LOGÍSTICA E CADEIA DE SUPRIMENTOS

Gestão e liderança lean como diferencial estratégico para atrair e reter talentos em logística

Daniel Felipe de Oliveira e Luciana Gomes
Gestão e liderança lean como diferencial estratégico para atrair e reter talentos em logística
Entenda como a prática do pensamento Lean pode se tornar um diferencial competitivo ao contribuir para a atração e retenção de talentos, favorecendo a estabilização da mão de obra e o aumento no potencial de inovação

HÁ VAGAS! A DIFICULDADE DE ATRAIR E RETER MÃO DE OBRA EM LOGÍSTICA

Em nossos últimos anos atuando como consultores em empresas de diversos tamanhos e segmentos, observamos que um dos maiores obstáculos ao crescimento e evolução dessas empresas advém da instabilidade de mão de obra. Esse problema só aumenta no cenário atual, em que o mercado está aquecido, com muita rotatividade de trabalhadores (alto turnover) e disputa acirrada por talentos1.

Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), em 12 meses, até agosto de 2024, 8,2 milhões de trabalhadores pediram demissão de forma voluntária. A rotatividade de trabalhadores no período é de 34,74%, o que significa que mais de um terço da força de trabalho vem sendo renovada. De acordo com Lucas Assis, economista da consultoria Tendências, essa rotatividade ocorre majoritariamente no primeiro ano de vínculo — e ela vem crescendo nos últimos meses, tendo batido recordes, segundo o próprio CAGED.

O cenário global também demonstra dificuldade generalizada para preencher vagas. De acordo com o relatório Global Talent Shortage 2024, realizado pela ManpowerGroup, 76% das empresas de logística e transportes em todo o mundo relatam dificuldades para encontrar profissionais qualificados. O índice geral acompanha o patamar dos anos de 2022 e 2023, com os maiores níveis registrados pela pesquisa desde sua criação. Particularmente no Brasil, o setor de logística — embora venha crescendo nos últimos anos e tenha um papel elementar para toda a economia — possui, tradicionalmente, baixa atratividade para os profissionais de mercado.

Essa baixa atratividade em logística está relacionada, muitas vezes, à falsa crença de que o trabalho no setor é sempre fisicamente desgastante. Isso afeta tanto a contratação de mão de obra não especializada — por exemplo, para transporte rodoviário ou operação de centros de distribuição — quanto a de mão de obra especializada. Em relação à especializada, algumas das funções com maior dificuldade de preenchimento envolvem especialistas em atendimento ao cliente, analistas de dados, engenheiros de logística, especialistas em segurança cibernética, em tecnologias de automação e em novas tecnologias. Isso impacta fortemente a capacidade de inovação e atualização tecnológica das empresas do setor.

Outro fator que contribui para a escassez de mão de obra em geral, e no setor de logística em particular, é a entrada da Geração Z, dos nativos digitais (nascidos entre 1996 e 2010, aproximadamente), no mercado de trabalho. O relacionamento desse grupo com o trabalho é bem diferente das gerações anteriores. Embora tenham uma grande preocupação em ter estabilidade econômica (boa parte deles vivenciou ou sofreu as consequências da crise financeira de 2008 e tem uma postura mais pragmática em relação a dinheiro), eles são bem pessimistas em relação ao futuro (não acreditam na possibilidade de aposentadoria ou mesmo de adquirir seu próprio imóvel). Costumam ter múltiplos empregos, trabalhar de forma autônoma e são conhecidos por seu imediatismo e pela busca de modelos de trabalho flexíveis e com maior grau de autonomia — fenômeno amplificado a partir dos novos modelos de trabalho impulsionados pela pandemia de Covid-19.

Esse comportamento só acentua os desafios relacionados à atração e retenção e explica, em parte, a crescente rotatividade no primeiro ano de vínculo. Essa rotatividade pode ser ainda mais agravada se a empresa não estiver alinhada aos valores apresentados por essa geração, como ter um propósito claro que vá além do lucro, ter e aplicar políticas relacionadas à sustentabilidade (ESG) e valorizar a diversidade e inclusão no ambiente de trabalho. Ao se deparar com ambientes de trabalho que, em alguma medida, ferem os seus valores, os nativos da Geração Z não hesitam em buscar novas oportunidades que se conectem melhor às suas causas individuais ou que lhes tragam uma satisfação mais imediata.

COMO A GESTÃO LEAN PODE AJUDAR

Aplicada como uma poderosa filosofia de gestão, a prática Lean ajuda a solucionar os principais problemas e desafios apontados nesse contexto atual. Para mostrar como isso acontece na prática, vamos apresentar os fatores essenciais que a prática Lean desenvolve e aprofunda, apoiando a gestão dos recursos humanos.

Figura 1 — Os fatores essenciais da gestão Lean para promover atração e retenção de talentos

De início, é importante considerar que a prática da gestão Lean não se refere tão somente à busca da eficiência operacional. Em outras palavras, o pensamento Lean não se limita ao uso de ferramentas exclusivamente para otimização de processos. Ao contrário: envolve uma abordagem abrangente e sustentável, que conecta pessoas, processos e liderança na busca contínua por um propósito de valor comum. Isso significa uma forma de pensar flexível e adaptável que busca continuamente a efetividade (eficácia e eficiência) para um sistema logístico. São esses aspectos sociotécnicos que configuram a gestão Lean como um modelo com potencial verdadeiramente transformador para as organizações e cadeias de suprimento como um todo.

PROPÓSITOS INSPIRADORES E TRABALHO COM SIGNIFICADO

A gestão Lean preconiza que toda empresa ou toda transformação organizacional deve partir de um propósito claro, associado à geração de valor para o cliente e, em boa parte dos casos, para a sociedade. “Propósito” se refere à causa maior, a razão fundamental, o porquê de existir a empresa de logística. Esse propósito de valor — que, portanto, não é relacionado exclusivamente a retorno financeiro — deve ser formulado, comunicado e desdobrado para todos os níveis da organização, de forma a estar claro para todos os seus colaboradores, fazendo com que cada um deles esteja, em alguma medida, conectado com o todo e atuando a seu favor. Essa definição, desdobramento e comunicação do propósito, quando feita utilizando abordagens Lean, como o Hoshin Kanri2., faz com que os colaboradores passem a conhecer e entender o seu papel específico e que consigam se conectar no dia a dia a um propósito maior e inspirador.

O valor para a sociedade que uma empresa de logística entrega reúne uma série de atributos associados à oferta em si, como a qualidade percebida pelo serviço, o preço praticado e a disponibilidade, mas também a maneira como a organização lida com seus colaboradores — particularmente os da linha de frente, pois são esses colaboradores o alicerce que sustenta toda a operação logística. Muitos trabalhadores da linha de frente têm demonstrado maior vínculo com suas equipes do que com a liderança ou a empresa e relatam sentimento de insegurança, causado pela falta de confiança na organização. No entanto, as empresas que promovem o alinhamento de valor com transparência podem se diferenciar ao criar ambientes mais colaborativos e com significado, onde os colaboradores se sentem conectados ao propósito maior da organização.

Neste sentido, assumir a gestão Lean da logística torna o caminho organizacional orientado a um propósito comum, que permite à equipe se manter no rumo certo e compreender o significado genuíno de seu trabalho. Construir ambientes de trabalho com significado estimula o envolvimento autêntico de todos na construção do valor entregue ao cliente. Essa dinâmica faz com que a cultura organizacional e as pessoas reconheçam o significado do trabalho e tornem-se pilares essenciais para alcançar o propósito inspirador.

PROCESSOS ENXUTOS E TRABALHO MAIS HUMANO

Na visão Lean, o trabalho deve ser projetado, executado e melhorado, com método, por quem o executa, para gerar cada vez mais valor e menos desperdícios. Além de reduzir, de uma forma geral, os esforços associados ao trabalho, essa busca incessante pela redução de desperdícios — ou seja, por gerar mais valor, consumindo cada vez menos recursos, por meio de processos enxutos — conecta-se fortemente com os ideais de sustentabilidade/ESG.

No setor logístico, com seu ritmo acelerado e demandas urgentes que muitas vezes colocam pressão sobre as equipes, iniciativas para tornar o trabalho mais enxuto têm um impacto direto na atração e retenção de talentos. Otimizar processos operacionais usando o trabalho colaborativo com as equipes gera resultados a partir das reais necessidades operacionais, o que também melhora a experiência dos colaboradores ao criar um ambiente mais engajado e menos estressante.

Mesmo que o trabalho em logística seja muito impactado por novas tecnologias e automação (inclusive como meios para enxugar os processos), as inovações tecnológicas não eliminam a dependência do componente humano. A convivência entre humanos e tecnologias na logística deve ser vista como uma oportunidade para transformar e humanizar o trabalho. Com a automação de atividades repetitivas, os colaboradores poderão focar em inovação e melhoria contínua, áreas que requerem habilidades exclusivamente humanas, como criatividade com valor e visão estratégica. As dinâmicas no ambiente de trabalho serão diferentes, mas o engajamento dos profissionais será mais crucial do que nunca para garantir o sucesso das operações.

Para lidar com as tecnologias emergentes e enxugar continuamente os processos, é necessário capacitar os colaboradores para executar e melhorar o trabalho com os métodos mais adequados. Isso significa, em última instância, desenvolver pessoas para que possuam autonomia para melhorar seu próprio trabalho, resolvendo problemas no dia a dia. Empoderar as pessoas para projetarem o seu próprio trabalho é uma ferramenta poderosa para a humanização tão necessária para a retenção de talentos.

Além disso, a capacidade de solução de problemas é incremental e só pode ser desenvolvida na prática. Nas organizações Lean, ao capacitar pessoas para solucionarem problemas cada vez mais complexos, desenvolvemos nos colaboradores, progressivamente, uma “musculatura” poderosa. Partindo da solução de problemas de forma contingencial e paliativa (problemas Tipo 1 – Contenção), passando pela solução de problemas nas suas causas raízes, prevenindo a recorrência e retomando o padrão desejado, para o qual o processo foi originalmente projetado (Tipo 2 – Desvio do Padrão), evoluindo para a solução de problemas que geram novos patamares de performance (Tipo 3 – Condição Alvo) e chegando, por fim, à inovação (Tipo 4), criamos dentro de casa os especialistas capazes de levar a organização em direção ao futuro.

Figura 2 — Os 4 tipos de problemas (Fonte: Adaptado do livro homônimo de Art Smalley, editado pelo Lean Institute Brasil em 2019)

Se não temos, de partida, profissionais especializados se candidatando às nossas vagas, podemos investir em desenvolver, intencionalmente, profissionais que já estão nos nossos quadros. Com ferramentas Lean como o trabalho padronizado, as matrizes de habilidade e os A3s, podemos criar “planos de desenvolvimento/carreira” que ajudem a fechar o nosso gap de mão de obra. Desenvolvemos pessoas desafiando-as para que resolvam problemas cada vez mais complexos de negócio e, com isso, criamos um círculo virtuoso de desenvolvimento, empoderamento e engajamento que, além de tudo, traz cada vez mais resultados para o processo e, consequentemente, para a empresa.

LIDERANÇA RESPEITOSA E GESTÃO ARTICULADA

A responsabilidade dos líderes e gestores Lean é, em primeiro lugar, gerar um ambiente de respeito e de segurança psicológica, em que as pessoas se sintam incluídas e possam fazer perguntas de aprendizagem e errar no processo de aprender. A segurança psicológica consiste em que os colaboradores, particularmente os da linha de frente, possam trazer problemas, contribuir com novas ideias e soluções e desafiar o status quo sem medo de serem punidos por se colocarem em posição vulnerável. Nesses ambientes, onde imperam a inclusão e a diversidade, a Geração Z sente-se acolhida e pode prosperar, ao contrário do que acontece nos ambientes onde predomina o comportamento de “comando e controle”.

Além disso, a liderança Lean é referência em atitudes que fomentam o respeito: está junto no Gemba (o local real onde a operação acontece), escuta, desafia (para o propósito) e apoia, ensina, aprende e incentiva o trabalho em equipe, gerando um ambiente verdadeiramente respeitoso — ou seja, mais propício para quem quer se desenvolver e atuar com autonomia. É responsabilidade do líder Lean garantir que seus colaboradores tenham sucesso e que cada um deles traga “para o jogo” o máximo do seu potencial e contribuição. Essa atitude respeitosa da liderança, desde que genuína e autêntica, é capaz de engajar e reter colaboradores.

Figura 3 — As práticas para “Liderar com respeito” (Fonte: Adaptado do livro homônimo de Michael Ballé e Freddy Ballé. Editado pelo Lean Institute Brasil em 2014)

Ainda, muito tem se falado sobre a Geração Z e problemas de saúde mental. Essa geração passou a ser conhecida como a “geração ansiosa”, o que está fortemente relacionado ao seu imediatismo, foco restrito e tendência multitarefa, potencializados pelo uso constante de redes sociais e pelos modelos de trabalho mais híbridos e remotos. Essas características também são manifestadas no ambiente de trabalho e explicam, em certa medida, a dificuldade que essa geração apresenta para desenvolver vínculos sociais mais consistentes. Por outro lado, em uma espécie de círculo vicioso, a falta de vínculos sólidos gera mais ansiedade e, consequentemente, mais descontentamento e movimentação.

No entanto, como abordagem social, a filosofia de gestão Lean leva em conta e valoriza os elementos que são essencialmente humanos, como a comunicação e os relacionamentos. Por meio de um sistema de gestão articulada — com padrões e rotinas claros para acompanhamento da performance possibilitando intervir na medida certa, bem como de artefatos como o Mapeamento de Fluxo de Valor e o A3, que derrubam muros e aproximam pessoas e áreas —, é natural que as interações sociais sejam favorecidas (entre o líder e o colaborador; o líder e o time; o colaborador e o time e entre áreas pares) com um propósito claro. Essas interações, por sua vez, fomentam a criação de vínculos e relacionamentos mais empáticos, sólidos e duradouros, levando a um círculo virtuoso de melhoria da comunicação, redução da ansiedade e abertura para tratamento e solução de problemas, o que gera um ambiente positivo e que está sempre em evolução.

Isso também é um fator que melhora a experiência do colaborador e ajuda com engajamento e retenção, aumentando ainda a atratividade da empresa no médio e longo prazo, criando um diferencial sólido e sustentável para sua marca empregadora.

CULTURA DE MELHORIA CONTÍNUA E ATITUDE GEMBA

Ao compreender as crenças sobre o que é “normal” dentro de uma organização, a cultura organizacional envolve pressupostos cognitivos. Esses pressupostos são, na maior parte das vezes, deduzidos ou extrapolados a partir do comportamento percebido da liderança e das práticas corporativas, como o sistema de avaliação e recompensa.

Aqui, o sistema Lean oferece às organizações a oportunidade de transformar as práticas de gestão de pessoas em espaços onde o aprendizado contínuo e a colaboração são integrados à rotina. Um exemplo de prática é o “Programa de Sugestões”, projetado para envolver e valorizar as equipes, além de promover a melhoria contínua. Se bem arquitetado, o programa reflete a disposição dos colaboradores em identificar problemas e propor soluções rotineiramente. Essa abordagem contribui para o engajamento das equipes ao estabelecer uma base sólida para a construção de culturas organizacionais resilientes, inovadoras e preparadas para os desafios que exigem excelência.

Com efeito, a parte mais visível e acionável da cultura são as práticas e rituais corporativos. Ao adotar práticas e artefatos para a liderança que sejam, pela sua própria natureza, inclusivos e que favoreçam o trabalho em equipe, como o “Gerenciamento Diário (GD)”, cria-se um ambiente de colaboração agradável em que a geração Z e os demais colaboradores se sentem seguros e desafiados para aprender, contribuir e inovar. E isso pode ser um diferencial competitivo para um setor com desafios como os enfrentados na logística.

Ao aproximar a liderança das operações cotidianas, conduzindo todos a estarem atentos ao Gemba, o GD permite uma conexão mais estreita do líder com os desafios de todos os dias de cada membro da equipe. Isso favorece o envolvimento do líder na realidade da operação, onde os problemas tangíveis ocorrem cotidianamente. Aqui, é fundamental a atitude Gemba — estar presente no local onde o trabalho realmente acontece, seguindo a clássica tríade “vá ver, pergunte por que e demonstre respeito”. Isso, se praticado de forma genuína, pode envolver diretamente os colaboradores na solução de problemas, promovendo um sentimento de pertencimento e valorização.

Essa atitude pode levantar questões diretamente relacionadas à experiência do colaborador, mas que podem estar sendo negligenciadas ou que não são percebidas diretamente pela alta liderança.

A GESTÃO LEAN COMO CHAVE PARA ATRAIR, RETER E DESENVOLVER TALENTOS

Em resumo, a gestão Lean pode promover a atração e retenção de talentos ao integrar quatro fatores essenciais. Primeiro: propósitos inspiradores e trabalho com significado criam um senso de propósito que engaja os colaboradores. Segundo: processos enxutos e ambiente de trabalho mais humano focam na entrega de valor e promovem uma experiência mais satisfatória. Terceiro: uma cultura de melhoria contínua aliada à atitude Gemba incentiva a participação ativa e a resolução de problemas diretamente onde eles ocorrem. Quarto: liderança respeitosa e uma gestão articulada valorizam as pessoas e fortalecem o compromisso e a colaboração, criando um ambiente sustentável para o desenvolvimento de talentos.

Ao longo deste artigo, esperamos ter demonstrado que, ao implementar a filosofia de gestão e liderança Lean, as empresas de logística podem se diferenciar em criar um ambiente atrativo, capaz de desenvolver colaboradores com competências de solução de problemas e inovação diferenciadas, fechando os seus gaps em relação à atração e retenção de mão de obra. Considerando o cenário geral do mercado, e particular do setor de logística, isso pode se converter em um dos principais diferenciais competitivos para a organização, possibilitando que ela sobreviva, evolua e prospere em direção ao futuro.


  1. Fonte: Caderno de Economia & Negócios do Jornal O Estado de São Paulo de 27 de outubro de 2024.
  2. De origem japonesa, o Hoshin Kanri é um método da gestão Lean para garantir que a estratégia de uma empresa seja executada em toda a hierarquia.
Publicado em 30/05/2025

Autores

Daniel Felipe de Oliveira
Head para Supply Chain, Logística e Varejo do Lean Institute Brasil
Luciana Gomes
Gerente de Projetos no Lean Institute Brasil

Planet Lean

The Lean Global Network Journal

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