COMPRAS

Um setor de compras efetivamente lean

Flávio Augusto Picchi e Elmar Costa
Um setor de compras efetivamente lean
Entenda como a gestão lean pode transformar a visão e a ação tradicional da área de compras para torná-la estratégica, inovativa e otimizada

Compras é uma área fundamental em toda empresa, sendo responsável por abastecer a companhia com tudo o que ela precisa para operar, como matérias-primas, insumos, materiais e serviços.

Na maioria dos casos, passam pelo setor de compras mais da metade do custo final dos produtos e serviços. E boa parte do desempenho em qualidade, prazos e mesmo inovação depende da sua relação com a cadeia de suprimentos.

Hoje isso fica ainda mais evidente. Vivemos um momento no qual diversos mercados estão se recuperando dos impactos da pandemia de maneira bastante incerta e até mesmo desorganizada, gerando problemas em diversas cadeias de suprimentos, o que coloca a área de compras no olho do furacão.

Apesar dessa importância, vemos em muitas organizações pouca prioridade em evoluir os sistemas de gestão dessa área. Não é raro casos em que ainda predominam processos burocráticos, demorados e a velha visão de focar somente no menor preço unitário de forma singular de aquisição, sem, contudo, considerar o fluxo da área de compras como um todo, para citar alguns exemplos dessa defasagem.

Se analisarmos o histórico da transformação lean na maioria das empresas, podemos afirmar que compras é uma das últimas áreas que adotam a mentalidade enxuta, mesmo após anos da aplicação da filosofia lean nas companhias.

Isso costuma gerar impactos extremamente negativos, fazendo regredir avanços obtidos em outros setores.

Por exemplo, um sistema de produção que passou a operar em fluxo contínuo e puxado pode sofrer com instabilidades decorrentes de fornecedores com baixo desempenho em qualidade e entrega. O setor de desenvolvimento de produtos pode não obter avanços de tecnologia e inovação devido a relações adversas com a cadeia de suprimentos.

Em outras palavras, já se sabe hoje que é possível e necessário aplicar os conceitos e práticas do sistema lean também em compras, integrando essa importante área na jornada lean o quanto antes. Com isso, tornar esse setor estratégico, inovativo e otimizado, fazendo com que se crie uma inteligência de compras que agregue cada vez mais valor à organização.

 

O setor de compras estratégico

Na gestão tradicional há ainda uma visão “comoditizada” de compras, usando formas de relacionamento e processos muito semelhantes para diversas categorias de insumos. Essa prática muitas vezes se resume às tradicionais operações cotidianas de buscar o menor preço (por exemplo, entre três concorrentes) e fechar o negócio.

Um setor de compras estratégico deve ir muito além disso. Ele precisa efetuar análises mais amplas, sobre como cada fornecedor pode ajudar a empresa a ser mais produtiva e relevante aos clientes.

Isso passa pelo desdobramento das metas estratégicas da empresa, de crescimento e novos negócios, em objetivos de competências a serem desenvolvidas através de recursos internos e externos. Para tanto, é necessário definir os fornecedores-chaves com os quais a companhia precisa desenvolver laços mais estreitos e qual formato de relacionamento será estabelecido para diferentes categorias de compras, como matérias-primas, consumíveis, energéticos, transportes, MRO (Manutenção, Reparo e Operações), despesas gerais etc.

Numa organização lean, prevalece o conceito de “empresa estendida”. Ou seja, os fornecedores-chaves são tratados como continuidade dos processos internos, construindo formas conjuntas de eliminar desperdícios e agregar mais valor aos clientes finais. Isso é totalmente diferente da maneira como muitas companhias veem seus fornecedores, como se fossem adversários, e não parceiros.

Para categorias de fornecedores selecionados, isso pode ser obtido através de diversas formas de cooperação, apoiadas por relações de longo prazo, e não compras pontuais, a cada necessidade. Certamente, as compras pontuais sempre serão necessárias, visto a magnitude do nosso país, com proporções continentais. Todavia, essas devem, sempre que possível, ser minimizadas ou eliminadas via contratos e acordos comerciais.

Uma forma de fazer isso é apoiar os fornecedores na adoção do sistema lean, trabalhando juntos na análise dos processos industriais ou de serviços, bem como nos administrativos. Com isso, haverá um aumento de produtividade e de qualidade com impactos positivos para comprador e fornecedor.

Isso pode ser feito, por exemplo, apoiando fornecedores no redesenho de seus fluxos de valor e adotando princípios lean, como just-in-time, células de produção, fluxo contínuo, qualidade na fonte etc.

Os ganhos devem ser divididos entre comprador e fornecedor. Os fundamentos dessa relação devem ser um “ganha-ganha” entre os dois lados, em contratos de médio e longo prazos, baseados na troca, no compartilhamento, na transparência e na credibilidade, e nunca na prática ainda em voga de pressionar ou mesmo sufocar fornecedores. É importante dizer que numa parceria em que apenas um lado ganha, ninguém ganha.

 

O setor de compras inovativo

O setor de compras pode e deve atuar também para afinar a relação com a base de fornecedores visando ao desenvolvimento de novos produtos e serviços. Afinal, muito do know-how está no fornecedor, e não no comprador. Compradores por vezes não detêm conhecimentos ou tecnologias específicas e necessárias à inovação, que podem ser encontradas na base de fornecedores.

Essa postura faz parte do que é conhecido como “inovação de portas abertas”. Um produto acabado composto de diversos componentes pode ser idealizado e fabricado com base no desenvolvimento e na inovação de centenas de fornecedores. Da mesma forma, processos de gestão e de relacionamento conscientes podem ser totalmente reformulados, agregando novas soluções, através de parceiros digitais e startups.

Assim, cabe à área de compras ser um agregador de inovação ao selecionar fornecedores com capacidade para isso e estabelecer parcerias sólidas com essa base, no sentido de viabilizar esse processo de desenvolvimento conjunto, fator decisivo para a competição cada vez mais acelerada que existe no mercado.

 

O setor de compras otimizado

É bastante comum vermos empresas nas quais tanto áreas fins, que demandam insumos, como a área de compras, que as atendem, sentem-se frustradas com o desempenho dos processos estabelecidos.

Rotinas que se justificariam para compras de mais complexidade ou valor são muitas vezes exigidas para itens mais simples, burocratizando desnecessariamente o processo. Os prazos são demasiadamente longos, às vezes de meses, quando o cenário competitivo exigiria maior agilidade, de dias. Etapas são por vezes puladas, em nome de urgências, colocando em risco análises de custos, prazos e até de compliance. Cadastros poluídos com descrições genéricas e repetidas geram erros e perdas de oportunidades.

Essas deficiências nos processos acabam gerando um clima de acusações mútuas, com áreas demandantes reclamando que o setor de compras exige prazos impossíveis, enquanto a área de compras aponta que as outras áreas não fazem o devido planejamento e não seguem as regras estabelecidas.

É claro que esse cenário exemplificado não é tão caótico em todas as empresas, mas temos certeza de que grande parte já vivenciou algumas dessas situações.

As ferramentas de lean office têm tido grande sucesso ao serem aplicadas na análise e melhoria dos processos de compras. São inúmeros os casos nos quais o fluxo completo, desde o pedido da área demandante até o pagamento do fornecedor, foi completamente mudado, com ganhos enormes, como redução de prazos, eliminação de erros, aumentos de produtividade, minimização de custos totais de aquisição etc.

Isso pode ser ainda mais potencializado se forem aproveitadas as oportunidades trazidas pela transformação lean digital, como a automatização de rotinas repetitivas e recursos de inteligência artificial.

 

Por onde começar

Claro que o setor de compras vem se tornando melhor em muitas organizações. No entanto, ainda há carências nessa área porque, historicamente e por diversos motivos, em diversas empresas não foi dada a devida atenção à necessidade de promover mudanças nessa área.

O primeiro passo para uma virada nesse setor é o reconhecimento da sua importância estratégica como agregadora de valor, e não somente para a redução de custos. Isso sem dúvida é uma mudança de mentalidade que só terá sucesso se for efetivamente puxada pela liderança da empresa, e não apenas pela área de compras.

Isso significa reposicionar cada vez mais esse setor como um centro para a excelência competitiva e um dos elementos imprescindíveis de uma efetiva transformação lean da companhia como um todo.

O fundamental nessa jornada é a criação de parcerias duradouras e relações de confiança ao longo da cadeia de fornecedores que tragam cada vez mais valor para os clientes finais, aumentando a competitividade e a prosperidade de todos os envolvidos.

Trata-se de uma mudança que não é trivial, mas é possível e que não pode ser postergada.

Publicado em 14/07/2021

Autores

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil
Elmar Costa
Senior Lean Coach no Lean Institute Brasil

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