CONCEITOS, PRINCÍPIOS E ORIGENS

Qualquer cor que você quiser, desde que não seja preto metálico

Henry Ford poderia fornecer ao cliente qualquer tipo de Modelo T, desde que fosse preto. Mas a Ford Motor Company hoje se encontra em uma posição incomum de ser capaz de fornecer veículos em qualquer cor, exceto em preto metálico, como resultado da catástrofe no Japão.

O tsunami-terremoto que atingiu o nordeste do Japão abalou cadeias de suprimento globais que serão mudadas para sempre. Quem sabia (eu não) que muito da produção mundial poderia ser tão devastada pela ruptura de uma única região? Em vez de simples respostas simplistas, vamos nos comprometer em aproveitar estes eventos para iniciar uma nova e total revolução no abastecimento estratégico. Primeiro, um rápido panorama de como chegamos até aqui.

O que aconteceu?

Uma tendência que começou na indústria automotiva nos anos 90 e tornou-se um tsunami que agora atingiu todo o mundo industrial: um modelo de suprimento radical que terceirizou, globalizou e definiu um "abastecimento único" com um único fornecedor, frequentemente de uma única planta, considerado o local mais barato do mundo. Vinte anos atrás, Inaki Lopez, na GM e depois na VW, iniciou essa revolução nas cadeias de suprimento automotivas que rapidamente expandiu-se para todo o mundo industrial. De certo, uma revolução era necessária naquele momento. As relações entre as montadoras e os fornecedores na indústria automotiva eram frequentemente íntimas, mas enfatizavam pouco as melhorias, e as montadoras tinham tantos fornecedores que mal conseguiam identificar todos eles. Lopez fez o Primeiro Mandamento do Abastecimento: Menor Preço Global da Peça. (E os custos de ferramentas também foram reduzidos por meio da instalação da capacidade em apenas um local de fornecimento).

Todas as considerações anteriores de como as peças relacionavam-se às operações saíram pela janela.

As relações íntimas comprador-vendedor desapareceram - isto é bom - mas considerações sensatas, tais como custo total, qualidade, logística e parcerias para a prosperidade mútua também desapareceram. Em pouco tempo, mesmo as operações internas foram mantidas aos mesmos padrões de preço.

A terceirização cresceu junto com a globalização da produção sob o slogan, "Iguale o preço ao que eu consigo na China ou seu contrato será aberto para licitação". E assim aconteceu, e eles ficaram de fora do negócio. Primeiro, fornecedores pequenos fecharam sua portas a um custo enorme para as OEMs substituírem os suprimentos de peças e materiais perdidos. Eles foram seguidos por outros maiores. Eventualmente, todos os principais fornecedores dedicados ao setor automotivo e baseados nos Estados Unidos foram a falência.

Consequentemente, a logística da cadeia de suprimentos tornou-se cada vez mais complexa. Outras tendências contribuíram: os sistemas de softwares mais sofisticados e de transporte, por exemplo, levou ao surgimento da terceirização via operadores logísticos. A logística e mesmo a estratégia da cadeia de suprimentos tornaram-se terceirizadas. A terceirização gerava terceirização. Não diferente do espectro de máquinas projetarem máquinas (como em "O exterminador do futuro"), um monstro foi criado. No final, para os especialistas, ainda uma outra competência fundamental dos fabricantes foi perdida, para especialistas cujos interesses eram os deles mesmos e não das montadoras. E certamente não dos clientes.

Não há nada inerentemente errado com o abastecimento global. Mas um foco único no menor preço da peça, sem considerar estratégias regionais mais amplas, leva a complexidades desnecessárias. E, como podemos ver pela catástrofe no nordeste do Japão, leva a riscos desnecessários. Quem sabia (eu não) que 40% dos microchips da indústria automotiva estavam sendo produzidos em uma região relativamente pequena, a maioria deles em uma única fábrica.

As reações simplistas e previsíveis de alguns críticos ao questionar o just-in-time (JIT) não são, é claro, os reais problemas aqui - a estratégia da cadeia de suprimentos e a configuração sim. Na verdade, de qualquer modo, os semicondutores não estavam sendo produzidos através do JIT - a produção em grandes lotes ainda exerce grande influência na indústria de componentes eletrônicos (de fato, a indústria eletrônica não precisavam ser "Lopezadas" - elas já estavam lá. O abastecimento de localizações globais distantes de alto custo, componentes modulares que rapidamente perdem valor a cada momento que permanecem no sistema de distribuição, era a norma - domínio que virou competência central de empresas como a Dell nos anos 90 - mesmo antes do Lopez). E ainda, como de costume, a catástrofe no Japão deu origem a apelos pelo fim do JIT. Estoques mínimos causaram perdas de produção imediatas, certamente a resposta, segundo os críticos, é mais produção e mais estoques. Aumentar os estoques pulmão ou estoques de produtos acabados para se proteger contra uma interrupção que acontece a cada 100 anos é um absurdo (Veja: "Nonsense about JIT" por Jim Womack).

Um carro tem milhares de peças distintas e não se torna um carro até que tenha todos e cada uma delas. Preto metálico é o nome que a Ford deu para uma cor dependente de um único pigmento de uma fábrica da Merck, perto da planta nuclear de Fukushima. Não é produzido em nenhum outro lugar. A Merck diz que a planta não foi danificada, mas, devido à radiação, os engenheiros não poderão sequer voltar à planta durante semanas e assim que o fizerem vai demorar de seis a oito semanas para colocar as coisas de volta no lugar e para começar a produzir o Zirallic, o nome que a Merck deu para o pigmento. Entretanto, a Ford ainda pode construir uma picape para você, mas não de cor preta.

O problema mais profundo é que a maioria das empresas não conhecem o tamanho de sua exposição ao risco. Os compradores conhecem seus fornecedores, mas geralmente não conhecem os fornecedores de seus fornecedores ou os fornecedores destes últimos fornecedores. A Toyota demonstrou notável capacidade para se recuperar de rupturas de fornecimento no passado (veja: "Aisin factory fire" em 1997). A Honda também: quando as altas tarifas dos EUA interromperam seu fornecimento de aço dez anos atrás, a Honda trouxe, por via aérea, chapas de aço carbono do Japão para os EUA.

Um novo modelo de Abastecimento e Logística - Regional e Racional

Da mesma forma, a solução não é apenas uma questão de sair do nordeste do Japão, outra reação automática de algumas empresas. Pelo contrário, a solução está em repensar totalmente cadeias de suprimento. Em geral, faz mais sentido produzir perto de onde você vende. E, em geral, faz mais sentido projetar perto de onde você produz. E, certamente, faz mais sentido procurar um local o mais próximo possível de onde você produz para seus clientes. Para a maioria das grandes empresas, isso significa "precisamos de estratégias de suprimento regionais".

Então, vamos usar a crise atual para sinalizar um fim aos 20 anos de loucura em estratégias de abastecimento. Ter uma única fonte é perigoso. Isso é óbvio. E 100 fontes competindo para o próximo contrato com base no preço da peça é também perigoso, de uma maneira diferente. Quando essa fonte única está a continentes de distância das instalações de produção, o perigo é ainda maior.

Um novo modelo de abastecimento é necessário. A sabedoria das estratégias de um "fornecedor-duplo" de muitos gerentes da cadeia de suprimento lean é clara - evite tanto situações de "única fonte" como de "inúmeras fontes". Quando Deming defendeu o que chamou de "fonte única", ele estava promovendo relações entre as montadoras e fornecedores baseado na parceria, não de negociação zero, e no custo da qualidade, não de preço da transação. A abordagem tradicional da Toyota foi exercer um abastecimento duplo de primeiro e segundo fornecedores (infelizmente nem sempre foi possível estender a outros frequentes terceiro e quarto nível de pequenos fornecedores - por isso, a Toyota está sofrendo com a crise de abastecimento global, já que 80% dos chips de seus veículos estavam sendo fornecidos por uma instalação no nordeste do Japão sem fácil reabastecimento possível). Com dupla fonte, o risco é evitado, por exemplo, quando uma fábrica fornecedora quebra e a competição é incentivada com dois fornecedores no jogo.

Qualquer pessoa em qualquer lugar que quiser fazer de seu país um local de fabricação competitivo precisa praticar a matemática lean. É o custo total - incluindo o custo potencial de rupturas das cadeias de suprimento de longa distância - e não o preço da peça mais os lentos cálculos de custos de frete feito pela maioria das empresas de fabricação de hoje. Os EUA, especificamente, já são um local de fabricação muito mais "competitivo" que a maioria dos gerentes seniores parecem pensar, baseados nas decisões contínuas de enviar a fabricação para locais em todas as partes do mundo. Para um exemplo de um modelo simples de custo total, a partir da Iniciativa Reshoring, clique aqui: www.reshorenow.org.

Mas tenha cuidado. Qualquer modelo de custo será baseado em suposições, e embora o risco possa ser incluído, nenhum modelo de risco poderia explicar a ruptura que teve início em 03 de março de 2011. Em vez de um modelo de custos que esperamos dar a resposta perfeita o tempo todo, é mais prático trabalhar a partir de alguns princípios simples da configuração da cadeia de suprimentos lean. Lead times mais curtos são melhores do que os longos. Maior proximidade entre fornecedores e clientes é melhor - o transporte regional é melhor do que o transporte intercontinental. Menos estoque com entregas mais frequentes é melhor do que grandes estoques que se movem com pouca frequência. Fonte única, especialmente localização única é geralmente ruim - é arriscado e não aproveita a tensão natural e saudável da concorrência. Manter centenas de fornecedores para a mesma peça também é ruim - isso gera complexidade, confusão e os custos da redundância.

Ninguém desafia o conceito de se adotar uma visão de custo total, por isso é mais do que a resistência à ideia básica que seja o problema. Em vez disso, as empresas são simplesmente incapazes de entender os verdadeiros custos totais, e muito menos de tomar decisões conformes. Enquanto os custos são discriminados e atribuídos através das linhas funcionais, a responsabilidade e mesmo o entendimento tornam-se obscuros. É aí que a matemática lean entra. Matt Lovejoy é CEO da Acme Alliance, uma empresa de usinagem e fundição perto de Chicago. A Acme tem operações que produzem os mesmos bens em Illinois, Brasil e China, assim a Acme sabe o custo real - não o preço, mas o custo - da produção em cada país. Os compradores geralmente procuram o Matt e a Acme em Chicago, com um pedido para produtos de origem na China, por exemplo, quando faz mais sentido - em todas as formas - para produzir mais perto da OEM, mais perto do cliente.

Matt descobriu que muitos compradores "Lopezados" que querem mudar o abastecimento de Illinois para a China não consideraram uma variedade de custos e consequências. O metal pode custar (surpresa) mais na China do que nos EUA (veja Shanghai Metal Index versus London Metal Exchange). A energia custa mais em algumas partes da China do que em partes dos EUA. Mesmo equipamentos de alta qualidade, podem ser mais caros na China do que nos EUA (devido a altos impostos de importação para máquinas europeias ou japonesas). E, já que a mão-de-obra compõe uma pequena parcela do custo de fazer a maioria dos produtos fundidos, esses itens sozinhos merecem um cuidadoso exame minucioso. E então o que acontece com o tempo e o custo do tempo dos gestores para visitar as localizações globais, junto aos desafios da comunicação com chamadas telefônicas noturnas com dificuldade para entender os que estão falando do outro lado do telefone? E aqui está um ponto-chave a considerar: Quais reduções no custo total poderiam ser feitas se o tempo, o esforço e a energia de abastecimento em todo o planeta fossem realmente aplicados no fornecedor local através do kaizen?

O ponto aqui, para repetir e dar ênfase, NÃO é que a terceirização na China ou no Brasil é uma má ideia. A emergência da China e do Brasil como fontes viáveis para a comunidade de produção global é um fenômeno positivo de importância histórica. Mas, cada decisão de abastecimento deve ser feita por seus próprios méritos.

Pare a loucura

O pensamento lean une as outras coisas, enfatizando a conexão de todas as partes, de modo organizacional e físico: os fornecedores que estão próximos às fábricas montadoras estão próximos aos clientes. Não será tarefa fácil desvendar a complexidade desnecessária causada por 20 anos de otimização de preços das peças. Podemos começar a fazer progressos nesta tarefa, voltando aos fundamentos de se iniciar o contrato com o cliente, definir o valor e trabalhar de trás para frente a partir daí. Trabalhando juntos, podemos criar cadeias de abastecimento nas quais o valor flui de matérias-primas para clientes com lead times cada vez mais curtos beneficie tanto as montadoras como os fornecedores.

Assim como JIT não é a prática a desafiar aqui, também não é a prática do fornecimento global. E o problema é muito maior do que ser incapaz de encomendar o seu veículo em preto metálico. "Você precisa de uma crise", nós gostamos de dizer, para provocar a sua transformação. Gestores da cadeia de suprimentos global deveriam estar felizes - eles têm uma crise de proporções épicas. A catástrofe no nordeste do Japão é trágica o suficiente em seu próprio direito e não precisava ser ampliada mais ainda por coisas de nosso controle: complicações; altos riscos; cadeias de suprimento com elevado custo total gerado pela loucura de um foco estreito no menor preço global da peça. Agora é a hora de repensar e reconfigurar as cadeias de suprimento para que elas sejam racionais, regionais, práticas, baixo custo total e baixo risco e altas na promoção da qualidade - em suma, cadeias de suprimento lean.

 

John Sook
Chairman e CEO
Lean Enterprise Institute, Inc.
[email protected]

Traduzido por Tamiris Manzano.

Publicado em 27/05/2011

Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal