CULTURA E LIDERANÇA

Qual é a abordagem lean quanto à qualidade? Seis sigma é sobre isso?

Caro Gemba Coach,
Sou um leitor assíduo de suas colunas, e você sempre parece enfatizar a qualidade em primeiro lugar, mas não consigo achar muitos livros sobre uma abordagem lean quanto a qualidade. Seis sigma é sobre isso?

Por favor! Seis sigma é um conjunto (muito válido) de técnicas, mas não uma abordagem lean. E, sim, você está correto. Em primeiro lugar, há – sem dúvidas – uma abordagem lean quanto à qualidade, e, em segundo, é nossa culpa não escrevermos mais sobre isso. Acho que o motivo é por ser difícil. Art Smalley e eu começamos um livro sobre qualidade “embutida”, mas não conseguimos terminar – a qualidade é muito específica e está ligada a processos técnicos, que são difíceis de descrever em termos genéricos.

A qualidade é um tópico difícil, porque, como seres humanos normais, prejudicamos os resultados por focar apenas na produção. Por exemplo, vamos ao gemba no consultório de um médico. Quando vai fazer um checkup ou quando não está se sentindo bem, você espera um bom resultado: você quer ser curado da forma mais rápida e menos dolorosa possível para voltar a viver sua vida normal. Você espera do médico:

  1. Precisão: a coisa mais importante é fazer o diagnóstico certo na primeira vez e, então, prescrever o tratamento certo.
  2. Disponibilidade: você quer ver o médico agora, não ser colocado em uma lista de espera, não esperar em uma sala cheia de tosses, espirros, pessoas irritadas e pacientes em péssimas condições.
  3. Atitude: você precisa desesperadamente confiar em seu médico, e sua atitude realmente importa. Melhor um médico bom com uma atitude ruim do que um médico legal que não sabe o que faz, mas a forma como o paciente é tratado reflete em quanta confiança ele colocará no tratamento, quão rigorosamente ele seguirá a prescrição e quão bem o efeito placebo funcionará.
  4. Conselho: um médico que provou ser preciso, disponível e confiável será capaz de lhe dar conselhos que você valorizará (evite gorduras, exercite-se mais, lave suas mãos antes de comer) e que melhorarão seu nível de saúde além do problema imediato que incentivou a consulta (alternativamente, você provavelmente rejeitará conselhos perfeitamente válidos de um médico de quem não gosta).

Precisão, disponibilidade, atitude e bons conselhos descrevem o resultado do paciente. O médico, entretanto, tem um problema um pouco diferente com uma fila enorme de pacientes e contas a pagar. Então é fácil que seu foco seja na produção: quantos pacientes são tratados em um dia, focando em passar menos de 10 minutos com cada paciente e em simplesmente realizar seu trabalho. Fazendo isso, o médico pode ser visto como eficiente, mas pode facilmente perder efetividade. Os diagnósticos são muito rápidos, as prescrições, genéricas, as interações, indiferentes, e a aprendizagem desaparece completamente.

Alcançando a qualidade

A única abordagem da Toyota quanto ao mercado é a satisfação do cliente através de mais qualidade, menos custo e lead-time mais curto.

O que mais qualidade significa na prática? Isso costuma ser muito complicado, porque produtos e serviços podem ser vistos como:

  1. O que todos os produtos e serviços têm em comum (um carro é um carro, que o leva de A até B e consome combustível).
  2. O que alguns produtos e serviços têm especificamente de que os clientes realmente gostam.

Qualidade é (1) precisão perfeita quanto a o que todo mundo tem em comum – e, se você não conseguir identificar isso, o cliente fica aborrecido – e (2) oferecer algo especial; difícil de quantificar, mas é o que faz os clientes sorrirem – e os torna leais a sua marca.

Eu estava no gemba há alguns dias vendo os esforços de engenharia lean de uma empresa que faz tetos solares para carros – inserir o vidro no teto com todos os mecanismos para abrir e fechar, inserir a parte que abrirá e assim por diante. Estávamos olhando para um novo conceito, e o engenheiro identificou que os mecanismos precisavam:

  1. Trabalhar facilmente e não quebrar – esse é o valor básico que todos os competidores oferecerão (em níveis variados).
  2. Fazer o som certo – esse é um insight único que, como em portas de carros, há algo singularmente satisfatório em algo que fecha com o “som” certo. Duvido que exista uma palavra para “boa fechada”, mas isso é definitivamente algo que faz você se sentir bem e sorrir.

Só o futuro dirá se o engenheiro está certo, mas ele está tentando – precisão em desempenho básico e atitude para fornecer algo a mais.

Qualidade e kanban

A Toyota, por exemplo, além de fazer carros que têm desempenho superior a qualquer outro na faixa de preço, conquistou sua fatia de mercado com, primeiro, “paz de mente” e, segundo, “eficiência energética”. Voltando do aeroporto, um motorista de táxi me disse que ele agora dirigia um Toyota Prius porque seu querido Mercedes passava muito tempo no conserto, enquanto ele nunca tinha de se preocupar com o Toyota e, além disso, como passava muito tempo dirigindo pela cidade, ele percebia uma diferença visível no consumo de gasolina. E ele se sentia bem por poluir menos (a propósito, a pressão competitiva que isso impõe sobre o mercado é real, como mostra o último escândalo da VW). Outras fabricantes de automóveis escolheram estilo, potência ou conforto.

Uma vez que isso esteja em sua mente, a questão será: como alcançar? Você já viu o incrível programa da “BBC Top Gear” sobre “como destruir um Toyota”? (https://www.youtube.com/watch?v=xnWKz7Cthkk – em inglês). É uma divertida ilustração sobre como a Toyota dá paz de mente a seus clientes. Qual é a abordagem única do lean para fazer isso?

O truque está em entender que a qualidade é precisão e disponibilidade. Encurtando os lead-times, a Toyota põe pressão na entrega de apenas peças de qualidade em todos os níveis. Se houver qualquer dúvida quanto à qualidade da peça ou a sua montagem, a linha para – mas a pressão para entregar pequenas quantidades em intervalos regulares continua, então a investigação acontece imediatamente! Em outras palavras, estamos procurando qualidade e entrega imediata sem excesso de estoque – a fim de sermos capazes de focar em cada peça ou parte errada na hora (em oposição a inspecionar um lote inteiro de peças em espera).

Qualidade embutida significa que podemos desenhar uma matriz mental:

  1. Das principais funções que oferecemos aos clientes e de seu nível de desempenho esperado.
  2. Da logística de entrega dessa função (em produtos, isso significa não apenas o módulo que entrga a função ao cliente, mas aquele que cria o módulo também).

Do gemba, aqui está um exemplo (acima) de uma matriz para um centro de serviço de trens. No lado esquerdo, você encontra os benefícios para o cliente e, no topo, os processos que estão gerando esses benefícios. Círculos preenchidos são as altas interações; círculos vermelhos são aqueles onde o kaizen está acontecendo:

Fazer um just-in-time completo em cada processo básico mostrará muitos problemas internos de qualidade, que são uma oportunidade para melhorar a precisão do produto ou serviço como um todo enquanto aumentamos a disponibilidade também. Sem estoque significa que a única peça (oh, OK, cinco peças) que temos à mão sejam todas boas.

Uma obsessão por poucas peças que sejam todas boas em cada processo que aumente o desempenho para os clientes impacta profundamente a engenharia do produto ou serviço. Primeiro, tomaremos muito mais cuidado quando mudarmos as coisas. Sim, o produto precisa evoluir e inovar, mas não pondo em risco a qualidade. O engenheiro-chefe quer colocar todas as características mais inovadoras no novo carro, mas precisa tomar cuidado com os padrões – isso nos levará a definir muito cedo o que segue e o que não segue em frente.

Em segundo lugar, a ênfase em treinamento constante agora parece óbvia. Poucas peças de tudo a todo tempo significa que os cinco componentes que você tem à mão têm de ser bons (não há estoque para remexer por peças boas que substituam a defeituosa). Isso significa que o esforço para garantir que o processo que as fabrica funcione perfeitamente é uma necessidade; não um “seria bom ter”. Por um lado, mudamos menos coisas, por outro, trabalhamos muito mais para fazer o processo atual funcionar. A chave é, obviamente, kaizen.

Lean como sistema de qualidade

Essa é outra razão para acharmos difícil separar a qualidade (contrariamente aos seis sigma e a abordagens similares) do just-in-time em nossas descrições do lean – qualidade é o pré-requisito para o kanban; isso fica muito óbvio em todos os livros antigos da Toyota, mas a qualidade também é alcançada através de kanban: quanto menores os lotes, menos peças estão no processo e maior é a pressão quanto a qualidade. Você não os pode separar.

Se olharmos a um nível individual, como esperamos que qualquer pessoa domine qualquer tarefa?

  1. Resultado: A pessoa consegue entregar a qualidade certa autonomamente (sem ajuda ou correção) todas as vezes?
  2. Produção: A pessoa consegue entregar a qualidade certa dentro do tempo de ciclo alvo autonomamente (sem ajuda) todas as vezes?
  3. Ideias: Essa pessoa tem ideias para tornar o padrão mais fácil de ser seguido e, portanto, aumentar as chances de entregar resultados e produção?
  4. Ensino: Elas conseguem ensinar outras pessoas?

Para uma nova linha, no início da produção, o tempo takt é o principal alvo, e a questão é “quão rapidamente conseguimos atingi-lo?”.

  1. Todo produto precisa ser certo, então levará o tempo que for para solucionar todos os problemas – conforme eles aparecerem – passo a passo na linha (o que significa aprender a detectá-los o mais próximo possível de quando eles forem criados).
  2. Quando os problemas de qualidade forem dominados, aproximamo-nos dos tempos de ciclo alvos e, portanto, aproximamo-nos da entrega no tempo takt planejado.
  3. Quando o tempo takt é alcançado regularmente, ou retiramos recursos da linha ou adicionamos um novo produto para manter o espírito de kaizen vivo e começamos outro ciclo de solução de problemas de qualidade que aparecerem, atingindo, então, o tempo de ciclo alvo novamente e assim por diante.

A Toyota muito claramente nos ensinou que, a fim de alcançarmos a satisfação dos clientes (mais qualidade, menos custo, menor lead-time), precisamos dominar simultaneamente os pilares do just-in-time (tempo takt, puxada e fluxo de uma só peça) e o jidoka (parar no defeito e tornar as máquinas autônomas quanto a qualidade para separar o trabalho da máquina do humano). Esses dois objetivos (mais just-in-time e mais jidoka) conduzem o trabalho real de kaizen e envolvem e mantêm padrões, que gerarão qualidade em termos de precisão, disponibilidade, atitude e, no final, conselho.

Sim, como autores lean, fomos descuidados por não explicar melhor a dimensão da qualidade do pensamento lean. Sem dúvida. A única ajuda que posso sugerir é tentar e ver os aspectos da qualidade embutidos em todas as discussões de just-in-time e, sim – enfaticamente sim – a qualidade vem em primeiro lugar, depois, a entrega, depois, a redução do lead-time e, então, a redução de custos. Ainda assim, isso é contra intuitivo. As condições para aumentar a qualidade são criadas por nossos esforços para melhorar a precisão da entrega, reduzir os lead-times e reduzir custos desnecessários. É um sistema.

Fonte: Lean Enterprise Institute

Publicado em 12/01/2016

Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal