SAÚDE

Transformando o fluxo de valor do paciente cirúrgico

Flávio Battaglia e Tamiris Masetto Manzano

Não é de hoje que o pensamento lean evidencia a importância de focar seus esforços de transformação nos clientes; não há lugar onde isso fique mais manifesto do que na área da saúde, na qual o paciente deve ser o centro das atenções. Analisando o fluxo de ponta a ponta, a AACD conseguiu agregar mais valor a seus procedimentos cirúrgicos pela perspectiva de seus pacientes.


A área da saúde percebe cada vez mais a necessidade de atualizar suas abordagens ao contexto mais atual no qual estamos; os problemas encontrados nessa área de tanta importância são notórios, e a baixa satisfação por parte dos pacientes confirma que uma virada precisa acontecer. O pensamento lean vem sendo o eixo que dá a flexibilidade necessária aos hospitais e às outras instituições da área para alcançarem suas metas. A AACD, recentemente, juntou-se a esse grupo de desbravadores pioneiros nessa busca pelo melhor atendimento.

A AACD é uma instituição privada, filantrópica e sem fins lucrativos normalmente reconhecida por seus trabalhos de reabilitação. Mas a instituição também conta com outras especialidades, fazendo parte de seu escopo um hospital, onde seus esforços lean começaram, em julho de 2014.

Iniciando sua jornada e sempre pensando no paciente, o hospital reconheceu os procedimentos cirúrgicos como sendo o principal campo a ser abordado. Iniciar os trabalhos não foi uma tarefa simples: o fluxo precisou ser analisado por completo, desde o agendamento da cirurgia até a alta do paciente. Na verdade, cinco fluxos foram analisados (fluxo de informação, fluxo baseado no paciente, OPME, materiais e medicamentos e infraestrutura). Cento e setenta e sete problemas foram encontrados, dentre os quais vinte e cinco foram inicialmente focados. Surpreendentemente, o hospital descobriu que seus maiores problemas não aconteciam durante o procedimento, mas nas etapas que o precediam (o tempo de setup da sala cirúrgica) e o sucediam (a prevenção de complicações pós-operatórias).

Reduzindo o tempo de setup

Não é novidade para quem trabalha no segmento da saúde que o atraso para iniciar as cirurgias é uma das maiores causas de desperdício que um hospital enfrenta; esse tempo é conhecido como setup. Reduzi-lo significa liberar mais tempo para o cirurgião, para o hospital e, principalmente, para o paciente, possibilitando atender um número maior de pacientes, reduzindo o tempo de espera e o tamanho das filas e, consequentemente, agregando mais valor ao processo pela perspectiva do paciente. Mas como fazer? Precisamos, em primeiro lugar, analisar as causas desses atrasos.

Falando de uma forma abrangente, dois são os motivos que ocasionam atrasos nos procedimentos cirúrgicos: o cirurgião ou a equipe médica podem atrasar-se (principalmente para os primeiros procedimentos do dia) ou o atraso pode ocorrer devido à demora nos processos referentes ao hospital (a avaliação pré-anestésica do paciente, a lateralidade, o encaminhamento do paciente à sala cirúrgica ou os processos internos de preparação da sala).

No caso da AACD, o tempo de atraso do processo como um todo devido ao setup demorado era de aproximadamente quarenta e cinco minutos, gerando um efeito dominó: o atraso nas primeiras cirurgias gerava mais atrasos nas seguintes, gerando insatisfação por parte do paciente e do cirurgião e reduzindo a receita. Era definitivamente um problema a ser abordado. Através de visitas ao centro cirúrgico (o gemba) e de brainstorming com as equipes envolvidas, algumas estratégias de melhorias foram estabelecidas:

  • Replanejamento da internação dos pacientes – possibilitando a internação prévia (com um dia de antecedência) dos pacientes que serão operados nas primeiras horas do dia, dando maior flexibilidade de tempo para a equipe.
  • Remanejamento da equipe – de forma a disponibilizar um técnico de enfermagem extra apoiando nos horários de maior fluxo, sempre garantindo um número adequado de profissionais para todos os procedimentos.
  • Readequação da equipe de limpeza – para que, nos horários de maior fluxo (normalmente pela manhã), haja uma equipe fixa e devidamente treinada, redistribuindo melhor as atividades e liberando mais tempo para os colaboradores realizarem suas próprias tarefas.
  • Montagem prévia de kits cirúrgicos – dessa forma, o material estaria preparado mais agilmente, reduzindo, consequentemente, o tempo de setup.

Essas são estratégias simples, mas seus efeitos são surpreendentes: após a implementação, o hospital verificou uma redução média no tempo de setup de quatorze minutos. Esses números podem, à primeira vista, parecer inexpressivos, entretanto, se tivermos uma visão mais ampla do processo, chegaremos à conclusão de que isso gerará mais quinze horas produtivas por dia à equipe do hospital, viabilizando atendimento a um número crescente de pacientes e com maior qualidade.

Esse ainda não é o estado ideal; na verdade, contentar-se com qualquer situação e parar os esforços vai contra o ideal da melhoria contínua, uma das bases do pensamento lean. Entretanto, é um passo gigantesco para o caminho certo, e manter o ritmo é obrigação do hospital se não quiser congelar no tempo.

Além do problema do tempo de setup, a AACD queria abordar outro pesadelo das equipes cirúrgicas: as complicações pós-operatórias.

Prevenindo as complicações pós-operatórias

Um dos maiores tipos de desperdício é o retrabalho. Na área cirúrgica, o retrabalho é representado pelas complicações pós-operatórias, que ocasionam mais problemas aos pacientes (como infecções e úlceras) e novos procedimentos à equipe, onerando o processo e atrasando o tempo de recuperação do paciente. A AACD identificou as cirurgias para correção de membros inferiores como a área com maior possibilidade de melhoria, focando, portanto, nesse aspecto.

Novamente, para solucionar este problema, foi preciso fazer uma análise e descobrir o que estava acontecendo (o problema em si) e por que isso acontecia (suas causas). Dentre as complicações, aquelas que se destacam são as úlceras por pressão, as infecções da ferida operada, os casos de reinternação e a fratura do membro operado.

O hospital definiu a imobilização como sendo o principal ponto a ser abordado. Isso porque muitas cirurgias requerem esse procedimento por um período que varia entre vinte e quarenta e cinco dias, e as complicações pós-operatórias decorrentes da imobilização com gesso são comuns.

Na maior parte das vezes, o problema não ocorre no hospital, mas no ambiente domiciliar após a alta. É um processo que se estende além da parte interna, e solucioná-lo não é tão simples. Portanto é necessário analisar as variantes que podem levar à ocorrência dessas complicações.

A informação e a orientação são aspectos vitais para uma boa recuperação pós-operatória, mas nem sempre isso é frutífero. Vários fatores podem impedir que uma boa orientação seja seguida: muitas vezes, o acompanhante do paciente no hospital não é o mesmo que o cuidador no ambiente domiciliar (dessa forma, as orientações podem sequer chegar aos ouvidos do cuidador). Às vezes, há falta de engajamento por parte do cuidador. A reportabilidade das informações/orientações não é adequada (informações muito técnicas, que dificultam a compreensão de pessoas exteriores à área).

O hospital já havia projetado uma cartilha com as informações básicas sobre os cuidados que os pacientes deveriam tomar após a alta, entretanto essa cartilha não era muito acessível, sendo poucas vezes seguida ou sequer lida.

A primeira estratégia de melhoria era clara. O hospital revisou a cartilha de orientações, utilizando uma linguagem mais coloquial e acessível, relacionando cada orientação aos possíveis problemas que seu não seguimento pode ocasionar e ampliando as orientações em relação a coisas mais básicas, como higiene, banho, manutenção da integridade do gesso (que, embora pareçam superficiais, constituíam uma grande parte das complicações).

Além da revisão da cartilha, seu processo de entrega foi alterado, agora ela é entregue assim que a cirurgia é finalizada. Aulas com bonecas foram dadas aos acompanhantes a fim de garantir uma visualização mais eficaz dos cuidados a serem tomados, e foram definidas metas diárias quanto à educação do cuidador, incluindo indicadores que antes não existiam.

Todas essas pequenas ações contribuíram para tornar o processo pós-operatório mais adequado e menos problemático para o paciente e para o hospital.

Uma visão do futuro

Após os excelentes resultados obtidos nos processos pré e pós-operatórios, o pensamento lean está sendo expandido por toda a cadeia de valor da AACD. Já existem quatro novos A3 em andamento, abrangendo o centro de reabilitação.

O pensamento lean mostrou para a AACD que o problema nem sempre está na parte mais óbvia (na operação em si), mas em processos que a cercam (o tempo de setup e as complicações pós-operatórias). Também que as estratégias de melhorias mais importantes não são aquelas que, sozinhas, movem montanhas, mas as pequenas e discretas, que, acumuladas, trazem um resultado expressivo. Mas o mais importante é que a AACD provou mais uma vez que o pensamento lean é algo muito grandioso para ficar escondido apenas na manufatura. Ele pode e deve ser expandido a outras áreas, como à área da saúde, onde o cliente (paciente) é indiscutivelmente o foco.

Publicado em 09/03/2016

Autores

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Tamiris Masetto Manzano
Editora e tradutora no Lean Institute Brasil.
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal