CULTURA E LIDERANÇA

Uma questão fundamental


Enquanto eu continuo visitando seus gemba e recebendo e-mails (mais de 500, e continuando desde setembro, quando eu entrei), a mim são feitas muitas perguntas. E eu faço muitas outras em resposta. Eu respondo à maioria das perguntas com uma pergunta por duas razões: porque foi assim que me ensinaram e porque eu acho esta uma forma efetiva para facilitar a aprendizagem.

Uma das perguntas mais frequentes que me fizeram nos últimos meses diz respeito ao significado de nosso novo tema “Fronteiras e Fundamentos”. Muitos de vocês me pediram para detalhar seu significado ou ofereceram seus próprios pensamentos sobre isso.

Em relação às fronteiras, eu acredito que muitos de nós enxergamos a necessidade de seguirmos em frente, implementando determinadas práticas lean conhecidas em algumas áreas, tais como Saúde, Governo, Educação ou Ciência. Mas as fronteiras também significam o desenvolvimento de novas práticas lean, muitas vezes por meio da expansão do pensamento lean para setores de atividade que antes buscavam se distanciar dessa abordagem, tais como: Vendas, Marketing, Estratégia, P&D, RH e Finanças.

Mas e os “fundamentos”? Ainda há uma grande quantidade de trabalho para se fazer a esse respeito. A meu ver, o lado técnico de muitas transformações lean está ainda muito fraco. Há mais de vinte anos, muitas empresas têm tentado a produção lean. Alguns tentaram o lean como um “Programa do mês”, no qual eles enxergavam ganhos limitados ou até mesmo nenhum ganho, e então mudavam para algo novo, concluindo de suas experiências que o lean era simplesmente uma moda passageira.

Outros davam ao lean uma tentativa com mais fé. Mas muitos deles também seguiram em frente, nesse caso após um sucesso inicial, talvez porque pensavam “isso é tudo?”. Após uma tentativa relativamente breve, eles se declaravam especialistas em lean e procuravam a próxima coisa nova. Eu acredito que esse fenômeno é na verdade o problema mais difícil e predominante. É também o mais traiçoeiro e, uma vez estabelecido, mais difícil de ser superado. Eu prefiro lidar com um descrente que proclama “o lean não funciona” do que com alguém que se engana com “o lean foi bom, mas nós já mudamos para o xyz”.

Hoje em dia é muito comum se ouvir dizer, “os aspectos técnicos do lean são fáceis, seu lado social é difícil”. Pode ser verdade que o lado social seja mais difícil. E pode ser um fato que muitos aspectos do lado técnico lean sejam fundamentalmente “simples”. Mas simples não significa fácil. Eu tenho observado incontáveis organizações que tentaram ir além das ferramentas, mas, em vez disso, estavam na verdade passando por cima delas. Eles estavam subestimando as habilidades técnicas e ferramentas lean como se fossem uma espécie de “commodity”, quando na verdade as técnicas e ferramentas lean (lean como um sistema técnico-social) não são nada fáceis. Elas são simples, mas o são ilusoriamente: simples em sua superfície, mas complexo em seu interior.

Muitos tentam mudar seu foco excessivo (será “outro” tipo de desperdício?)  nas ferramentas, mas você não pode “ir para a frente”, a menos que você realmente tenha feito o trabalho de entender e usar as ferramentas para começar.

Por exemplo, quando foi a última vez que você viu um bom sistema kanban funcionando? Lembre-se de que um sistema kanban não é apenas uma questão do cliente conseguir o que quer quando quer. Um kanban é realmente um kanban (isto é,funcionando bem) quando ele serve para conectar o processo consumidor ao processo produtor (não apenas ao “supermercado”), assim o produtor está produzindo o que o cliente necessita.

Eu vejo muitas tentativas de reabastecimento do tipo “duas caixas”1 que parecem boas no final do fluxo de valor, mas quando você caminha fluxo acima de volta para os processos de produção, você vê como seu reabastecimento se torna complicado – dominado por um sistema de TI ou por uma pessoa ou, frequentemente, pelos dois. Dê uma nova olhada você mesmo – se você não observar seu sistema puxado tornando-se corrompido imediatamente fluxo acima, continue observando uma ou duas conexões na cadeia e eu aposto que você encontraré o que eu geralmente encontro.

Às vezes, nós gostamos de ser espertos e de nos “enganar”, passando por cima de sistemas simples de cartões e indo em frente com o kanban eletrônico. Eu entendo a lógica, mas como uma tendência isso me assusta. Se você usar seu tempo para olhar mais de perto, a maioria dos sistemas kanban eletrônicos são simplesmente sistemas empurrados com base na TI (MRP) re-rotulados. Esses sistemas não são kanban. São os sinais de feedback claros e pontuais que conectam o cliente ao produtor que fazem o kanban, kanban.

E, no final, a característica mais poderosa de um sistema kanban efetivo é que ele envolve as pessoas. Como todos os bons processos lean, o kanban leva a responsabilidade até onde o trabalho acontece, engajando operadores, supervisores e funcionários de suporte à operação e continuamente aprimorando o sistema no qual eles fazem seu trabalho, resolvem problemas e exercitam o domínio.

Eu sei que muitos de vocês têm sistemas kanban eficazes funcionando. E que vocês os têm porque passaram pelo aprendizado requerido para colocá-los no lugar. E que vocês provavelmente vêem o que eu vejo: muitos outros agem pelo impulso e assim que as coisas dão errado voltam para a prática anterior ou contratam um consultor que está vendendo algo “melhor que o kanban”. Eu só estou usando o kanban aqui como um exemplo – o mesmo poderia ser dito de qualquer prática lean fundamental, tal como poka-yoke na qualidade ou trabalho padronizado.

Não me interpretem mal. Por muito tempo tenho incentivado a mudança de ferramentas para atender aos interesses gerenciais e estratégicos. Tem havido uma séria falta de conhecimento de reflexão por trás das ferramentas, práticas e sistemas lean por muito tempo. Isso levou à má gestão, desalinhamento organizacional e ao fracasso de muitas transformações lean. Então, a discussão sobre a gestão, estratégia e cultura lean são, certamente, uma boa coisa.

Mas agora eu estou alarmado por uma falta generalizada de implementação e apreciação dos fundamentos lean. Às vezes parece que a habilidade a qual mostrou o maior aprimoramento é a habilidade dos executivos discutirem um bom jogo lean. Muitos gerentes aprenderam a debater os conceitos lean em alto nível, mas quando você visita seus gemba não há nenhum tipo de evidência da implementação dos princípios fundamentais.

Habilidades são construídas sobre outras habilidades. Você não pode correr enquanto não souber andar, não pode enterrar uma bola de basquete enquanto não conseguir pular. É difícil pular as práticas básicas, como muitas empresas agora demonstram esse desejo, se você não as aprendeu para poder começar.

Então, de volte a pergunta de por que os fundamentos são ainda hoje importantes: enquanto nós embarcamos para explorar novas fronteiras do pensamento e prática lean, sua organização – ou você – tem as habilidades essenciais para estabelecer as bases para o sucesso?

Traduzido por Tamiris M. Manzano

Nota da tradutora:

1 – Reabastecimento “duas caixas” ou “dois kanbans” é um método utilizado para controlar o estoque. Nesse método são utilizadas duas caixas para estocar um mesmo tipo de material. Assim, o operador utiliza a primeira caixa até que ela fique vazia, a partir daí, ele a separa para que esta seja reposta e utiliza a segunda, evitando desperdício de tempo, reduzindo o lead time.

Publicado em 28/01/2011

Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal