DESENVOLVIMENTO DE PRODUTOS E PROCESSOS

Lean sem Jidoka é apenas Fordismo

Michael Ballé
Lean sem Jidoka é apenas Fordismo
Ninguém entende os seres humanos tão bem quanto os próprios humanos, e o Jidoka é a chave para aprender com seus clientes e criar produtos e serviços cada vez melhores.

Por que você adota práticas lean? É para tentar criar produtos cada vez melhores? Ou é para melhorar o fluxo e aumentar a produtividade?

Se você olhar mais de perto a maioria dos programas lean, encontrará por trás deles o pensamento de A Meta, de Goldratt: se melhorarmos o fluxo (removendo gargalos), aumentamos a capacidade produtiva e reduzimos o uso de recursos, tudo para ganhar mais dinheiro (que, segundo ele, é O objetivo de qualquer negócio).

Sakichi Toyoda observava as dificuldades humanas na produção de algodão quando buscou reduzir tanto os defeitos (problemas no uso pelos operadores) quanto os esforços excessivos (dificuldades em realizar o trabalho). Foi nesse contexto que ele mecanizou o tear, inventando a troca automática da lançadeira, e criou o famoso conceito de jidoka, com tiras finas de metal que testavam a tensão do fio de algodão e paravam a máquina caso o fio se rompesse. Ele estava resolvendo problemas humanos com dispositivos automáticos. Seu objetivo era criar teares cada vez melhores, assim como, mais tarde, o objetivo de Kiichiro Toyoda seria criar automóveis cada vez melhores.

 

O que isso significa, de forma concreta?

Nossa sociedade é construída a partir da criação de dispositivos mecânicos que transformam o estilo de vida ao substituir o trabalho humano em atividades que vão desde o transporte (trens), passando pela indústria têxtil (máquinas de costura e também equipamentos de fiação), até a agricultura (tratores). A proposta desses produtos é tornar você autônomo – ou seja, não precisar mais realizar o trabalho diretamente, nem pedir que outra pessoa o faça por você. Pense nas máquinas de espresso, hoje onipresentes em escritórios ao redor do mundo: antes, você precisava ir até uma cafeteria para tomar um cafézinho; agora, com essas máquinas e cápsulas, pode fazer um por conta própria, sem ajuda de ninguém. O mesmo vale para máquinas de lavar roupas, lava-louças, editores de texto e assim por diante.

Ainda assim, para todo aparelho, existem duas dimensões conduzidas por humanos:

  • Produto: a ferramenta mecânica que você pode usar de forma autônoma para obter o que deseja.

  • Serviço: a pessoa com quem você quer falar quando tiver problemas com a máquina.

A autonomia, com qualquer aparelho, exige um nível de habilidade proporcional à dificuldade do que se pretende fazer com a máquina. A maioria dos produtos, após a fase inicial – e quase sempre desagradável – de “começar a usar” (aquela etapa em que a maioria de nós se vira, resmungando, com a leitura do manual), pode ser utilizada com habilidades mínimas em casos simples, mas exige muito mais conhecimento em situações de uso mais complexas. Nesse ponto, o cliente tem duas opções: aprender a realizar o trabalho por conta própria – o que talvez não seja a maneira preferida para investir seu tempo – ou buscar alguém que faça por ele e lhe mostre como se faz.

Gestores obcecados por eficiência operacional acreditam que o objetivo da automação é eliminar os custos com recursos humanos. Sonham com sistemas totalmente automatizados que os clientes possam usar sem nunca precisar falar com alguém. Depois, não entendem por que os clientes desprezam sua oferta, buscam alternativas e abandonam a marca assim que têm a chance. Os clientes não estão procurando um produto em específico, eles querem uma solução bacana para seus problemas. Eles não querem apenas qualquer cafezinho – querem um que seja simples de fazer, saboroso, que saia de uma máquina estilosa, fácil de usar com os amigos e com acesso rápido a suporte quando algo dá errado.

A grande sacada do jidoka é que aparelhos mecânicos são apenas isso – mecânicos. Como não possuem julgamento humano, eles inevitavelmente:

  1. Produzem defeitos – como poderiam saber qual nível de qualidade um ser humano espera (algo que também é contextual)?
  2. Quebram – como poderiam monitorar e substituir suas próprias peças?
  3. Jamais aprendem a criar a próxima geração de máquinas melhores.

Todo equipamento produzido tem um serviço ligado a ele. Isso exige que alguém ajude o usuário com:

  • Usar a máquina da maneira correta para obter os resultados desejados, de acordo com o nível de complexidade do uso.

  • Consertar a máquina quando ela apresentar falhas.

  • Aprimorar a máquina, criando um modelo mais inteligente, mais fácil de usar e com melhor aparência.

Jidoka é sobre o desenvolvimento da parte humana de um produto. Não precisamos de pessoas apenas para vigiar máquinas; precisamos delas para identificar os problemas dos clientes e resolvê-los com cordialidade e eficiência. Ter caixas automáticos em uma loja de departamentos é uma ideia inteligente, desde que se entenda que alguém ainda precisará estar presente e ser treinado em atendimento (primeira impressão, disponibilidade, tom de voz, resolução de problemas, etiqueta etc.) para criar uma experiência fluida e agradável para os clientes.

Se essa pessoa for treinada em jidoka, também será capaz de reconhecer todos os problemas do sistema automatizado e colaborar com os engenheiros para melhorar a próxima versão. Esse é o ponto de entrada para a análise de valor (corrigir falhas em máquinas já em produção) e para a engenharia de valor (aperfeiçoar a próxima geração do produto).

Do ponto de vista de Sakichi, o objetivo de uma empresa não seria ganhar dinheiro, mas beneficiar a sociedade ajudando as pessoas a fazerem as coisas com autonomia, por meio de produtos que são aprimorados continuamente. Buscar melhorar o fluxo e a produtividade por meio da redução dos lead times é uma excelente forma de revelar problemas de programação da produção e de logística, mas isso contribui pouco para a criação de produtos cada vez melhores. Para isso, precisamos do jidoka: a capacidade de detectar defeitos ou desgastes; entender onde o processo se desvia do trabalho padrão; parar a linha em vez de deixar o problema se agravar; fazer com que a gestão reaja rapidamente para analisar e corrigir a falha, e incorporar essa correção no fluxo de trabalho e, depois, na próxima geração de máquinas.

Jidoka é mais do que uma forma de operar linhas de produção com fluidez e reduzir o custo de carregar defeitos no fluxo. Trata-se de um modo fundamental de ensinar as pessoas sobre produtos e equipamentos, para que elas compreendam melhor a relação entre automação, contato humano e resolução de problemas. Jidoka diz respeito a entender o papel indicado para os humanos (nunca usar uma pessoa para realizar trabalho de máquina), para as máquinas (atribuir a elas capacidade de autoavaliação) e da interação entre ambos (ensinar os humanos a diagnosticar problemas e projetar máquinas melhores).

Na era da Inteligência Artificial, à medida que automatizamos tarefas intelectuais que antes considerávamos exclusivas dos seres humanos, vamos precisar — e muito — das habilidades de jidoka para redefinir onde o trabalho deve ser humano e onde deve ser da máquina. Ainda assim, mesmo que você use o ChatGPT para escrever todos os seus códigos (ou suas redações) ainda enfrentará problemas relacionados a como os clientes utilizam o sistema gerado (ou como o professor avalia o texto), como a IA gera absurdos ou perde o contexto, e como aprimorar o discernimento na concepção do que você faz.

Nesta era de divisão do trabalho, é fácil reduzir o lean a “aquela coisa de produção” e aplicar suas técnicas apenas para melhorar o fluxo, aumentar a produtividade e – talvez – economizar alguns recursos no processo. No entanto, o verdadeiro objetivo do pensamento lean é criar produtos cada vez melhores, com preços acessíveis e menor custo de produção. Certamente, o just-in-time faz parte disso, mas seu foco está principalmente no planejamento, na organização e na movimentação de itens – não em seu design. Já o jidoka, tanto na capacidade de reconhecer problemas quanto na separação entre trabalho humano e trabalho de máquina, é o pilar essencial para aprender sobre a interface entre produto e serviço e, de forma orgânica, desenvolver ofertas mais completas e aprimoradas, com melhores produtos e serviços que aumentem a satisfação dos clientes.

Sem jidoka, lean se torna apenas uma forma estendida do fordismo – ocasionalmente útil, mas longe de ser transformador. Pergunte a si mesmo mais uma vez: “Por que eu penso lean?” Como você pretende ajudar a empresa a criar produtos cada vez melhores? A resposta está tanto no atendimento quanto na produção e no design – máquinas jamais compreenderão os sentimentos ambíguos e os dilemas complexos que os humanos enfrentam naturalmente todos os dias. Só os humanos conseguem entender o que os humanos realmente buscam, que problemas vivem e que tipo de soluções interessantes desejam.

Publicado em 24/07/2025

Autor

Michael Ballé
Autor do livro Lean, coach executivo e cofundador do Institut Lean France

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