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Diga-me como usa métricas e lhe direi como gerencia

Flávio Battaglia
Diga-me como usa métricas e lhe direi como gerencia
Gerenciar pura e simplesmente com base em indicadores pode ser uma grande armadilha para tomada de decisões incoerentes com as reais necessidades de uma empresa. O equilíbrio entre fatos e dados é a chave para uma boa gestão

No universo das empresas, há uma certa “paixão” pelas métricas. Em maior ou menor grau, essa mentalidade pressupõe que a boa gestão precisa essencialmente “medir”, quantificar tudo aquilo que se entende como importante numa companhia, especialmente os resultados. Talvez essa paixão seja decorrente do enorme impacto que o conceito de “gestão por objetivos”, popularizada por Peter Drucker, teve e continua tendo nas companhias.

Por exemplo, no próximo Lean Summit 2023, maior evento presencial lean do mundo, dias 20 e 21 de junho, no World Trade Center (WTC), em São Paulo, representantes de 70 grandes empresas vão compartilhar seus cases e, provavelmente, as métricas e respectivos resultados que vêm conquistando na jornada lean.

É claro que isso faz sentido, especialmente para aqueles que buscam evidências para embasar ou comprovar uma melhoria. Certamente você já deve ter ouvido a máxima “se não consegue medir, também não consegue gerenciar”, imprecisamente atribuída a W. Edwards Deming (que, na verdade, disse algo como “é errado supor que se você não pode medir, você não pode gerenciar”).

Nesse contexto, é preciso ter cuidado e estar consciente de que determinadas maneiras de se lidar com as métricas podem ser, inclusive, bastante nocivas. E não se trata aqui apenas de medir as coisas certas da maneira correta. É mais do que isso. Mesmo que implementemos medições corretas, pensadas e estruturadas cuidadosamente, quando nos acostumamos em apenas e tão somente checar “os números”, corremos o risco de deixar ocultas dimensões relevantes que, por vezes, são tão ou mais centrais do que aquilo que conseguimos mensurar. Embora possam ser fundamentais, números sempre mostram recortes, ou seja, fragmentos do real contexto sobre eventuais desvios, mas nunca a integralidade dos fatos.

Esse fenômeno pode gerar diversas distorções e ineficiências e levar a decisões equivocadas. Pensar apenas e tão somente em métricas acaba, por exemplo, fortalecendo uma percepção limitada ou mesmo errônea sobre o que ocorre, de fato, em uma organização. Isso se torna um problema porque a percepção que desenvolvemos sobre a realidade é o primeiro estágio de um dos processos mais fundamentais da gestão: a tomada de decisões.

Conforme discutimos, por exemplo, no artigo “Tomada de decisão lean” (https://bit.ly/3uM3tZ9), para decidirmos de maneira eficiente, eficaz e efetiva, o primeiro passo é refinar nossa percepção, o que, em essência, significa ampliar a capacidades de enxergar, compreender e analisar a realidade ao nosso redor. Quando baseamos nossa percepção única e exclusivamente em métricas, por vezes mal pensadas, estruturadas e conectadas entre si, corremos o risco de tomar decisões limitadas, ineficazes ou mesmo contraproducentes.

Essa “cultura dos números” gera outros vícios, por vezes imperceptíveis. Por exemplo, escolher prioridades e problemas a serem endereçados não porque são os mais relevantes ou estratégicos, mas porque se tem maior facilidade em capturá-los sob a forma de indicadores.

Outra armadilha clássica é associar premiações e bonificações a determinados números sem se considerar o potencial de distorção que tais estímulos podem trazer para o processo decisório em diferentes níveis da organização. Alguém já viu uma decisão ser tomada exclusivamente em função do impacto que ela vai ter no bônus do diretor? Ou mesmo esforços duvidosos para “fazer números” e conseguir, com isso, reconhecimentos públicos, promoções ou algo parecido?

Assim, é preciso desenvolver a consciência crítica de que números são, sim, importantes. No entanto, mesmo quando manejados da forma correta, é preciso somar algo fundamental a eles: os fatos, aquilo que realmente acontece na realidade cotidiana do trabalho.

É por isso que dizemos que lean é um modelo baseado em “fatos e dados”. Ambos são importantes. Hoje, porém, há uma certa preferência pelos dados em detrimento dos fatos. Portanto, um dos desafios da gestão lean é buscar esse equilíbrio, conhecendo a realidade dos fatos para conseguir compreender os dados.

Qual é o “antídoto” que as premissas lean nos colocam para isso?

Em essência, estando no gemba, mas da forma certa, com atitudes adequadas, percepção afinada e direcionada tanto para os fatos quanto para os dados e, o mais importante, entendendo como os dois elementos estão se relacionando diante dos desafios que são colocados para nós. É no gemba que aferimos a real temperatura das coisas, percebendo, por exemplo, como as dificuldades do dia a dia estão (ou não) relacionadas às métricas que estamos consumindo durante as reuniões gerenciais.

Assim, inspirados pelo princípio lean de “liderar com respeito”, é preciso, sim, checar os números e analisar como foram selecionados, priorizados e alcançados; se realmente medem as coisas mais relevantes e da forma mais adequada. Contudo, talvez seja ainda mais necessário saber como perceber, compreender e analisar os fatos. Isso significa buscar a observação mais aprofundada possível sobre o que acontece nos processos, como o trabalho está organizado e como estamos proporcionando experiências aos clientes.

Em um mundo cada vez mais digital, precisamos encontrar novas maneiras de estar no gemba. Ir ao gemba presencialmente foi, é e sempre será fundamental. No entanto, novas tecnologias nos permitem fazer coisas extraordinárias a distância. Essa nova realidade veio para ficar e está exigindo de nós habilidades inéditas relacionadas a como planejar, executar e acompanhar o trabalho. Talvez a presença no gemba nunca tenha sido tão importante quanto é atualmente, seja presencial ou virtual.

Para tanto, é preciso desenvolver capacidades. Por exemplo, aperfeiçoar a habilidade de dialogar com as pessoas em diferentes níveis e funções. Inclui-se aí a prática da escuta ativa, o “saber ouvir”. Igualmente, buscar as melhores maneiras de fazer perguntas, sempre na direção do raciocínio crítico de nossos interlocutores. E ter a consciência de que, em boa parte das vezes, a maneira como se executa o trabalho, na prática, difere bastante daquilo que dizem os manuais de procedimentos.

Esse aperfeiçoamento da gestão se torna cada vez mais crítico, pois vivemos num mundo em que os dados são abundantes. “Big data” e “data lakes” estão mais disponíveis e acessíveis. Entretanto, se não tivermos gestores preparados, estaremos diante de um agravamento sensível dos desafios aqui brevemente discutidos. Nesse sentido, é preciso sempre se questionar como conectar a realidade dos fatos com uma massa crescente de dados. E refletir sobre como podemos nos “desapegar” um pouco dos números e passar a considerar com maior ênfase a capacidade humana de perceber a realidade e tomar decisões.

Seja de maneira presencial, digital ou híbrida, equilibrar e aprofundar a observação, o entendimento e a análise, tanto dos dados quanto dos fatos, é o que pode fazer a diferença para a gestão. Dizem que é possível saber muito sobre uma pessoa quando se percebe “com quem ela anda”. Em gestão, a maneira como uma empresa lida com fatos e dados também pode revelar muito sobre como ela é.



P.S.: Passo a alternar a autoria dos LeanMails com Flávio Picchi, presidente do Lean Institute Brasil.

Publicado em 03/03/2022

Autor

Flávio Battaglia
Presidente do Lean Institute Brasil

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