CULTURA E LIDERANÇA

'Felicidade no trabalho' é possível, mas depende da gestão

Flávio Battaglia
Mesmo com o avanço do debate sobre saúde mental e bem-estar, a noção de que pessoas felizes trabalham melhor segue distante da prática cotidiana em boa parte das organizações

O trabalho historicamente carrega uma carga simbólica negativa. Sua etimologia, ligada ao latim “tripalium” (instrumento de tortura), reforça uma tradição cultural que associa esforço à dor e desempenho a sacrifício. Essa visão moldou, por muito tempo, premissas de gestão baseadas em controle, obediência e resiliência a pressões — mais do que em desenvolvimento humano e propósito.

A ideia de que o trabalho possa ser também uma fonte legítima de felicidade ainda enfrenta barreiras conceituais e operacionais. Em muitos contextos, satisfação é tratada como algo secundário, quase um “bônus eventual”, condicionado a metas e resultados. Enquanto isso, a sobrecarga continua sendo interpretada como sinal de comprometimento, e o desgaste emocional, como parte do jogo. Mesmo com o avanço do debate sobre saúde mental e bem-estar, a noção de que pessoas felizes trabalham melhor segue distante da prática cotidiana em boa parte das organizações.

Em contrapartida, evidências demonstram que ambientes saudáveis geram melhores resultados. Pesquisas da Gallup indicam que colaboradores engajados apresentam até 17% mais produtividade, entregam 21% mais lucratividade e têm maior eficácia em vendas. Ambientes com alto engajamento também favorecem criatividade e resolução de problemas. O Google, por meio do Projeto Aristóteles, identificou que equipes com segurança psicológica superam outras em até 67% nos principais indicadores de desempenho. Esses números colocam o bem-estar no centro da estratégia — não como gentileza, mas como força estrutural da vantagem competitiva.

Mas o que sustenta esse tipo de ambiente? Estudos convergem para cinco fatores essenciais: autonomia na execução das tarefas, clareza de propósito, reconhecimento autêntico, relações de confiança e oportunidades reais de crescimento. Quando esses elementos estão presentes, a performance melhora de forma consistente.

Nesse contexto, a maneira lean de gerenciar mostra-se especialmente relevante. Mais do que buscar eficiência operacional, ela representa uma filosofia de gestão centrada nas pessoas, fundamentada no respeito ao ser humano. Princípios como segurança psicológica para relatar problemas, melhoria contínua, eliminação de desperdícios e liderança que desenvolve criam as condições necessárias para que as pessoas cresçam enquanto contribuem decisivamente para o sucesso do negócio.

Com lean, a liderança abandona o modelo tradicional de comando e controle e assume a responsabilidade por criar as condições para que o trabalho aconteça com clareza, estabilidade e foco no aperfeiçoamento. Isso exige uma atuação direta na remoção de obstáculos, no desenvolvimento de competências e na construção de autonomias — operacional e decisória. Mais do que direcionar, o líder estrutura o ambiente. Essa mudança de postura fortalece a cultura de responsabilização clara, acelera a resolução de problemas e sustenta o desempenho ao longo do tempo.

Ignorar essa transformação tem consequências concretas. Em um cenário de escassez de profissionais qualificados, aspectos como ambiente de trabalho, coerência entre discurso e prática e clareza de propósito influenciam diretamente a decisão de permanecer na empresa ou buscar novas oportunidades.

Organizações que não oferecem condições estruturadas para o desenvolvimento das pessoas perdem talentos para aquelas alinhadas a essa nova lógica. A disputa por profissionais se tornou, essencialmente, uma disputa por ambientes capazes de promover aprendizado contínuo, estabilidade nas relações e resultados consistentes.

A antiga oposição entre felicidade e desempenho perde força à medida que se revela insustentável. O que antes parecia um dilema — entre ser produtivo ou estar satisfeito — hoje se mostra uma falsa escolha. Ambientes em que o trabalho é bem estruturado, o propósito é claro e as relações são respeitosas tendem a gerar não apenas melhores resultados, mas também vínculos mais duradouros.

Tratar a felicidade e a satisfação no trabalho como parte do sistema de gestão — e não como efeito colateral — é o passo que diferencia organizações preparadas para a complexidade do presente daquelas ainda presas a modelos esgotados.

Publicado em 22/07/2025

Autor

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil