experiência mostra que o caminho mais eficaz é o inverso: ao mudar o que fazemos, criamos novos valores e atitudes, que, por sua vez, moldam uma nova cultura organizacional. É o que está representado na imagem da “Pirâmide de Shook”. A cultura não se altera instantaneamente, mas se desenvolve gradativamente à medida que as práticas e comportamentos são reforçados no dia a dia.
Assim, para mudar “o que fazemos”, a capacitação deve ser projetada para ensinar técnicas enquanto transforma a maneira como os profissionais trabalham e interagem com os processos. Ao mudar as práticas, mudamos as atitudes e, consequentemente, criamos um ambiente mais propício à inovação e à excelência operacional. A seguir, exploraremos os elementos essenciais para que a capacitação Lean seja verdadeiramente eficaz e capaz de gerar impactos duradouros nas organizações.
O desenvolvimento da liderança para evolução da cultura
Se a transformação Lean nas operações logísticas começa com o que fazemos, ela só se sustenta por meio da liderança. Não basta treinar equipes operacionais para executar processos de forma eficiente; é preciso que os líderes incorporem hábitos e atitudes que orientem as equipes continuamente para a melhoria. O desenvolvimento da liderança se torna, portanto, um elemento essencial para a evolução da cultura organizacional.
A lógica do lifelong learning se aplica com ainda mais força à liderança. Os líderes precisam atualizar suas práticas e comportamentos constantemente. Trilhas de desenvolvimento estruturadas com conceitos e práticas Lean vêm se mostrando eficazes, não apenas pela transmissão de conhecimento, mas por sua conexão direta com desafios reais da organização. Essas trilhas são customizadas conforme a estratégia da empresa e seus desafios específicos, garantindo que cada líder, independentemente de seu nível organizacional, tenha oportunidades reais de aprendizado e aplicação prática.
Mais do que modelos teóricos, esses programas de desenvolvimento envolvem projetos concretos, nos quais os participantes exercitam a liderança na condução de melhorias com suas equipes. Esse aprendizado em ação permite desenvolver simultaneamente soft skills (habilidades comportamentais) e hard skills (habilidades técnicas). A combinação dessas competências forma as power skills da liderança — habilidades que impulsionam transformações duradouras.
A liderança Lean é uma prática fundamentada em princípios essenciais: Desafiar, Ensinar, Trabalhar em Equipe, Escutar, Apoiar, Aprender e “Vá ver você mesmo” (Genchi Gembutsu). No entanto, para que esses fundamentos sejam aplicados de forma consistente e gerem impacto, outros elementos também precisam ser considerados. Segurança psicológica é um deles — sem um ambiente no qual os colaboradores possam expressar ideias, levantar problemas e propor melhorias sem receio de punições, a cultura Lean não se sustenta. Da mesma forma, a capacidade de engajar equipes na logística, um setor tradicionalmente operacional e orientado a metas rigorosas, exige que os líderes desenvolvam um repertório que vá além da técnica, abrangendo aprendizado contínuo, inovação, comunicação assertiva e consciência sobre vieses cognitivos que possam orientar a tomada de decisão.
Outro desafio é o desdobramento da estratégia. Em muitas organizações do setor de logística, as metas e diretrizes definidas pela alta liderança nem sempre são claramente compreendidas nos níveis operacionais. Uma liderança Lean eficaz precisa garantir que cada profissional da logística entenda como seu trabalho contribui para o todo, o que exige competências como liderança inclusiva, confiança e construção de conexões. Esses aspectos não são acessórios, mas sim fundamentais para criar uma cultura de melhoria contínua que perdure no tempo.
Essas abordagens vêm sendo aplicadas com sucesso em diferentes organizações logísticas, demonstrando que o desenvolvimento da liderança é um fator determinante para o impacto e a longevidade das transformações Lean. O fortalecimento dessas competências é capaz de induzir a melhoria de eficiência dos processos e contribuir para um ambiente de trabalho mais engajador, colaborativo e inovador.
Conectando as pessoas ao propósito, processos e tecnologias
Na prática Lean aplicada à logística, a estratégia recomendada para impulsionar e manter resultados envolve uma análise consciente do estado atual dos processos e contando com um propósito claro enquanto se engaja continuamente a equipe. As jornadas de sucesso da gestão Lean na logística consistentemente apresentam a combinação de três fatores: Processos, Pessoas e Propósito. O desenvolvimento contínuo das pessoas se insere como parte desta tríade de fatores e torna-se elemento chave inclusive para a habilitação de novas tecnologias. Veja na Tabela 1.
Tabela 1 — Propósito, Processos e Pessoas conectados para uma jornada de transformação de sucesso
Com base nesses três fatores como premissas, é possível discutir o papel das novas tecnologias na entrega de valor e como o ser humano, devidamente capacitado, atua como um habilitador dessas tecnologias. Na combinação entre transformação digital e automação, a convergência de tecnologias como robôs autônomos, Big Data, realidade aumentada, computação em nuvem, IoT, Inteligência Artificial, entre outras, visa alcançar muita integração com ampla conexão física e virtual, sem fronteiras departamentais e barreiras organizacionais — alinhado à visão ecossistêmica do Lean Supply Chain.
Nesse contexto, a gestão Lean trabalha para fortalecer a capacidade de análise crítica dos processos através das pessoas, visando “pensar Lean” e ser ágil na solução de problemas antes da adoção de tecnologias. A gestão Lean desempenha um papel ativo no desenvolvimento de capacidades analíticas das pessoas em apoio à transformação digital na logística. Sua aplicação tem suscitado o surgimento de novos termos, como Lean Automation e Augmented Lean, que visam orientar as lideranças ainda não familiarizadas com a sinergia criada por esse pensamento com os esforços digitais. Isso vai além de modismos e incursões despreparadas na adoção de transformações digitais que, eventualmente, podem não entregar os resultados esperados.
O que torna a capacitação lean verdadeiramente eficaz
Para compreender o que é essencial na capacitação de profissionais de logística dentro de um sistema Lean, é fundamental diferenciar dois conceitos: treinamento e capacitação. O treinamento foca no ensino de habilidades técnicas específicas para execução de tarefas operacionais e gerenciais no curto prazo. Já a capacitação vai além: envolve o desenvolvimento contínuo de competências, comportamentos e mentalidade para enfrentar desafios reais e complexos da operação logística.
Na logística Lean, a capacitação eficaz não se resume a transmitir conhecimento. O aprendizado só gera valor quando aplicado diretamente em problemas estratégicos da operação, como, por exemplo, o aumento da produtividade, a melhoria do OTIF (On-Time In-Full), a redução de atrasos ou a otimização do fluxo de informação e de materiais. A lógica Lean estabelece que toda capacitação deve estar vinculada à solução de desafios concretos do negócio. Do contrário, há o risco de desperdiçar tempo e recursos em treinamentos sem impacto real na performance da cadeia de suprimentos.
O ponto central de uma capacitação eficaz está na pergunta: “Que problema precisamos resolver?”. Essa reflexão é essencial para alinhar o desenvolvimento das equipes com os objetivos estratégicos da organização. Para que isso aconteça, é necessário um ambiente psicologicamente seguro, no qual os problemas possam ser discutidos abertamente e trabalhados sem receios ou barreiras hierárquicas. Quando a capacitação está conectada aos desafios reais da logística, os profissionais se tornam protagonistas da melhoria contínua, atuando com engajamento, e impulsionam a transformação operacional.
A efetividade de uma capacitação Lean se mede pelo impacto gerado. Se após um programa de capacitação não houver avanços tangíveis na confiabilidade das entregas, na redução de desperdícios ou na melhoria da eficiência operacional, então tempo e recursos terão sido desperdiçados. O verdadeiro aprendizado em logística Lean acontece na prática, alinhando conhecimento, engajamento e propósito para entregar resultados duradouros.
A experiência do Programa Prático de Formação Lean (PPFL) em logística e supply chain
É fato que a transformação Lean na logística exige mais do que o domínio de conceitos: requer a aplicação prática do aprendizado para resolver desafios reais da operação. O Programa Prático de Formação Lean (PPFL), oferecido pelo Lean Institute Brasil, é um exemplo que há anos tem proporcionado essa conexão entre capacitação e impacto concreto, formando especialistas e lideranças, de diferentes gerações e níveis de senioridade, para serem capazes de conduzir melhorias duradouras em suas organizações.
O PPFL combina uma base conceitual sólida com experimentação prática, assegurando que os participantes desenvolvam habilidades técnicas e comportamentais essenciais à lógica da melhoria contínua. Um dos instrumentos do PPFL é a aplicação do Formulário A3, ferramenta estruturada para a resolução de problemas baseada no ciclo PDCA (“Plan-Do-Check-Act”, ou “Planejar-Fazer-Verificar-Agir”, em português), permitindo que cada participante desenvolva um projeto real alinhado às necessidades estratégicas da empresa.
O PPFL tem sido oferecido em turmas abertas, que reúnem profissionais de diferentes empresas, e na versão in company, customizada para atender às demandas específicas de cada organização. No formato in company, a estrutura do programa (com os módulos que abrangem as principais abordagens e ferramentas Lean para a logística) é mantida, e o conteúdo é adaptado conforme os desafios prioritários da empresa. Antes do início da capacitação, há um alinhamento estratégico com a alta liderança para garantir que os projetos desenvolvidos estejam conectados à pergunta do “problema que precisamos resolver”. Esse direcionamento evita dispersão de esforços e assegura que a capacitação gere retorno real para o negócio.
No formato in company, outro fator que tem sido essencial para o sucesso do programa é a composição multidisciplinar e multissetorial dos participantes. Problemas logísticos frequentemente têm raízes em diferentes elos da cadeia de suprimentos, e a participação de profissionais de áreas como recebimento, transportes, prevenção de perdas (no caso da logística do varejo), compras, entre outros, amplia a compreensão das causas sistêmicas. A formação de grupos mistos enriquece a análise dos problemas, proporcionando diferentes perspectivas e favorecendo soluções mais robustas.
A experiência do PPFL em logística demonstra que o desenvolvimento estruturado de pessoas, conectado ao propósito da organização e aos desafios estratégicos, acelera a evolução da cultura Lean. Ao formar líderes capazes de multiplicar esse conhecimento internamente, o programa tem fortalecido a construção de um ambiente orientado à melhoria contínua, ao engajamento e à busca por eficiência, gerando impactos duradouros na operação e nos resultados organizacionais.
Transformação real pela capacitação lean eficaz com resultados duradouros
A capacitação Lean é essencial para a consolidação da jornada de melhoria contínua e para uma transformação organizacional profunda. No contexto da logística, para que essa capacitação seja eficaz, é fundamental que o conhecimento adquirido possa ser aplicado a problemas relevantes, alinhados com os objetivos estratégicos da organização. A pergunta “Que problemas precisamos resolver?” deve ser o ponto de partida para qualquer iniciativa Lean (seja através do TWI, Trabalho Padronizado, PPFL ou qualquer outra abordagem), garantindo que a capacitação traga benefícios reais para o negócio.
A eficácia de um programa de capacitação se reflete na capacidade das equipes de solucionar problemas que afetam diretamente o desempenho da cadeia de suprimentos e a experiência do cliente. Atrasos, falhas no planejamento, baixa produtividade e oscilações no OTIF são exemplos de desafios que demandam profissionais preparados para analisar, compreender e agir com base em princípios Lean. Assim, antes de iniciar qualquer programa de capacitação, é fundamental um alinhamento estratégico com a alta liderança para definir os temas prioritários a serem abordados. A formação de grupos de trabalho mistos, com participantes de diversas áreas, é uma prática recomendada, permitindo abordar problemas de maneira holística e encontrar soluções mais eficazes.
O Programa Prático de Formação Lean (PPFL) é um exemplo de abordagem eficaz que combina os conceitos, ferramentas e abordagens da logística Lean com a prática. Ao longo do programa, os participantes desenvolvem projetos focados em problemas reais da logística, impulsionando a melhoria contínua e promovendo um ambiente colaborativo.
Entretanto, a transformação Lean vai além da simples adoção de ferramentas e técnicas. Ela requer uma mudança cultural e um compromisso contínuo com a melhoria. É fundamental criar um ambiente onde o aprendizado contínuo seja incentivado, a segurança psicológica seja garantida pela liderança (que também deve ser capacitada continuamente), e a resolução de problemas torne-se parte da cultura organizacional. A formação Lean desempenha um papel vital no desenvolvimento das capacidades analíticas e gerenciais das pessoas, apoiando a transformação digital e a criação de sinergias entre práticas Lean e tecnologias emergentes. O desenvolvimento das equipes e lideranças não pode ser uma ação isolada, mas um processo contínuo que fortalece a conexão entre as pessoas, os processos e as tecnologias.
Enfim, a capacitação Lean, quando bem estruturada e aplicada a desafios concretos, torna-se um motor de evolução para a logística e a cadeia de suprimentos. Somente ao integrar aprendizado e prática de forma consistente, as organizações conseguem alcançar ganhos sustentáveis em produtividade, qualidade e confiabilidade operacional, consolidando a transformação Lean como um diferencial competitivo de longo prazo.
Referências
Shook, John (2010). How to Change a Culture: Lessons From NUMMI. MIT Sloan Management Review, Vol. 51. No. 2. Winter, 2010.
Bonfanti, Iris C. P.; Bortolo, Otávio (2020). Acabou o meu treinamento sobre Lean, e agora? Artigos do Lean Institute Brasil. Disponível em: https://www.Lean.org.br/artigos/725/acabou-o-meu-treinamento-sobre-Lean-e-agora.aspx. Acesso em: 17/02/2025.