GERAL

Assim como nas empresas, VAR mostra que resultados da tecnologia dependem do fator humano

Flávio Augusto Picchi
Toda tecnologia só faz sentido se servir para apoiar as pessoas

Vista da sala de operação da VAR (Vídeo-assistente de arbitragem) do Centro de Transmissão Internacional da Copa do Mundo de 2018 em Moscou, Rússia (Foto: EFE/EPA/YURI KOCHETKOV)

A grande marca desta Copa do Mundo já está clara. Não são os grandes craques que já saíram, nem os times de menor tradição que deram trabalho aos teoricamente superiores. É o VAR, ou árbitro de vídeo, que roubou a cena.

Neste momento em que as empresas se veem à frente de inúmeras oportunidades, ameaças e dúvidas, pelo enorme avanço da tecnologia, cabe uma reflexão a partir de mais esse paralelo que podemos fazer entre o mundo corporativo e o futebolístico. O uso cada vez maior da tecnologia faz as organizações dependerem mais ou menos das habilidades humanas?

A filosofia lean, ou mentalidade enxuta, há décadas prega um conceito básico, que na minha opinião responde a essa pergunta:  toda tecnologia só faz sentido se servir para apoiar as pessoas que realizam o trabalho a agregarem mais valor a seus clientes, efetuando suas tarefas de forma que apliquem cada vez mais toda sua inteligência, criatividade e flexibilidade para resolver problemas. Ou seja, o fator humano é ainda mais decisivo neste cenário de rápidas mudanças.

No caso do VAR, num primeiro momento algumas pessoas tinham a ilusão de que o sofisticado sistema de dezenas de câmeras acabaria com todas as injustiças cometidas por erros de arbitragem.

Rapidamente se percebeu que algumas situações são bastante objetivas, mas muitas outras continuam dependendo da interpretação do árbitro. Ou seja, a tecnologia trouxe um grande avanço, possibilitando imagens em alta definição e em câmera lenta de vários ângulos, mas isso demandará juízes cada vez mais preparados para utilizá-la, bem como procedimentos e regras claras, como por exemplo quanto à interação entre o árbitro de campo e o de vídeo.

Da mesma forma, nas empresas, vejo às vezes uma ilusão de que a tecnologia, por si só, resolverá todos os problemas e trará a vantagem competitiva esperada. Tecnologias mais poderosas e baratas têm se tornado disponíveis em velocidades cada vez maiores. Mas para que sua utilização traga realmente os resultados esperados, evitando algumas armadilhas frequentes, ressalto três perguntas bastante simples, que precisam ser respondidas.

A primeira questão diz respeito ao propósito. Está bastante claro que problema a tecnologia vai resolver e como ela vai melhorar a vida das pessoas? No caso do VAR, sem dúvida está claro: eliminar erros de arbitragem, por exemplo em lances de fração de segundos, onde o juiz não consegue ter todas as informações necessárias para decidir.

Nas empresas, nem sempre a introdução de uma nova tecnologia começa com essa clareza. É comum vermos decisores apaixonados em propor um grande investimento em robôs ou sistemas sem terem claro que problema querem resolver. Ou quando querem aplicar sofisticados aparatos em processos que carecem de problemas de base, que poderiam ser resolvidos de maneira mais simples e com menos recursos.

Investir em rever processos e formar pessoas leva tempo e exige muita perseverança. Contratar um fornecedor que implante uma nova tecnologia parece um atalho mais fácil para muitos, mas que nem sempre traz os resultados pretendidos, principalmente se não for respondida a segunda pergunta: a interação com todas as pessoas envolvidas foi bem planejada?

Essa parece a parte que não foi ainda bem resolvida no VAR. Vimos situações semelhantes, em que o árbitro de campo seguiu procedimentos diversos na interação com o árbitro de vídeo, consultando ou não a tela ao lado do campo etc. A comunicação com os “clientes”, ou expectadores, também não foi muito transparente, uma vez que algumas regras não estavam totalmente claras.

Este é um ponto chave quando se trata de inserção de novas tecnologias nas empresas: envolver todas as pessoas que participam do processo, fornecedores, clientes etc., desde a identificação das necessidades, desenvolvimento e implantação. Revendo os processos, impactos e novas oportunidades que a nova tecnologia trará. Comunicando muito bem o que mudará e mantendo o permanente feedback e ajuste. Desenvolvendo formas de acelerar a melhoria contínua, utilizando a inteligência de todos. Usando a tecnologia para potencializar o fator humano.

A última pergunta é o check final: o novo sistema “tecnologia + pessoas” efetivamente agrega valor e gera melhoria contínua? No caso do VAR, na minha opinião, ele contribui para reduzir injustiças e evoluirá com o tempo, mas muitas pessoas discordam. Certamente precisaremos de mais fatos e dados para uma avaliação completa.

Nas empresas, nem sempre esta etapa fundamental do PDCA (plan-do-check-act) é feita, perdendo-se a oportunidade de melhorias e ajustes. A própria introdução de uma nova tecnologia deveria ser feita através de experimentos que gerem aprendizados em pequenos ciclos rápidos de aprendizado. É importante ressaltar também que o check-act depende de uma definição clara do propósito desde o início. Sem isso, a avaliação dos resultados ficará vaga, e esforços enormes podem ser avaliados superficialmente, escondendo muitos desperdícios.

Aqueles que encaram os avanços tecnológicos como uma forma de depender menos das pessoas cometem grande engano. O uso cada vez mais intensivo da tecnologia será fator competitivo decisivo, se efetivamente for usado para potencializar a contribuição das pessoas para melhorarem os processos, produtos e modelos de negócio, em ciclos cada vez mais rápidos e efetivos, entregando mais valor aos clientes.

Publicado em 04/07/2018

Autor

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil