GERAL

Se você pensa que lean é inerentemente japonês, pense novamente

Katie Anderson

DESTAQUE - Quantas vezes ouvimos pessoas dizerem que lean não é para eles porque “é uma coisa japonesa”? Depois de passar 18 meses no Japão, o autor explica por que a cultura do país não é necessariamente “lean por natureza”.

Quase dois anos atrás, minha família e eu nos mudamos para Tóquio. Como lean coach e entusiasta lean, você pode imaginar minha emoção. Comecei com a intenção de aprender profundamente sobre a cultura de negócios, a liderança e a aplicação de kaizen (japonês para “melhoria contínua”) do país. Vi meu tempo no Japão como uma oportunidade única para imergir no ambiente onde os princípios que chamamos de “lean” nasceram.

Agora, depois de 18 meses passados no Japão (acabamos de voltar para a Califórnia), estou refletindo sobre o que aprendi e como a experiência vivendo lá tem moldado meu próprio pensamento e compreensão do lean. Quero compartilhar alguns desses pensamentos com você.

O principal tema que emergiu de minha reflexão é que a cultura japonesa não é igual à cultura Toyota. O que chamamos de “lean” não é inerentemente fácil para os japoneses, e existem traços culturais que permitem e inibem a adoção dos princípios do Sistema de Produção Toyota (STP).

LEAN É UMA COISA JAPONESA… OU SERÁ QUE NÃO?

Nós, da comunidade lean ao redor do mundo, vamos ao Japão para aprender os segredos do kaizen visitando a mais experiente das organizações lean - a Toyota - e para ver como os outros adotaram os princípios que a Toyota iniciou. Foi um pouco surpreendente, no entanto, descobrir que o que chamamos de "lean" no Ocidente não é inerentemente fácil para os japoneses, como muitos de nós acreditam.

A cultura Toyota não é necessariamente igual à cultura japonesa, e o princípio do kaizen não é uma mentalidade de liderança de negócios “tipicamente japonesa”.

Foi uma visita à planta de Kyushu da Toyota no ano passado que tornou esses pontos muito claros para mim. Como compartilhado em um vídeo no lobby da fábrica sobre as origens do STP, até Taiichi Ohno resistiu inicialmente quando tentou introduzir os dois princípios fundamentais do STP – Just-in-time e Jidoka (que muitas vezes traduzimos como qualidade incorporada ou autonomação). Aparentemente, “as pessoas estavam relutantes em desistir de seus próprios processos”. Os conceitos de STP não vieram naturalmente aos trabalhadores de Ohno simplesmente por serem japoneses. A mudança era difícil para eles também. Eu não sei quanto a você, mas acho isso de alguma forma reconfortante.

Se Ohno teve problemas para introduzir o que chamaríamos de “princípios lean” na Toyota, acho que é justo dizer que a cultura lean e a cultura japonesa não são sinônimos. Na verdade, acredito que – como na maioria das culturas – há um número de traços japoneses que suportam kaizen e uma cultura inspirada em Toyota, e outros que os tornam mais difíceis de abraçar.

TRAÇOS CULTURAIS QUEM APÓIAM O LEAN

Enquanto morava no Japão, tive a oportunidade de observar muitos traços culturais típicos dos japoneses que, creio, podem apoiar o desenvolvimento de uma transformação inspirada no STP. Eles incluem:

  • O conceito de kata na vida cotidiana.

Desde a condução de uma cerimônia do chá até a maneira apropriada de fazer uma introdução, kata – as rotinas, as regras e os padrões de comportamento prescritos – orienta a vida cotidiana no Japão. Isso provavelmente torna o “trabalho padrão”, um elemento importante do lean, um processo aparentemente mais natural para os japoneses.

Eu inconscientemente cometi muitos erros ao seguir o básico “kata de cada dia”, como não entregar devidamente meu cartão de visita ao destinatário ou involuntariamente perturbar a harmonia, pedindo uma exceção a uma regra ao pedir o sorvete para viagem na loja local. Felizmente, meus erros culturais foram geralmente perdoados.

  • Esforçar-se pela perfeição através da melhoria contínua (kaizen) e ter orgulho do trabalho.

Basta assistir ao filme “O Sushi dos Sonhos de Jiro” para entender o senso de compromisso com a perfeição implacável e o orgulho no trabalho que os japoneses mostram. Outro grande exemplo são os limpadores de Shinkansen curvando-se antes de trabalhar rápida e meticulosamente para devolver o trem limpo em menos de 7 minutos. Um amigo estrangeiro abriu recentemente uma cafeteria em Tóquio e ficou surpreso ao saber que os baristas em treinamento ficavam horas extras (e por conta própria) para aperfeiçoar a entrega das bebidas por causa de seu desejo pessoal de fazer as coisas com perfeição.

  • Educação e respeito

A educação e o respeito com as pessoas são características que são levadas muito a sério no Japão. Eu nunca estive em qualquer lugar mais agradável para os cliente, embora eu tenha que admitir que existem limites para essa característica quando ultrapassados os limites das regras. Ao sair de muitos restaurantes e lojas, a equipe muitas vezes o acompanha e agradece – onde mais no mundo isso acontece?

A importância do respeito é sublinhada pela estrutura da língua japonesa, que difere por níveis variados de respeito e educação (e, sim, isso pode tornar a aprendizagem da língua mais desafiadora).

  • Saber ouvir e paciência

Em minha experiência, os japoneses são muito mais pacientes do que a maioria de nós no Ocidente quando se trata de ouvir. Longas pausas e silêncio são naturais no fluxo da conversa.

Como um americano extrovertido que tem praticado intencionalmente a arte de fazer melhores perguntas e ouvir melhor, eu ainda era muito testada    em uma típica conversa com os japoneses (falando em inglês, já que meu japonês está se desenvolvendo, mas não é muito sofisticado). As pausas na conversa com meus colegas japoneses muitas vezes testaram meus limites de conforto, e eu tive que evitar o impulso de falar.

Meu amigo Sr. Isao Yoshino, um executivo aposentado de 40 anos da Toyota, que foi um dos primeiros gerentes de John Shook na Toyota, frequentemente compartilhava comigo que, se quisermos ajudar as pessoas a desenvolver suas próprias habilidades como solucionadoras de problemas, temos que deixá-las pensar e dar suas próprias respostas. Eu tenho que admitir, foi bom para mim ter que praticar a habilidade de ouvir!

Da mesma forma, a paciência como virtude e foco em resultados no longo prazo – em vez de ganhos no curto prazo – tem sido historicamente um forte traço da cultura japonesa. Basta olhar para a prática de aprendizagem profunda no Japão, que exige muitos anos (ou mesmo décadas) para se tornar um “especialista”, ou para a filosofia “Tree Ring Management”, que visa ao longo prazo, praticada por um líder empresarial japonês que é sensei de muitos executivos da Toyota.

  • Foco na limpeza e na ordem

Tóquio é a cidade mais limpa, mais segura e mais ordenada onde já estive. Voluntários limpam os parques, e as crianças em idade escolar são obrigadas a limpar fisicamente suas salas de aula. Mesmo a palavra para “limpo” é a mesma que para “bonito” em japonês.

Dado o quanto a cultura valoriza a limpeza e a ordem, pode-se esperar que todos os aspectos do Japão sejam baseados nos 5S. No entanto, muitos hospitais e organizações de manufatura que visitei enfrentam os mesmos desafios que vi em outros países para gerenciar os suprimentos e manter as áreas limpas e ordenadas.

Nesta primavera, visitei uma cidade onde mais de 150 organizações praticam os 5S, e eles tiveram que desenvolver uma “escola 5S” para ensinar as organizações como sustentar seus ganhos. Os dois últimos “S” – padronizar e sustentar – são tão difíceis para os japoneses quanto para nós do Ocidente. Eles também precisam prestar atenção na prática de manter a ordem.

TRAÇOS CULTURAIS JAPONESES QUE NÃO SÃO “NATURALMENTE LEAN”

Assim como há traços culturais que podem fazer com que os aspectos de lean e kaizen venham mais naturalmente para os japoneses, existem outros que vão contra alguns princípios que consideramos fundamentais – como a ideia de que um líder deve ser um professor ou que a experimentação deve ser um processo para atingir metas. Alguns deles incluem:

  • Liderança de comando e controle

Em muitas empresas japonesas de hoje, há uma deferência significativa à hierarquia e à liderança de comando e controle, onde as pessoas procuram o líder para obter todas as respostas e onde falar não é encorajado. As histórias compartilhadas comigo por amigos japoneses e estrangeiros sobre suas experiências trabalhando em organizações japonesas foram quase o oposto do que aprendi sobre a Toyota.

Em contraste, a Toyota encontrou uma maneira de mudar a função da hierarquia de uma prática na qual as pessoas procuram o líder para obter respostas para uma na qual os líderes definem a direção e, em seguida, ajudam o trabalho das pessoas para atingir a meta.

  • Medo de falhar

O medo de falhar foi citado em várias conversas que tive com líderes japoneses como uma das várias barreiras do Japão à concorrência global de hoje.

Um dos insights mais reveladores que tive foi compartilhado comigo pelo gerente do Escritório de Promoção do STP na fábrica da Toyota da ilha de Kyushu. Quando perguntei diretamente sobre a diferença entre a cultura Toyota e cultura de negócios japonesa típica, ele disse que, em comparação com outras organizações japonesas, na Toyota, “é bom experimentar e nem sempre ter sucesso. Se houver um objetivo e uma direção claros para a ação, a Toyota permite que as pessoas tentem diferentes maneiras de alcançar a meta”. Falhar é aceitável, desde que isso resulte em aprendizagem. Ele também advertiu que, “se você pedir a perfeição, as pessoas vão mentir”.

Pedir a perfeição e não permitir a falha pode incentivar o comportamento errado nas pessoas, que, em seguida, procurarão atingir sua meta a todo custo. Esse resultado não é apenas visto no Japão – temos muitos exemplos no mundo todo, desde o software de emissão da Volkswagen até a fraude de dados de quilometragem da Mitsubishi e o recente escândalo de Wells Fargo, nos Estados Unidos.

  • Seguir rigorosamente as regras

Seguir rigorosamente as regras sociais e o kata pode ser um facilitador de alguns aspectos do STP e do lean, mas para mim é evidente que as regras também podem representar um limitador para a criatividade e para o pensamento livre. Viver no Japão como um estrangeiro pode ser um pouco frustrante às vezes – por exemplo, voltando a minha história anterior, quando você não pode pedir sorvete para a viagem com uma tampa, porque a sua escolha de sabores não permite isso!

Visitei uma empresa no Japão que evita a gestão e as regras como contramedida às características culturais que inibem a inovação. Eles nos disseram que para eles “a única regra é nenhuma regra”.

Os líderes dessa empresa não querem que a criatividade de seus funcionários seja restringida por hábitos culturais, como seguir estritamente as regras ou esperar que os gerentes tenham todas as respostas. Embora admita que eles têm algumas regras básicas e de gestão para evitar o caos, o representante da empresa explicou: “quando fazemos regras, colocamos as pessoas em uma caixa, e elas só podem pensar dentro das regras. A inovação é suprimida, porque as pessoas pensam que, se quebrar as regras, serão punidas”.

A filosofia da empresa levou a uma profunda prática de inovação para resolver os problemas dos clientes, que foi recompensada por uma grande participação de mercado no Japão.

  • Concentrar-se na resposta, e não no processo de resolução de problemas.

O currículo escolar no Japão se concentra na memorização, não no pensamento crítico. Em uma idade avançada, as crianças são recompensadas por ter a resposta, em vez do processo para alcançar essa resposta.

O Sr. Yoshino agora ensina em uma universidade no Japão. Através do mesmo processo de coaching que se tornou natural para ele como líder na Toyota, ele está tentando mostrar para uma geração mais jovem de japoneses uma maneira diferente de pensar – ensinando-os a fazer perguntas, solucionar problemas através da causa raiz e desenvolver sua própria perspectiva.

EM CONCLUSÃO

Lean é – e sempre foi – uma combinação do melhor pensamento gerencial de diferentes culturas. A própria Toyota construiu sobre o melhor da cultura japonesa tomando emprestado ideias do Ocidente (como TWI) para superar as barreiras culturais e criar um sólido sistema de gestão que apoiasse a inovação e a resolução de problemas.

De fato, cada país e organização tem suas próprias forças e limitações únicas que afetam sua capacidade de ser “lean” – empresas japonesas não são exceção. Portanto, não deixe que o fato de “não sermos japoneses”, “não sermos a Toyota” ou “não fazermos carros” ser uma desculpa para impedir o avanço de sua organização, impedindo-a de se esforçar para a aplicação dos princípios fundamentais de melhoria contínua e respeito pelas pessoas.

Nota: Os links deste artigo levam a páginas em inglês; não há versões disponíveis em português.

Publicado em 10/01/2017

Autor

Katie Anderson
Coach de liderança e consultora
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal