Para poucos de nós, a incerteza é uma bênção. Os coautores de “Raise the Bar”, Nicolas Chartier e Guillaume Paoli, enxergaram a oportunidade da Internet e, em 20 anos, construíram um negócio de € 1,4 bilhão do zero. Eles foram pioneiros na reforma em escala industrial de carros usados e na virada para uma economia circular mais sustentável. Vi-os entrar em crises assustadoras (criaram a empresa logo após a tragédia de 11 de setembro e, desde então, passaram por crises do setor, do “diesel gate” à pandemia da Covid-19), mas de alguma forma, enxergaram as oportunidades, puxaram suas equipes e emergiram mais fortes.
Nos últimos seis meses, o mercado de automóveis mudou drasticamente, com muito menos veículos sendo produzidos como resultado de interrupções na cadeia de suprimentos e semicondutores. É fascinante ver Nicolas e Guillaume levarem os golpes, procurarem uma saída e manterem suas equipes focadas: clientes e colaboradores primeiro para, somente depois, se preocuparem com todo o resto.
Infelizmente, a maioria de nós não é assim. A incerteza nos atinge de muitas maneiras. Ela nos paralisa. Ela nos faz duvidar de nós mesmos e de nossas escolhas. Quando não enxergamos mais para onde as coisas estão indo ou se vamos sair por cima, é fácil desistir e reagir aos acontecimentos do dia a dia. A incerteza corrói nossa resiliência, nos torna propensos a mudanças de humor e sentimentos de tristeza e alimenta nossas ansiedades. Nossos cérebros precisam saber um resultado – mesmo que ele seja ruim –, ou nossas respostas ao estresse dão errado. Pesquisadores, por exemplo, descobriram que o medo de perder o emprego afeta mais a saúde de uma pessoa do que realmente perdê-lo.
Somos criaturas orientadas por objetivos. A incerteza obscurece o futuro, e de repente, não podemos ver nada de positivo nas tendências atuais. Quando qualquer tendência para qual você olha demonstra algum desenvolvimento terrível, é natural sentir que todos os resultados possíveis são ruins e que não há saída. Como planejar e estabelecer metas e traçar um caminho se não há esperança visível?
Devemos nos concentrar em um ou outro resultado isolado e ignorar o resto? É fácil dizer, mas é difícil de fazer para pessoas de mente aberta e socialmente conscientes.
A questão é criar um senso de propósito sem uma visão clara sobre aonde ir porque, bem, não há como saber para onde as coisas estão indo em geral. A resposta lean é cultivar o espírito de desafio nas direções, e não no destino. Costumamos definir a palavra “melhor” como sendo um “lugar melhor”: estamos aqui, mas gostaríamos de estar lá. Os atletas se visualizam vencendo. Os empreendedores se visualizam bem sucedidos. Colaboradores visualizam suas carreiras, e assim por diante. A incerteza tira isso, porque é difícil visualizar tudo funcionando. Entretanto, o lean nos ensina a definir a palavra “melhor” como sendo “melhor em algumas coisas”.
Por exemplo, sabemos pela história que a produtividade é sempre uma coisa boa. Setenta anos de experiência lean mostram que a produtividade é construída camada por camada, primeiro melhorando a segurança (para clientes e colaboradores), depois a qualidade e depois reduzindo os prazos de entrega e eliminando todos os outros custos desnecessários que são revelados pelos esforços nos três primeiros.
A questão é que não sabemos como deve ser um local de trabalho mais seguro (se soubéssemos, já o teríamos implementado imediatamente). Precisamos descobrir. Ao longo do caminho, podemos medir, questionar, analisar e melhorar, até que a segurança seja melhor e enxerguemos um local de trabalho mais seguro aparecendo gradualmente diante de nossos olhos. Da mesma forma, não sabemos o que significa “melhor qualidade”. Em primeiro lugar, porque é difícil descobrir se estamos fazendo a “coisa certa” – o que os clientes realmente valorizam, o que eles mais querem –, e é igualmente difícil saber se fazemos certo e identificando o que fazemos de errado. Mas fazer essas perguntas a nós mesmos todos os dias nos permite enxergar como são os produtos e os processos de melhor qualidade.
O mesmo vale para o prazo de entrega – ou a sustentabilidade. No atual tsunami de más notícias das mudanças climáticas, é difícil imaginar qualquer tipo de futuro positivo, mas certamente podemos pensar em maneiras de melhorar as coisas agora e ver onde isso nos leva: podemos evitar o uso excessivo de máquinas que consomem energia não renovável; podemos encontrar maneiras de reduzir os consumíveis, como água e materiais raros; podemos projetar produtos para durar mais e consumir menos. Não precisamos saber como será o “melhor” para buscarmos sermos melhores a cada dia.
Há uma década, meu pai Freddy e eu discutimos no livro “O Gerente Lean” como desenhar uma “Estrela Norteadora”, uma lista de dimensões sobre “o que não pode faltar” para melhorar quaisquer que sejam as circunstâncias.
Se eu pudesse modificar algo naquela imagem, acrescentaria sustentabilidade ambiental (claramente não tínhamos isso em vista naquela época), mas a lógica continua a mesma. Independentemente de você poder traçar uma visão de como é o “melhor”, você pode definir melhor como melhorar em dimensões-chave. O truque é garantir que cada dimensão corresponda a um “problema típico”, como diria meu pai, um problema que está embutido na sua atividade, uma característica, e não em um bug do seu modelo de negócios. A segurança sempre precisará ser melhorada, assim como a qualidade, e assim por diante.
Mesmo quando não nascemos empreendedores com talento para identificar oportunidades no caos, não precisamos ficar paralisados pela incerteza, nem procrastinar interminavelmente em nome do não saber. Algumas coisas nós sabemos, não importa quão obscuro e mutável seja o ambiente. Existem algumas dimensões-chave do que fazemos que precisamos melhorar – problemas típicos que sempre estarão presentes em nossa profissão escolhida. Ao nos comprometermos a melhorá-los, passo a passo, no espírito do kaizen, resolvemos construir um futuro melhor, mesmo que nos sintamos cegos. Estar lúcido sobre aonde a tendência atual nos leva e aceitar que não parecer bom não precisa nos proibir do otimismo de pensar que os Deuses ajudam aqueles que se ajudam. Ao melhorar as dimensões-chave, mudamos o estado do jogo, e coisas boas novas e inesperadas podem acontecer. E com esperança, elas vão acontecer. Este é o ponto da esperança – você não precisa saber para ter esperança, desde que veja um caminho, e não precisa ter um destino claro para ter uma direção.
O espírito de desafio do lean é reconhecer desafios concretos para responder e avançar em um espírito de hansei, de reconhecer os próprios erros e corrigir o que pudermos, passo a passo. A incerteza é um fardo. Isso faz com que os planos pareçam bobos e as conquistas pareçam inúteis e mina nossa vontade de agir. Apenas se deixarmos. A beleza do pensamento lean é que, como costumávamos dizer, o espaço para melhorias é o maior espaço. Não precisamos de um roteiro ou de uma visão brilhante. Precisamos enfrentar nossos problemas de hoje, tentar contramedidas e melhorar as coisas – e observar como novas soluções criativas emergem da escuridão. Kaizen primeiro, e visão depois.