Por décadas, o lean tem sido uma força poderosa de transformação — ajudando organizações a construir estabilidade, reduzir desperdícios e criar valor por meio da melhoria contínua. Mas, hoje, nos encontramos em um mundo em rápida transformação, onde a estabilidade já não é mais a norma. Por isso, deixo aqui uma pergunta que quero explorar: como nós, praticantes do lean, podemos adaptar o pensamento lean a uma era de disrupção e incertezas?
Passei grande parte da minha carreira estudando o lean e compartilhando esse conhecimento com o mundo, sempre acreditando que as organizações podem ser projetadas para ter um melhor desempenho, eliminar desperdícios e melhorar continuamente. No entanto, o que percebi é que o mundo no qual esses princípios foram desenvolvidos era relativamente estável. Sim, sempre houve a concorrência e a necessidade de melhorar, mas a suposição básica era de que o ambiente externo não mudaria de forma tão drástica ou frequente a ponto de transformar indústrias inteiras da noite para o dia.
Essa suposição já não se sustenta. Hoje, as empresas enfrentam instabilidades geopolíticas, mudanças econômicas, tecnologias que evoluem rapidamente — especialmente a inteligência artificial (IA) — e novas expectativas sociais em relação ao trabalho e ao emprego. Como praticantes do lean, precisamos mudar nossa mentalidade: de otimizar em condições estáveis para adaptar e sobreviver em um mundo volátil.
A mudança está acontecendo mais rapidamente do que nunca
Enquanto preparava esta palestra, presenciei mudanças dramáticas acontecendo. Uma das empresas que mais admiro — e que incorporou profundamente o lean em suas operações — teve recentemente uma discussão bastante preocupante. Com a possível introdução de novas tarifas, essa empresa se viu obrigada a estruturar grandes operações de manufatura nos Estados Unidos muito mais rapidamente do que jamais havia planejado anteriormente.
E este não é um caso isolado. Em diversos setores, as empresas estão lidando com mudanças geopolíticas, restrições comerciais, escassez de mão de obra e novas pressões regulatórias. Adicione a isso a mudança na própria natureza do trabalho — com empregadores e empregados abandonando qualquer senso de obrigação mútua — e o desafio se torna ainda maior.
A tecnologia está acelerando tudo isso. A inteligência artificial (IA), em particular, representa um paradoxo para os pensadores lean. Por um lado, a automação e a tomada de decisões orientadas por IA podem eliminar ineficiências enormes. Por outro, grande parte dessa tecnologia parece ser projetada para eliminar pessoas e não para capacitá-las. Durante décadas, nós da comunidade lean insistimos que o lean não é sobre demitir trabalhadores, mas sobre criar mais valor com as mesmas pessoas. Agora, porém, deparamos com um cenário em que forças de trabalho inteiras podem ser substituídas por tecnologias que não estão sendo desenvolvidas por necessidade, mas simplesmente porque é possível fazê-lo.
Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas estão trazendo um nível de imprevisibilidade que nunca vimos antes. As empresas não estão mais apenas planejando para as flutuações normais de mercado; agora precisam se preparar para interrupções nas cadeias de suprimentos causadas por incêndios florestais, furacões, secas e outros eventos climáticos extremos.
Diante de tudo isso, a reação natural seria dizer: Talvez o próprio lean precise ser repensado. Mas aqui está a boa notícia: não precisamos reavaliar nossos princípios e métodos fundamentais. O que precisamos é de uma nova orientação — uma nova forma de aplicar o lean para ajudar as organizações a navegar no caos, mantendo a estabilidade necessária para o sucesso de longo prazo.
Porque a toyota continua vencendo
Quero destacar um exemplo de como a mentalidade lean pode ajudar as empresas a navegar em tempos de incerteza, em vez de serem esmagadas por ela.
Há alguns anos, toda a indústria automotiva se fixou na ideia de que os veículos elétricos a bateria (BEVs) seriam o único futuro do transporte. CEOs, formuladores de políticas públicas e analistas declararam que, até 2035, veríamos apenas BEVs nas ruas. Grandes fabricantes correram para esse mercado, ansiosos para provar que estavam “100% comprometidos” com a eletrificação.
Exceto a Toyota.
A Toyota seguiu um caminho diferente. Em vez de apostar tudo em uma única tecnologia, adotou um portfólio de soluções: aprimorou os veículos híbridos, investiu em híbridos plug-in, células de combustível de hidrogênio, motores de combustão interna movidos a hidrogênio e também em BEVs.
Na época, a empresa foi ridicularizada por isso. Muitos a acusaram de estar ultrapassada, de resistir às mudanças. Mas a Toyota não estava resistindo à mudança; estava gerenciando a incerteza. Sabia que os mercados, as tecnologias e a infraestrutura evoluiriam de formas imprevisíveis e não queria ficar sem opções.
Avançando para os dias de hoje, a narrativa mudou. A indústria automotiva começa a perceber que os BEVs não são a solução perfeita para todos os clientes ou mercados. A abordagem diversificada da Toyota a deixou em uma posição muito mais favorável do que as empresas que apostaram tudo em uma única tecnologia.
Esse é o tipo de pensamento que as organizações lean precisam adotar. Em vez de tentar prever o futuro, devemos nos preparar para múltiplos futuros possíveis.
Recuperação ao invés de robustez: a necessidade de adaptação rápida
Durante anos, as empresas foram orientadas a acumular caixa e recursos como forma de se proteger contra a incerteza. E, embora a estabilidade financeira seja importante, isso não é suficiente.
A filosofia da Toyota nunca foi buscar prever todos os possíveis cenários adversos ou simplesmente resistir às crises. Em vez disso, a empresa foca em se recuperar rapidamente quando as disrupções ocorrem. Isso significa:
- Desenvolver o capital humano — treinando colaboradores para resolver problemas e tomar decisões rapidamente.
- Criar cadeias de suprimentos adaptáveis, em vez de depender de sistemas fixos e rígidos.
- Investir em resiliência, e não apenas se preparar para um conjunto específico de crises.
Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, a Toyota demonstrou como essa filosofia funciona na prática. Enquanto outros fabricantes lutavam para lidar com a escassez nas cadeias de suprimentos, a Toyota contava com uma rede de colaboradores adaptáveis e capacitados para solucionar problemas rapidamente e manter as operações funcionando.
Essa capacidade de recuperação — e não apenas de resistência — é o que diferencia uma organização verdadeiramente resiliente daquela que está apenas preparada para a última crise, mas não para a próxima.
Escalando o lean: a peça que falta
Cenários caóticos muitas vezes exigem grandes mudanças, transformações profundas em nossas organizações. No que costumo chamar de ciclo “acertar, escalar e sustentar” (nail it, scale it, sail it), o principal desafio para nós, pensadores lean, é escalar o lean de forma eficaz.
Somos muito bons em acertar — construindo MVPs, desenhando novos sistemas, conduzindo projetos-piloto e solucionando problemas iniciais. Também sabemos sustentar bem — mantendo o lean em organizações maduras e estáveis. Mas, quando se trata de escalar — pegar um sucesso inicial e expandi-lo rapidamente por toda a empresa ou setor — enfrentamos dificuldades.
Já trabalhei com startups nas áreas de veículos autônomos e indústrias orientadas por IA, que apresentavam ideias brilhantes, mas não conseguiam implementá-las em escala por falta de sistemas estruturados de operação e de gestão. E, sem esses sistemas, as melhores ideias do mundo simplesmente não prosperam. Infelizmente, criar esses sistemas é um desafio bastante complexo — e essa é uma lacuna no movimento lean que precisamos enfrentar com urgência.
O sonho lean: uma plataforma estável para a criação de valor
Em 1950, após uma crise financeira que quase destruiu a empresa, a Toyota foi forçada a se dividir em Toyota Motor Sales e Toyota Motor Company. Essa humilhação levou a uma poderosa resolução: “Nunca mais.” A partir daí, a Toyota se dedicou a construir uma plataforma estável para a criação de valor, capaz de garantir o sucesso a longo prazo para clientes, colaboradores, fornecedores e investidores.
O sonho era criar relacionamentos para a vida toda:
- Clientes para a vida toda, sendo sempre a melhor opção.
- Colaboradores para a vida toda, por meio de desenvolvimento contínuo e novos desafios.
- Fornecedores para a vida toda, promovendo crescimento e melhoria mútua.
- Investidores para a vida toda, entregando valor sustentável e de longo prazo.
Diferente de empresas focadas em ganhos de curto prazo, a Toyota priorizou a resiliência, garantindo que pudesse atravessar turbulências econômicas sem comprometer sua base. O resultado? Em 74 anos, a Toyota nunca demitiu um funcionário permanente por razões financeiras — um feito que poucas empresas no mundo conseguem replicar.
Alguns dizem que esse sonho é impossível, mas eu me recuso a acreditar nisso. Por que toda organização não deveria buscar construir uma base estável, onde todos os stakeholders saiam ganhando?
Essa visão continua sendo a minha estrela-guia — e deveria ser a sua também.
Pensamentos finais
O mundo ainda precisa do pensamento lean — mesmo que ainda não perceba isso.
Nós, como praticantes do lean, temos a responsabilidade de ajudar as organizações a navegar na incerteza, construir resiliência e gerar valor mesmo em tempos turbulentos.
Nosso desafio não é repensar o lean, mas sim repensar como o aplicamos em uma era em que a estabilidade já não é garantida.
Vamos abraçar o caos — e não temê-lo — e seguir em frente, juntos.
Este artigo é um resumo da apresentação de Jim Womack na Lean Global Connection do ano passado! Estamos de volta neste ano com a quinta edição desse nosso evento emblemático!