ESTRATÉGIA E GESTÃO

Michael Ballé identifica uma série de valores da gestão lean de que precisamos para sobreviver

Se vemos o pensamento lean como um paradigma, o que fazemos, então devemos ser capazes de definir uma série de valores de acordo com os quais esse paradigma é construído. Então existe uma ética lean? Michael Ballé identifica dez valores lean inquestionáveis – e mais um.

“Lean não está livre de valores e princípios”, John Shook me disse uma vez, quando estávamos discutindo quão inclusivo ou exclusivo o movimento lean deveria ser – uma pergunta para a qual ainda não há uma resposta definitiva. Estive pensando nisso desde então: quais são os valores do lean?

Como em muitas discussões culturais, problemas relacionados aos valores são difíceis de serem entendidos (até mesmo o termo “valor” é pesado e difícil de descobrir na prática), porque muito está nos olhos de quem vê: naturalmente projetamos nossos valores naquilo que aderimos, o que não significa, necessariamente, que o objeto realmente os apoia.

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Então aqui estão dez valores inequívocos (por inequívoco quero dizer explicitamente estabelecido tanto no STP (TPS) quanto na literatura lean e não sujeito a debate), ou “preferências”, de que precisamos para sobreviver:

  1. Satisfação do cliente acima dos interesses internos da companhia – A primeira preferência é colocar o cliente à frente da companhia, o que – nem precisa dizer – é algo difícil de medir. Os clientes são muitos, e suas demandas, infindáveis. Toda companhia precisa fazer escolhas para entregar a muitos clientes de uma vez. Como é possível colocar as demandas de um cliente acima de seus próprios processos? A resposta lean é, obviamente, flexibilidade – que também tem seus próprios limites técnicos (como Jim Womack aponta aqui, toda vez que uma companhia, seja a Toyota ou a Volkswagen, se coloca acima de seus clientes, problemas aparecem).
  2. Fatos são melhores que dados – Fatos significam informação em primeira mão, o que, em termos técnicos, pode ser chamado de “transubjetivo” – todos nós entendemos que toda perspectiva é subjetiva, mas, quando testemunhamos juntos um mesmo evento, concordamos com o que aconteceu. Os fatos no gemba são melhores do que a análise de relatórios apresentados na sala de reuniões. Isso não quer dizer que não há espaço para coletar dados e fazer análises, mas a primeira pergunta sempre deve ser: você foi e olhou com seus próprios olhos o que está realmente acontecendo no contexto? No famosos ciclo planejar-fazer-verificar-agir, a ênfase está na verificação dos fatos e no agir – tirando as conclusões certas.
  3. Os problemas são oportunidades para aprendizagem, não ocasiões para culpar os outros – culpar o mensageiro é uma tendência humana natural; estamos acostumados a atribuir sucesso a nossas ações e fracasso, aos defeitos de personalidade de outras pessoas. Não há como escapar dessa tendência. Entretanto podemos nos forçar a valorizar os problemas como oportunidades para aprendizagem e a lidar positivamente com informações desfavoráveis, perguntando “por quê?” em vez de “quem?”, então as pessoas se sentirão confortáveis para falar sobre os fracassos, assim como os sucessos.
  4. Os lead-times menores são melhores do que os maioresJust-in-time tem a ver com reduzir o lead-time entre um pedido e sua entrega. Isso é consistente com o primeiro valor, o da satisfação do cliente, mas é obviamente muito difícil de conseguir, porque normalmente tendemos a seguir com o trabalho de acordo com as capacidades que temos atualmente e entregar aos clientes assim que o produto estiver pronto.
  5. Trabalho em equipe acima de heróis individuais – O just-in-time necessariamente pede uma preferência por cooperação entre as funções em vez de cada silo solucionar seus próprios problemas, e os procedimentos da companhia ter de carregar o peso da colaboração interfuncional. Trabalho em equipe, no sentido lean, significa solução de problemas entre as fronteiras, ao invés de jogar o problema para o outro lado da cerca.
  6. Solucionar os problemas conforme apareçam em vez de trabalhar primeiro, consertar depois – A preferência do Jidoka por parar em cada defeito para olhar para as condições atuais que estão criando esse defeito muitas vezes significa investir no desenvolvimento de meios para alcançar isso. A escolha mais fácil é continuar trabalhando, reconhecer que algo não está certo e assumir que ou o cliente não perceberá ou que o defeito será percebido na inspeção final. Parar quando um defeito aparece é um valor importante – e difícil de seguir na prática –, principalmente quando significa investir no desenvolvimento de meios técnicos para distinguir o trabalho ruim do trabalho bom.
  7. Melhoria contínua acima da estabilidade procedimental – A melhoria contínua é valorizada não como uma mudança aleatória, mas como a preferência por mudar uma coisa por vez sem parar, ao invés da abordagem “se não está quebrado, não conserte”. Na prática, isso significa fazer um esforço para ter uma atividade contínua de melhoria “tente agora” em todos os processos a todo tempo e envolver equipes na melhoria de seus próprios processos em vez de esperar que os escritórios centrais definam tudo e pedir aos colaboradores que agregam valor ao processo que executem cegamente.
  8. Entendimento detalhado do trabalho acima da visão geral – Um conhecimento muito detalhado do trabalho, capturado na forma de um padrão, é melhor do que uma visão geral financeira ou do processo do que um departamento faz. Os padrões especificam o desempenho em termos de ritmo de trabalho, qualidade, estoque, segurança, sequência passo a passo, capacidades específicas e o conhecimento mais profundo necessário para fazer o trabalho da forma certa. Os gerentes lean devem se interessar por esse nível de detalhes em vez de se contentarem com entender o processo a um nível mais alto ou simplesmente olhar para os resultados de orçamento.
  9. Educação e melhoria acima do comando e controle – A hierarquia é crítica para o lean (em oposição ao pensamento não hierárquico encontrado em empresas livres, em holocracias ou na reengenharia dos processos do negócio), mas sua função preferida é treinar subordinados diretos e apoiar o kaizen, ao invés de tomar decisões, dar ordens e apertar o botão “executar”. A competência é valorizada acima da conformidade, e o trabalho em equipe, acima do combate individual a incêndios.
  10. Ideias de colaboradores que agregam valor são melhores do que investimento central – as ferramentas lean têm a ver com aproximar o processo de decisão do produto/serviço e das pessoas que o faz, ao invés de deixar as decisões para as salas de reunião da gestão. As ferramentas em si destacam as metas, os gaps e o desperdício para que os colaboradores que agregam valor possam pensar em formas melhores de trabalhar, sugerir e implementar ideias, sustentando, portanto, o kaizen. Correspondentemente, há uma preferência por cem pequenos passos de 1% do que um grande passo de 100%.

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Conforme os sistemas de preferências são seguidos, o lean é incomumente explícito e consistente. Voltando um pouco, uma visão geral dos dez valores acima estabelecidos mostra o seguinte:

  • Princípios fortes: Apesar de parecer impraticável ou impossível de alcançar, a forma “lean” é sempre clara em termos de seus objetivos – maior satisfação do cliente, lead-times menores, reação mais rápida a cada defeito, maior envolvimento das equipes mais próximas ao gemba no desenvolvimento de seus padrões e na condução do kaizen – e dos processos –, melhor solução de problemas, melhor trabalho em equipe, mais capacitação e maior engajamento e criatividade individual.
  • Um foco no desenvolvimento de pessoas: Todos os valores destacados são consistentes com a intenção de desenvolver pessoas a fim de “ajudar-nos a trabalhar melhor individual e colaborativamente conforme vemos o mundo mais claramente, o entendemos mais profundamente e lidamos com ele mais efetivamente”, conforme John Shook diz em “The Gold Mine Trilogy Study Guide”.
  • Uma jornada desafiadora: poucas situações de trabalho são definidas para tornar mais fácil cada passo na direção desses valores. Portanto o sistema como um todo demanda muito e requer constância de propósito, persistência e uma boa quantidade de coragem para superar os obstáculos práticos e políticos para progredir em direção ao lean.
Aí está a dificuldade: o sistema de valor lean é claramente projetado para satisfazer melhor seus clientes, desenvolvendo todos os colaboradores, mas é muito difícil e requer que os colaboradores queiram (ou pelo menos concordem) ser desenvolvidos. Apesar de ser possível forçar alguém a fazer algo, é muito difícil forçar alguém a aprender. Por natureza, o sistema de valor lean requer cooperação – o aprendizado é um resultado colaborativo. Esse problema é bem entendido na tradição lean, conforme os valores do desafio de desenvolvimento são balanceados com aqueles do “respeito” – em termos lean, fazer o maior esforço para entender o ponto de vista do outro e reconhecer que eles possam ter objetivos diferentes e encarar dificuldades reais (ou imaginárias) e que sua própria e válida experiência guia suas posições.

Em termos práticos, está claro que toda pessoa pensa estar fazendo um bom trabalho e que dizer-lhes o contrário, mesmo no interesse de seu próprio desenvolvimento, provavelmente arruinará o dia deles. Esse problema é amplamente reconhecido, como apontado por Akio Toyoda, o CEO atual da Toyota: “Uma verdadeira ironia é que o respeito pelas pessoas requer que as pessoas sintam a dor do feedback crítico”. A atitude é que, se as pessoas não receberem um feedback realista, elas não aprendem e não estarão sendo respeitadas. Ainda assim, “o trabalho de um líder não é colocá-los em posições que os levarão a falhar, mas colocá-los em posições onde queiram trabalhar duro para alcançar o sucesso e ainda ver como poderiam estar ainda melhores” (conforme o Sr. Toyoda disse no livro “O Modelo Toyota de Liderança Lean”, de Jeff Liker e Gary Convis).

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MAIS UM VALOR

O 11º princípio do sistema de valor lean no trabalho aqui – sua “regra de ouro” em certo ponto – é a ideia de tornar o trabalho da pessoa mais fácil. Isso, claro, está longe de ser fácil e cria compromissos mais desafiadores com os objetivos de desenvolvimento do resto dos princípios lean, mas fornece outra diretriz clara sobre qual é o próximo passo a ser dado.

Sistemas éticos não são procedimentos. Eles são sinalizações que mostram para você a direção certa, mas eles não lhe dizem como tomar o próximo passo ou até mesmo qual passo deve ser tomado. A bússola ética é limitada a mostrar se você está se movendo na direção certa ou se você está andando para trás. Como em qualquer sistema ético, o quadro de valores lean carrega seus próprios problemas únicos de coragem e consistência, como (dentre outros):

  • Quão persistente você tende a ser sobre mover de acordo com os princípios lean quando isso for inconveniente de forma visível no âmbito político ou até mesmo perigoso?
  • Como você lida com colegas de trabalho com diferentes valores, que não têm interesse no autodesenvolvimento, mas estão focados em fazer seus trabalhos sozinhos, recusam a consideração de potenciais melhorias, culpam os outros pelas falhas e não participam nos esforços do trabalho em equipe?
  • Como você encara pessoas resistentes sem reverter aos modos tradicionais de pressão: dos fatos (essa é a situação como a vejo), do medo (se você não concordar com o programa, cuidado com as consequências) e da força (basta é basta, você fará o que eu mandar), como descrito brilhantemente por Alan Deustschman em “Change or Die”?

Os valores lean não têm outra resposta além de como é o caminho à frente, e, se você for honesto consigo mesmo, eles farão você se sentir culpado quando falhar. Seres humanos naturalmente respondem às falhas protegendo seu ego com justificação (não tive outra escolha) e racionalização (no fim, apesar de parecer ruim, isso será para o melhor, porque…). Ouvindo cuidadosamente as discussões lean, é possível observar uma boa parte de justificações e racionalizações, muitas vezes cunhadas por termos lean.

Cedo ou tarde, os valores lean são confrontados com uma ordem maior de princípios morais, e a principal pergunta quando alguém se compromete à mudança para melhor do mundo (assim se espera) é: como lido com a divergência? Usando os termos de Philip Zimbardo para medir bom contra mau, em qualquer ponto do tempo, estamos sendo bondosos ou cruéis? Estamos sendo carinhosos ou indiferentes? Criativos ou destrutivos? Em outras palavras, estamos nos comportando como heróis ou vilões (veja o efeito Lúcifer)?

Claramente, não há uma resposta “lean” para uma pergunta tão fundamental, mas há algumas dicas. O lean é moderno no sentido de que seus princípios não devem ser aplicados independentemente de cada posição individual. Contrariamente aos sistemas éticos do século XX, não é aceitável sacrificar indivíduos para um bem maior – o argumento de que “você não pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos” não é mais suportado.

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UM EXEMPLO DO GEMBA

Os gerentes de produção da fábrica francesa da Toyota entendem completamente a necessidade por trabalho padronizado. Os operadores devem seguir uma sequência específica de ações, e cada ação precisa ser completada da melhor forma conhecida na época. Fazer kaizen em ações difíceis mostrará onde a fronteira da produtividade está. Na prática, o trabalho padronizado compartilhado é a melhor forma de proteger nossos colaboradores de serem aleatoriamente repreendidos por seu chefe por fazer um trabalho ruim quando pensam que estão indo bem. Seguir o trabalho padronizado dá à gestão e aos colaboradores um ponto comum de referência. Mas e quanto às pessoas muito altas? Ou baixas? Ou canhotas?

Os gerentes da linha de frente aprenderam o que chamam de “mendo-mi”: levar em conta as especificidades individuais de cada membro da equipe. A pergunta que receberam de seus coaches japoneses foi: como você pode tornar mais fácil para cada membro da equipe seguir o trabalho padronizado? O princípio do “trabalho padronizado” não foi abandonado, mas corrigido por assumir a responsabilidade de ajudar cada pessoa a seguir os padrões da forma mais natural possível. Líderes do grupo de linha aprenderam a mudar sua abordagem de identificar defeitos, analisar a causa e aparecer com uma contramedida ensinada a todos os membros da equipe, para analisar dificuldades individuais e desenvolver um plano personalizado de desenvolvimento baseado nas habilidades básicas e especializadas e na ajuda do processo, como criar modelos individualizadospara ajudar as pessoas a seguirem o trabalho padronizado.

Nenhuma pergunta ética terá uma resposta geral em nenhum caso específico – a única forma em que podemos abraçar ideias gerais é generalizando a situação e, portanto, desumanizando-a. Para parafrasear Rilke, com éticas, precisamos amar as próprias perguntas. E, mesmo assim, como o lean não é livre de valor e, de fato (como tentei mostrar), carrega um conjunto muito específico de preferências de valor, ele também é muito característico do século XXI, aceitando de cara que princípios importantes não devem ser aplicados em detrimento das situações e circunstâncias individuais.

Sim, os princípios nos diz qual caminho devemos seguir, sem muita ambiguidade. Mesmo assim, os passos para essa direção são difíceis, e as pessoas muitas vezes tropeçam, não tanto por fraqueza moral, mas pelas muitas dificuldades práticas. Podemos ajudá-las focando em seus casos individuais e, através da comunicação interfuncional, encontrar formas para tornar mais fácil para elas seguirem os princípios.

O lean realmente não é livre de valores. O lean é, na verdade, um paradigma completo: uma prática, uma teoria e um conjunto de valores. A pergunta que persiste, que John Shook e eu debatemos, continuará em aberto (e deve mesmo), porque o que o “lean” é e o que ele não é depende da interação específica do rigor das ferramentas, da profundidade da análise e da atitude da pessoa que é responsável por tudo isso. É por isso que aprender o lean pode ser uma jornada tão longa: a prática diária das ferramentas no gemba nos leva a reexaminar tanto nosso conhecimento quanto nossos valores e a adquirir a disciplina de aprender algo verdadeiramente novo.

Palavras-chave: Transformação lean, respeito pelas pessoas, estilos de gestão, valores lean

Fonte: Planet Lean

Publicado em 05/01/2016

Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal