SAÚDE

Gerenciando o infarto do miocárdio: uma aliança de sucesso com o lean

Eduardo Novaes, Bruno Battaglia e Flávio Battaglia

Os hospitais enfrentam diversos desafios atualmente no atendimento de seus pacientes. Os pacientes, por sua vez, frustram-se por conta da espera em demasia que é resultado da superlotação na área da saúde. Um dos setores que mais vivenciam essa realidade dentro de um hospital, por haver muita invariabilidade na demanda e uma necessidade urgente de atendimento, é a emergência. O Hospital Aliança, ciente desse problema, mostra como conseguiu melhorar seu fluxo de atendimento nesse setor utilizando a filosofia lean como guia.


O Complexo Hospitalar Aliança situa-se em Salvador, Bahia. Ele conta com 213 leitos e possui 1.591 funcionários que atuam em cerca de 60 equipes estratégicas de trabalho. O trabalho executado por essas equipes está embasado em três valores que definem o jeito de ser do Aliança: Excelência, Integridade e Aperfeiçoamento. Com foco nessas três premissas, o hospital iniciou seu trabalho com o pensamento lean em maio de 2016 buscando melhorar seus processos na emergência.

Figura 1: Fachada do Hospital Aliança

A situação atual

Os dois maiores problemas que o hospital enfrentava na emergência eram a inexistência de um fluxo diferenciado para pacientes com dor torácica e suspeita de Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) - que eram responsabilidade da linha cardiológica, mas compartilhavam o mesmo fluxo dos outros pacientes - e a alta saturação do fluxo de pacientes verdes, que são clientes de pouca urgência, mas numericamente muito expressivos.

Tendo sempre suas premissas de excelência, integridade e aperfeiçoamento em mente, o hospital decidiu que esses dois problemas precisavam ser estudados e solucionados de forma imediata.

Os pacientes de pouca urgência ocupam o maior volume de atendimento do PA do Hospital Aliança, representando aproximadamente 65% do volume total de pacientes. O principal problema aqui era o tempo de espera elevado, que comprometia a qualidade, a segurança e o nível de satisfação do cliente. Como resultado, havia um grande número de desistências do atendimento médico por parte desses pacientes.

Enquanto isso, a linha de cardiologia também enfrentava muitos desafios de difícil solução. O problema mais visível dessa linha era a superlotação, o que gerava uma mescla entre o próprio fluxo dos  pacientes verdes e pacientes com queixas de dor no peito (às vezes leves), o que poderia ser sinal de IAM em evolução.

Isso gerava o conceito errado na população de que a emergência tinha um perfil de doenças clínicas gerais e de que os casos de IAM poderiam não ser prontamente  atendidos, causando insatisfação e desistência do atendimento por parte dos pacientes. Com isso, muitos pacientes com suspeita de doenças cardíacas não procuravam a emergência do hospital ou desistiam do atendimento assim que chegavam.

Na realidade, a estrutura física, tecnológica e de profissionais dessa área sempre foi altamente desenvolvida, mas, na  prática, alguns dos números de desempenho da cardiologia eram preocupantes, pois apesar de serem um exemplo (um dos melhores serviços de hemodinâmica do norte-nordeste - o que é fundamental para realização da Angioplastia no tratamento do infarto), havia uma taxa de ociosidade de 70% nesse setor. Também na UTI cardíaca havia uma baixa ocupação, com uma taxa de ociosidade em 40%.

Além disso, havia problemas de comunicação e com o fluxo de informação: não havia um trabalho padronizado de como o paciente com dor torácica seria identificado e como acionar o atendimento para a realização imediata do ECG (eletrocardiograma) e o seguimento do atendimento sem dúvidas de operacionalização.

O hospital tinha o objetivo de implantar uma forma mais estruturada de atendimento para o IAM, com base no modelo de Protocolo Gerenciado Multiprofissional, que tinha o objetivo de garantir, além de seu conhecido cuidado médico de excelência  baseado em diretrizes internacionais, as melhores práticas de todos os profissionais (sejam de saúde, administrativos ou da recepção) em cada ponto de contato do paciente no hospital.

Com isso, o objetivo era cobrir os pontos críticos com maior risco de falhas no atendimento. A principal característica dessa forma de atendimento é a necessidade de  monitoramento e medição, com base em exigentes indicadores de qualidade assistencial em saúde.

Um exemplo da aplicação desse protocolo é o indicador chamado Porta E.C.G, que é o intervalo de  tempo entre a chegada do paciente com queixa de dor no peito na porta do hospital até a realização do primeiro eletrocardiograma; esse tempo não deveria ser maior do que meta de dez minutos.

Outro importante indicador é o Tempo Porta Balão, que representa o intervalo de tempo entre a chegada do paciente com queixa de dor no peito até a realização da Angioplastia para abertura da artéria que está obstruída no IAM. Nesse caso, a meta era de, no máximo, noventa minutos.

 Na prática o protocolo deveria  garantir um fluxo rápido, eficaz e seguro no atendimento, mas os registros de tempo do IAM, até então sem esse protocolo,  estavam fora das metas, acima do tempo.

Essas metas eram uma exigência fundamental dos protocolos internacionais para o atendimento do Infarto, e o Aliança tinha como desafio implantar esse protocolo do IAM cumprindo todas as metas exigidas internacionalmente. Ainda não havia um atendimento baseado nesse modelo de Protocolo, por isso não estava claramente definido quem, quando e em quanto tempo as ações deveriam ser realizadas. Essa clareza no atendimento ao IAM é fundamental, pois, nesse caso, cada minuto vale uma vida.

Figura 2: Situação atual da Cardiologia

Todos esses problemas são muito comuns em hospitais, mas resolvê-los não é algo óbvio ou fácil. Na verdade, muitos hospitais não sabem sequer por onde começar para superar esses obstáculos.

Início da jornada

O Hospital Aliança, utilizando a filosofia lean nessa árdua jornada, definiu um Projeto de Melhoria do Fluxo de Valor que consistia em três fases: a primeira fase consistia na seleção do problema e no escopo do projeto. A segunda envolvia o mapeamento e o planejamento. A terceira era a fase das mudanças, o momento em que o hospital implementaria suas ações e refletiria sobre os resultados.

Para iniciar o projeto, foram formadas duas equipes (uma focada na linha de cardiologia e outra focada no fluxo de pacientes verdes). É necessário ter muito cuidado na seleção e na formação das equipes. No final do dia, o sucesso de sua transformação não depende das ferramentas, mas do comprometimento e do engajamento de todos.

Os integrantes dessas equipes eram todos profissionais da saúde sem experiência em gestão que foram convidados ao mundo dos indicadores, das metas e do plano de ação. Inicialmente, eles ficaram assustados e temerosos. Mas a percepção da diretoria de que a metodologia lean seria adequada para transformar aqueles ótimos profissionais da linha de frente em ótimos gestores com ótimas soluções foi de fato transformador.

Os integrantes daqueles grupos, que antes temiam o gerenciamento, se transformaram em gestores claros, decididos e apaixonados pelo gerenciamento do infarto do miocárdio, garantindo uma assistência ainda melhor. Assim começou a Aliança da cardiologia com a metodologia  lean.

Para iniciar os trabalhos, foi importante apresentar os conceitos lean a todos. Então, o Hospital Aliança seguiu para a fase 1 de seu projeto: a seleção dos problemas e o escopo do projeto. As pessoas com maior conhecimento dos problemas reais do negócio são aquelas que fazem o trabalho diariamente. Portanto, para ter uma noção mais exata das dificuldades enfrentadas, foi organizada uma discussão multidisciplinar para identificar quais eram as barreiras que impediam que o hospital alcançasse seus objetivos. Ter diferentes pontos de vista vindos de diferentes áreas do negócio é vital para garantir uma visão mais holística e abrangente dos problemas.

Outra medida necessária no início de qualquer projeto lean são as caminhadas pelo gemba. Caminhar pelo gemba tem um impacto muito maior no sucesso de qualquer transformação lean do que muitas pessoas pensam. É importante ter em mente que quem caminha pelo gemba deve ser um observador apenas, e não interferir no trabalho da linha de frente. O Hospital Aliança tinha três principais objetivos em sua caminhada:

  1. Validar os problemas apontados na situação atual.
  2. Analisar de forma multidisciplinar as oportunidades de melhoria.
  3. Fornecer um formato para a construção do estado futuro.

Após a caminhada, a equipe sentiu muito mais confiança para dar continuidade no projeto, pois já tinha um conhecimento mais aprofundado sobre os problemas e já havia eliminado ou validado as hipóteses previamente levantadas. Com isso, o próximo passo indicava o início da fase 2.

Mapa, plano, ação

Para construir o mapa do estado atual, que revela como as coisas estão hoje e ajuda a identificar oportunidades de melhorias, as equipes utilizaram o pensamento A3, dividindo o macroprocesso em etapas. Então, a equipe cronometrou os processos e levantou os gargalos de cada uma das etapas previamente estabelecidas.

O mapeamento do estado atual é a primeira etapa na construção de um A3. O pensamento A3 exige, ainda, que seja feita uma análise dos problemas com a consequente elaboração de contramedidas para solucioná-los. Assim que as contramedidas forem definidas, será possível construir um mapa do estado futuro, que indica aonde a empresa deseja chegar.

Figura 3: Mapa do estado atual do fluxo de pacientes verdes

A equipe de cardiologia identificou quinze causas para os problemas nos processos que estavam causando desperdícios e impedindo que o hospital obtivesse os melhores resultados possíveis. Elas foram divididas em cinco categorias: problemas no PA, problemas no setor de hemodinâmica, problemas na UTI cardíaca, problemas na internação e problemas na RM/TC cardíaca.

Figura 4: Análise das causas dos problemas na cardiologia

Com isso, a equipe estabeleceu contramedidas para cada uma das causas, utilizando um sistema de recomendações que envolvia todas as pessoas interessadas e engajava todos na solução desses problemas. Com o auxílio dessas contramedidas, foi também possível desenhar o mapa do estado futuro, pois a equipe já sabia aonde queria chegar.

Figura 5: Contramedidas da equipe de cardiologia

Enquanto isso, a equipe que estava focando no fluxo de pacientes verdes também fez sua análise de causas e desenhou um diagrama que revelava a razão pela qual o tempo de atendimento a esse tipo de paciente era tão elevado. Quinze causas foram identificadas, e elas mostravam o que causava o atraso em cada uma das etapas pelas quais o paciente verde precisava passar: cadastro, triagem, consulta médica, exames, medicação/observação e alta/internação.

Figura 6: Análise das causas dos problemas no fluxo de pacientes verdes

Assim como fez a equipe de cardiologia, a equipe do fluxo de pacientes verdes reuniu recomendações com a colaboração de todos os interessados e estabeleceu contramedidas para lidar com os problemas e suas causas. Eles também procederam ao desenho do mapa do estado futuro.

Figura 7: Contramedidas da equipe do fluxo de pacientes verdes

Ambas as equipes fizeram um plano de ação para atingir o estado futuro desenhado, definindo o que seria feito, de acordo com cada contramedida estabelecida, quem faria e até quando. Esse plano de ação é a penúltima parte do A3. Após sua definição, a equipe prossegue para chegar a um acordo sobre como acompanhará e coletará os resultados para tomar as providências que forem necessárias.

Resultados

Hoje, o Hospital Aliança possui um sistema mais integrado e uma equipe mais interligada. Todos se sentem responsáveis pelo sucesso do hospital e enxergam com maior clareza os diversos pontos de vista das diferentes áreas do hospital, que lhes garante maior confiança e engajamento na tomada de decisões. Todas as ações que o Aliança tomou resultaram em resultados fantásticos em pouco tempo.

Entre maio e agosto de 2015, antes do início do projeto, o hospital havia atendido 18.974 pacientes, dos quais 1.471 desistiram do atendimento, que totaliza 7,7% do total de pacientes atendidos. Desse total de desistentes, 975 expuseram o motivo da desistência como sendo a demora no atendimento (a maioria dos quais eram pacientes verdes ou cardiológicos).

No mesmo período em 2016, no início da implementação do lean, as desistências caíram em 70%, totalizando apenas 439 desistentes, que representam apenas 3,2% do total de pacientes. E, dessas 439 pessoas que desistiram do atendimento, apenas 194 relataram a desistência por conta de demora no atendimento, uma queda de 80% em relação ao ano anterior.

A linha de cardiologia resolveu muitos de seus problemas através de trabalhos padronizados simples e criativos utilizando os conceitos e as abordagens da filosofia lean, gerando grande agilidade no atendimento.

Foi criado um sistema de identificação precoce da dor torácica (CÓDIGO 99), que atua assim que o paciente chega na recepção do hospital. No ano presente, o tempo médio entre a chegada do paciente na recepção do hospital até realização do ECG é de quatro minutos. No ano de 2016 (sem o atual protocolo), esse tempo ultrapassava os dez minutos recomendados. Atualmente, muitas vezes a realização do ECG é o momento zero do paciente, pois a sinalização precoce de sua prioridade no atendimento faz com que ele seja conduzido de imediato à sala de realização do exame.

Também o tempo para a realização da Angioplastia para o tratamento do IAM foi reduzido, pois além da agilidade na realização do ECG, foram criados mais 2 trabalhos padronizados com esse objetivo:

Um foi o chamado KIT IAM, em que todo o material necessário para o preparo da Angioplastia e todos os medicamentos indicados são prontamente disponibilizados em uma única ação.

O outro foi a chamada TECLA IAM, em que no prontuário eletrônico, um ícone é disponibilizado para incluir o paciente no protocolo, ativando o laboratório e a hemodinâmica, além de garantir a qualidade e a segurança de todo o tratamento com uma prescrição padronizada e várias barreiras de segurança, tudo de forma extremamente prática e rápida.

O resultado desse trabalho foi demonstrado no comparativo do tempo entre a chegada do paciente com dor no peito até a realização da Angioplastia, que antes era de 112 minutos e, agora, está 84 minutos, uma redução de 23%. Com isso, o hospital superou sua meta de 90 minutos.

O que o Aliança colhe hoje são resultados de indicadores de qualidade assistenciais dentro das metas preconizadas e também a melhoria da satisfação e recomendações muito positivas dos clientes. Mas o mais importante é a certeza que agora eles têm de disponibilizar na emergência um atendimento para o Infarto Miocárdico dentro do padrões de excelência, o que era a meta do hospital.

A melhoria do atendimento de saúde é um problema não apenas dos hospitais, mas da sociedade como um todo. Ninguém gosta de esperar para ser atendido, mas quando se trata de saúde, a situação é mais agravante. Um bom atendimento na área da saúde é um direito e uma necessidade de todo cidadão. O pensamento lean pode ser a ajuda que estamos esperando para finalmente eliminarmos a superlotação e a espera demasiada que os pacientes enfrentam hoje nos hospitais.

Publicado em 31/07/2017

Autores

Eduardo Novaes
Coordenador da Linha de Cardiologia do Hospital Aliança em Salvador, Bahia
Bruno Battaglia
Head Lean para o Agronegócio no Lean Institute Brasil
Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal