Infraestrutura fluida e ecossistemas integrados
Uma das primeiras constatações ao chegar à China é o papel central que a infraestrutura exerce na fluidez dos processos. Aeroportos como os de Pequim, Xangai e Xiamen impressionam pela modernidade e pela integração com sistemas de transporte público, permitindo deslocamentos rápidos, previsíveis e sem necessidade de transferências desnecessárias. Essa lógica de eliminação de esperas e desperdícios, típica da filosofia Lean, se estende aos modais urbanos, à movimentação entre cidades e ao transporte de cargas.
A conectividade entre as infraestruturas físicas e digitais favorece o fluxo contínuo, princípio essencial do pensamento Lean. A eficiência emerge como palavra‑chave, perceptível desde a chegada aos aeroportos — conectados por metrô ao centro urbano — até a experiência fluida em redes de transporte intermunicipal. Ver Figura 1.
Figura 1 — À esquerda: metro de Shangai; acima, à direita; aeroporto de Beijing;
abaixo, à direita, estação do trem-bala (Fonte: Autores)
Embora muitos considerem ferramentas como Google Maps, WhatsApp e Uber indispensáveis, a China desenvolveu versões locais que operam com igual ou maior eficácia. A vida cotidiana, sobretudo nos grandes centros, está completamente interligada por meio de smartphones. Estar conectado não é um diferencial, mas uma condição básica para acessar serviços.
Essa digitalização vai além da automação: ela integra, em um mesmo ecossistema, logística, pagamentos, mobilidade e experiência do consumidor. Para acessar o trem de alta velocidade, por exemplo, basta apresentar o número do passaporte utilizado na compra da passagem. Para pagamentos, aplicativos integram bancos, restaurantes, transporte público, eventos e comércio, eliminando filas, papéis e barreiras.
O resultado é a redução significativa de tempos de espera e a eliminação de etapas desnecessárias — exemplos concretos da remoção de desperdícios (muda), especialmente os relacionados à movimentação e ao excesso de processamento. A jornada do cliente (ou o fluxo do material) é desenhada para fluir sem interrupções, com mínimo atrito.
No que diz respeito aos meios de pagamento, a China vai além da adoção de tecnologias como QR codes e carteiras digitais, ampliando a integração. Muitas das transações (de um lanche na rua a uma passagem de trem) podem ser concluídas por meio de aplicativos móveis. A confirmação de pagamento é instantânea e integrada aos sistemas operacionais dos serviços, aproximando‑se do conceito de uma logística invisível ao consumidor.
Um caso no setor de metais: escala, eficiência e política industrial
Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI)1, o Produto Interno Bruto (PIB) da China cresceu de US$ 1,21 trilhão para US$ 18,27 trilhões entre 2000 e 2024; um avanço sem precedentes que nenhum outro país conseguiu igualar nesse período. Esse crescimento foi impulsionado, em grande medida, pelo comércio internacional. Apenas em 2023, a China foi responsável por 17,5% das exportações mundiais, segundo Eurostat e UNCTAD2. No entanto, essa posição de destaque traz consigo uma fragilidade: quando a economia global desacelera, os efeitos são sentidos internamente. Para reduzir essa exposição e sustentar o crescimento, o Estado desempenha um papel ativo no fomento a novos projetos, com destaque para iniciativas em infraestrutura.
Hoje, a China ocupa uma posição central nas cadeias globais de suprimentos, especialmente em setores estratégicos como o de metais e minerais. O país lidera em consumo e refino de matérias‑primas críticas, como cobre, lítio, cobalto, níquel, antimônio e germânio. A estrutura logística que sustenta esse desempenho combina infraestrutura moderna, digitalização avançada e políticas públicas voltadas à eficiência e inovação. Durante uma imersão no setor de metais, foi possível observar como os princípios da gestão Lean, com foco em fluxo, redução de desperdícios e uso intencional de tecnologias, estão presentes de forma concreta e em larga escala.
Diferente de modelos baseados exclusivamente nas dinâmicas de mercado, o governo chinês atua como coordenador da estratégia logística e industrial, incentivando a construção de fábricas e corredores logísticos e direcionando recursos para setores considerados estratégicos. Um exemplo claro disso está na evolução da participação da Ásia na produção global de cobre refinado, que saltou de 19% em 1990 para 60% em 2023, impulsionada principalmente pela expansão chinesa, conforme dados do International Copper Study Group. Somente a China respondeu, em 2023, por 45% da produção mundial de cobre refinado, totalizando 12 milhões de toneladas. No mesmo período, as Américas viram sua participação cair de 39% para 15%, o que evidencia uma mudança significativa na geopolítica da indústria do cobre.
O investimento em novas fábricas ocorre mesmo em contextos de baixa utilização da capacidade instalada. No setor de metais básicos, por exemplo, a taxa de utilização está entre 60% e 70%, segundo dados da Shanghai Metals Market3. Essa decisão revela uma visão de longo prazo, sustentada por um governo centralizado que prioriza a geração de empregos e o crescimento econômico, ainda que isso implique operar abaixo do ponto de eficiência no curto prazo.
Esse modelo, no entanto, exerce pressão constante sobre as empresas, que se veem desafiadas a inovar e a reduzir desperdícios. A busca pela excelência operacional se torna um caminho necessário, sobretudo quando há capacidade ociosa. Nesse contexto, os princípios do pensamento Lean, aplicados à gestão da capacidade produtiva e ao uso racional de recursos, ganham ainda mais relevância.
Eficiência e inovação no reaproveitamento de metais
A China se consolidou como o maior consumidor de metais do mundo. Entre os insumos mais demandados estão aqueles considerados críticos para tecnologias de energias renováveis e produtos eletrônicos, como lítio, níquel, cobalto e terras raras. No caso do cobre — metal essencial pela sua alta condutividade elétrica —, o país lidera o consumo global desde 2002. Figura 2 — Participação na produção de cobre refinado por região, 1990 versus 2023 (Fonte: International Copper Study Group)
Figura 2 — Participação na produção de cobre refinado por região, 1990 versus 2023
(Fonte: International Copper Study Group)
A ampliação da demanda por painéis solares, turbinas eólicas, semicondutores e baterias tem estimulado investimentos que vão além da mineração. Empresas chinesas vêm expandindo as operações fora do território nacional e fortalecendo a cadeia de reciclagem e reaproveitamento de metais. Restrições à importação de materiais com baixo teor metálico impulsionaram o desenvolvimento de métodos eficientes de recuperação de componentes valiosos. O que antes era considerado resíduo passou a ser tratado como recurso.
Essa dinâmica contribuiu para que a indústria chinesa evoluísse em ritmo acelerado, especialmente no que diz respeito à qualidade e aplicação dos produtos finais. Quase todos os metais vêm sendo transformados, seja por novas técnicas de extração que viabilizam produtos antes inacessíveis, seja pela intensificação da recuperação de valor a partir de rejeitos ou materiais reciclados.
No caso do níquel, o domínio chinês de tecnologias como o High Pressure Acid Leaching (HPAL) marcou um ponto de virada. Esse processo permite a extração eficiente do metal a partir de minérios oxidáveis, mais comuns nas reservas descobertas recentemente. Antes do HPAL, esses minérios eram utilizados, sobretudo, para produzir níquel classe 2, voltado à indústria do aço inoxidável. Com o uso dessa tecnologia, o níquel obtido atinge o grau necessário para compor baterias de lítio, abrindo novas oportunidades de mercado.
No setor de chumbo, a proibição da importação de baterias usadas teve como objetivo evitar o ingresso de resíduos no país. A medida, embora positiva do ponto de vista ambiental, provocou escassez de matéria-prima frente à elevada capacidade instalada das refinarias. Como resultado, os preços das baterias usadas subiram no mercado interno. Hoje, a taxa média de utilização das refinarias de chumbo na China está abaixo de 70%. A resposta da indústria tem sido aprimorar seus processos para elevar a recuperação de chumbo e também de outros metais presentes nas baterias, como estanho, antimônio e elementos de maior valor agregado.
O antimônio, por exemplo, é utilizado em retardantes de chama, baterias e aplicações na indústria de defesa. Empresas chinesas dominam técnicas que permitem separar o antimônio do chumbo em minérios mais complexos, além de recuperar metais nobres como o ouro. Essa capacidade amplia o leque de matérias-primas viáveis e fortalece a posição do país no mercado global.
A lógica Lean, com foco na criação de valor e uso eficiente dos recursos, se conecta diretamente a essa realidade. O refinamento de processos que permite extrair antimônio, estanho, plásticos e outros materiais a partir de resíduos é um exemplo de Kaizen aplicado à cadeia de recuperação de valor. Esse modelo vem impulsionando a inovação e elevando o patamar de eficiência da indústria chinesa, que se consolida como protagonista na produção de tecnologias baseadas em metais estratégicos.
A NOVA FRONTEIRA: INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E LOGÍSTICA ORIENTADA POR DADOS
Com infraestrutura robusta e digitalização já consolidada, a China dá novos passos rumo a níveis mais altos de eficiência, apostando no uso intensivo de Inteligência Artificial (IA). O comportamento digitalizado da população e das empresas cria condições favoráveis para a adoção de soluções preditivas, sistemas autônomos e decisões tomadas em tempo real.
Esse avanço tecnológico tem outro efeito direto: o aumento da demanda por metais. A introdução da plataforma de IA DeepSeek, já integrada por empresas chinesas de telecomunicações e tecnologia, é um exemplo do movimento em curso. Nos Estados Unidos, plataformas como o ChatGPT também vêm se expandindo. À medida que o uso da IA se dissemina no cotidiano, cresce a necessidade por infraestrutura computacional, composta por servidores e centros de dados de alta capacidade. Isso implica a ampliação dos sistemas de transmissão e distribuição de energia.
Nesse contexto, metais como cobre e alumínio tornam-se ainda mais relevantes, já que são amplamente utilizados na condução elétrica, no resfriamento de equipamentos e na estrutura dos data centers. Além deles, elementos como índio, gálio e germânio ganham visibilidade devido à crescente complexidade dos componentes tecnológicos.
A China vem alinhando sua estratégia industrial a essas tendências, muitas vezes atuando como protagonista do movimento. Antecipando o crescimento da demanda, o país fortalece suas cadeias de suprimentos, investindo em mineração, processamento e tecnologias de reciclagem, tanto no território nacional quanto no exterior. Com isso, amplia a presença em setores estratégicos da nova economia digital, onde os metais assumem papel central no desenvolvimento tecnológico.
Do ponto de vista Lean, esse cenário pode ser interpretado como a combinação da tecnologia e do propósito de valor para dar sentido à transformação. A aplicação da IA permite detectar desvios de forma rápida, agir com base em dados confiáveis e manter a estabilidade dos fluxos mesmo em contextos instáveis e incertos. Trata-se de uma extensão do pensamento que valoriza o uso eficaz dos recursos, o controle da variabilidade e a melhoria contínua.
Pistas para fortalecer cadeias de suprimentos
A experiência chinesa revela que uma cadeia de suprimentos eficiente não depende apenas de tecnologias ou ferramentas pontuais, mas da combinação entre estratégia, infraestrutura, digitalização e práticas operacionais bem alinhadas. Nesse contexto, a gestão Lean, ao conectar pessoas, processos e propósito, dialoga com essa abordagem e pode inspirar a transformação de cadeias produtivas também no Brasil, inclusive no setor de metais.
Adotar uma mentalidade voltada à melhoria contínua, reduzir desperdícios e fortalecer a colaboração entre os elos da cadeia são passos que contribuem para elevar a competitividade do país no cenário global. O que se observa na China vai além de uma vitrine tecnológica: trata-se de um exemplo prático de como se estrutura um ecossistema produtivo resiliente, com visão sistêmica e disciplina na execução.
O avanço chinês no setor de metais não ocorreu por acaso. O país antecipou tendências como a transição energética e a digitalização e as incorporou à sua estratégia de desenvolvimento. Atuou desde a aquisição de matérias-primas até a exportação de produtos de alto valor agregado, passando pelo refino e pela manufatura. Esse movimento permitiu à China ocupar um papel central, não só na produção, mas também no controle dos fluxos globais de metais críticos.
O caso chinês mostra que a construção de uma cadeia de suprimentos integrada e eficiente depende de decisões estratégicas e de uma execução coordenada entre diferentes frentes. Para o Brasil, isso representa um aprendizado relevante. Não basta extrair ou exportar matérias-primas, é preciso avançar em direção a um papel mais ativo nas cadeias globais de valor que moldam a economia do século XXI.
Este artigo propôs uma reflexão baseada na experiência recente de um dos autores na China, com foco específico na cadeia de metais. Não se trata, portanto, de um diagnóstico amplo ou definitivo sobre a realidade chinesa. Diversas outras dimensões — técnicas, políticas e sociais — permanecem fora do escopo deste trabalho, por demandarem abordagens próprias e mais aprofundadas. A intenção aqui foi compartilhar observações e aprendizados que, mesmo a partir de um recorte, possam inspirar discussões relevantes e oferecer pistas para o fortalecimento das cadeias de suprimentos no Brasil.