LOGÍSTICA E CADEIA DE SUPRIMENTOS

As cinco forças da logística lean no X2C

Alvair Silveira Torres Júnior
As cinco forças da logística lean no X2C
Entenda como a logística lean pode contribuir para o cenário atual de X2C a partir de cinco forças motoras de desenho dos fluxos: os 5 As.

Em meados da década de 90, Chihiro Nakao, um ex-Toyota que havia se tornado reconhecido consultor internacional do Sistema Toyota de Produção depois de trabalhar com Taiichi Ohno por décadas no Japão, visitava alguns dos seus clientes no Brasil. Sempre que a ocasião convinha, pronunciava uma de suas expressões mais marcantes e provocadoras: “Precisamos avançar constantemente no Sistema de Produção e Logística para produzir e entregar qualquer coisa, em qualquer demanda, a qualquer tempo”. Era essa visão, ainda segundo Nakao, que expressava os ensinamentos do mestre Ohno e se impunha a quem se dedicasse a construir um sistema verdadeiramente lean. De certa forma, a frase antecipava o movimento contemporâneo por estratégias voltadas a serviços de entrega e atendimento ao consumidor, com ampla flexibilidade em seus requisitos, o que hoje o mercado começa a denominar de X2C – anything-to-consumer.

Ainda que a frase possa continuar soando um tanto utópica em alguns setores da cadeia, sua verdadeira força e utilidade se encontra naquilo que ela suscita de novos pensamentos para criação e inovação, a partir de uma assertiva que inspira desenhos de fluxos de trabalho enxutos e flexíveis, ágeis e integrados, em prontidão para entregar valor ao cliente, independente das mudanças e incertezas nas cadeias de suprimento.

Por muitos anos, a logística das mercadorias movimentando fluxos comerciais através do mundo se moldou nas práticas tradicionais do B2B – business-to-business. Mesmo quando as vendas B2C (business-to-consumer)  tomaram corpo com a prática do e-commerce, e o mercado se tornou mais competitivo em torno de preços de frete, prazos e confiabilidade, o B2C inicialmente tomou emprestado do B2B as práticas tradicionais de desenhar e operar os fluxos das cadeias de suprimentos. Agora, as demandas dos consumidores em diferentes categorias, nas diversas formas, exigem uma mudança em tais práticas.

Atualmente, a dinâmica B2C está em um ponto de mutação. As demandas por distintas opções com prazos curtos e fretes grátis por parte do consumidor exigem que todo o sistema logístico seja redesenhado procurando favorecer o último trecho – last-mile –, o momento decisivo de entrega ao cliente final. Os consumidores querem entregas mais rápidas e permanecem na expectativa de comprar com o menor custo de frete.

O conceito logístico se aproxima agora daquela frase visionária de Nakao, nos anos 90, a respeito de como o lean deveria auxiliar no redesenho dos processos e fluxos na cadeia de suprimentos. O cliente deseja mais do que um serviço logístico com a opção única de entregar um pacote na sua casa ou escritório. O mercado já passa a reconhecer que estamos evoluindo do B2C para o X2C – anything-to-consumer, com a adoção de uma nova logística voltada para a variedade de serviços de entrega ao consumidor. Por outro lado, o B2B também passa a demandar a incorporação dessas novas necessidades e práticas de resposta mais lean e ágil, colhendo frutos em suas operações através do redesenho dos processos.

Este artigo procura explorar e ampliar aquela visão pioneira do X2C de Taiichi Ohno na construção de um Sistema Logístico Lean, desdobrando-a em cinco forças motoras de desenho dos fluxos, aqui denominados de cinco As. Tais forças são inerentes ao paradigma enxuto e ágil do lean, moldando a flexibilidade e agilidade em lidar com pequenos volumes em fluxo contínuo na entrega de valor ao cliente:

1) Anywhere – Qualquer lugar

2) Anybody – Qualquer pessoa

3) Anything – Qualquer coisa

4) Anytime – Qualquer tempo

5) Anyway – Qualquer forma

 

 

1) Anywhere

Essa primeira força significa dotar a cadeia de suprimentos de uma capacidade logística de entregar produtos (ou prestar serviços) em uma rede de alta capilaridade no território alvo do modelo de negócio. Sua construção se dá pela ampliação da malha de transporte com natureza capilar, combinando tanto parceiros locais autônomos quanto modais diversos ao lado de centros de distribuição menores, mais enxutos, localizados em pontos estratégicos, mas com reduzido dispêndio de recursos, graças à adoção da gestão do princípio lean de redução ou eliminação de desperdícios na operação. Um exemplo é a construção de hubs regionais que permitam a integração de malhas locais com as linhas de transporte nacionais por meio de conexões ágeis de carga e descarga, migrando para uma operação aderente ao crossdocking. Recentemente, a Amazon Brasil anunciou ao mercado o objetivo de abrir novos  CDs, totalizando oito centros, de forma a atender mais de 500 municípios por meio de unidades desenhadas para operar com máxima eficiência, do tamanho certo, com tecnologia convencional, mas com trabalho operacional padronizado, apropriado à demanda, de acordo com o princípio enxuto.

Outra estratégia do Anywhere é o desenho da capilaridade por meio das chamadas dark-stores. São lojas a que o público não tem acesso, mas que funcionam como minicentros de distribuição em áreas urbanas. Representam o conceito de logística lean de unidades de distribuição enxutas, de baixo investimento. Tais unidades são aptas para estocar e manipular a variedade de produtos destinados à região, facilitando atingir os destinos pela malha de transporte graças à viabilidade de se localizar em pontos centrais estratégicos devido ao seu tamanho enxuto, que permite, dentre outras facilidades de operação, o gasto competitivo em aluguel. Combinam localização, variedade e baixo custo das instalações. Por exemplo, uma rede de farmácia gaúcha recentemente divulgou que essa estratégia de lojas como mini CDs tem permitido entregar pedidos da modalidade entrega rápida em até duas horas e, da modalidade programados, entre quatro e seis horas no território dos bairros atendidos pela unidade.

Uma dark-store cumpre integralmente o princípio enxuto quando se localiza próximo ao cliente, facilitando a operação do last-mile, e exigindo investimento muito menor. No papel de mini CD, a unidade não precisa de estacionamento para clientes e não gasta com apuros estéticos. Alcança, assim, viabilidade para uma maior capilaridade para cumprir a força do Anywhere da logística lean.

 

2) Anybody

Essa segunda força trata de incluir na origem e destino do processo logístico qualquer pessoa, independente de nível socioeconômico, gênero, raça ou qualquer outra categorização que se venha a considerar sobre o consumidor. Segundo o princípio lean de criar valor para o cliente, independente de quem ele seja como pessoa, toda operação está voltada a entregar esse valor ao cliente. Tal força significa não só entregar no lugar em que essa pessoa está, como vimos no Anywhere, mas de permitir acesso às informações do produto, além de apoiá-lo na escolha das modalidades de produto e entrega. Recentemente, uma empresa de vinhos ampliou o acesso às informações realizando lives de suas mercadorias na qual os consumidores podiam tirar dúvidas e fazer a compra certa. Tais procedimentos, com o apoio do mundo digital, evitam o retrabalho no retorno de mercadorias compradas erradamente. Esse é um exemplo do fato da logística buscar sua integração às etapas da jornada do cliente. Alcançamos essa integração na medida em que mapeamos os fluxos de valor através do VSM (value stream mapping), desde a realização do pedido até a entrega, retratando toda a experiência do consumidor e avaliando os desperdícios e o que é valor do ponto de vista dele.

Modos diferentes de incluir as diferentes personas de cliente são avaliados na Logística do Estado Futuro. Criar valor com a disponibilização de modalidades diferentes de entrega para cada público, buscando a inclusão. Um desses exemplos mais marcantes e inclusivos do Anybody na logística lean é a retirada rápida em lojas e locais escolhidos livremente pelo consumidor. O Magazine Luiza e a Leroy Merlin, por exemplo, são empresas que têm adotado práticas lean que facilitam o acesso e a retirada dos produtos por qualquer pessoa em suas lojas ou depósitos.

Por outro lado, temos também o lado do início da jornada do cliente, facilitando que as pessoas tenham acessibilidade aos canais para efetuar suas escolhas e compras de forma amigável. Não se trata de ter apenas o canal de vendas aberto, mas de integrá-lo com a experiência de escolher a melhor forma de receber esse produto, suportando-a no decurso do processo de compra. Nesse sentido, a inclusão significa ter interfaces amigáveis, esclarecedoras das modalidades de entrega, de fácil acesso e compreensão no meio de interface usado pelo cliente. Uma experiência do consumidor no que diz respeito ao serviço logístico deve seguir além do momento da escolha do modo de entrega, incluindo a visibilidade dos passos seguintes e como o cliente irá acompanhar o processo, a rastreabilidade. Por exemplo, desenhar a venda para versões de celular simples, combinadas com a opção de receber notificações por meio de SMS para acompanhamento da evolução da entrega, são aspectos inclusivos no serviço logístico e que se encaixam no objetivo lean de entregar valor a qualquer consumidor. É a força do Anybody.

 

3) Anything

O consumidor tem acesso aos marketplaces em que ele pode combinar, por exemplo, a compra de um móvel, alimentos e produtos de higiene. Formam-se na logística cargas fracionadas ampliadas em seu mix, impondo a necessidade de entregar encomendas compostas por diversos tipos de produtos, formatos e quantidades. Desde a separação do pedido até a entrega final, a logística precisa dar conta de diferenças volumétricas em mercadorias distintas. Essa variável é reconhecida e objetivada no desenvolvimento da terceira força da logística lean: o Anything.

A logística lean objetiva dotar a empresa de capacidade de adaptação aos novos perfis de entrega. O mercado exige diversos perfis de entregas de produtos fracionados. Para viabilizar a realização dessa demanda segmentada e fragmentada, o lean procura pensar em equipes com trabalho padronizado, capacitadas e motivadas para a detecção dos desperdícios de tempo e recurso na operação. Em seguida, aplica os kaizens e a melhoria contínua na eliminação dos desperdícios e perdas, de tal forma a reduzir os custos e viabilizar as cargas fracionadas. Um exemplo é o desenho da armazenagem compacta em corredores com preparação rápida, planejadas de acordo com ondas de demanda diárias, e a distribuição com malhas de transporte em veículos franqueados, puxados com abordagem do just-in-time em que o recurso de entrega passa a ser ativado conforme a demanda.

O crescimento do e-commerce tem acelerado a necessidade de adotar essa busca do Anything ao lado do desafio do last-mile da entrega. Aqui também o pensamento lean de pequenos lotes em fluxo contínuo se concretiza em alguns casos com a implantação de processos desenhados para preparações rápidas de cargas e seu carregamento por meio de trabalhos e meios padronizados. Em outros casos, lançamos mão também do estudo de movimentação e planos de carga dos veículos, orientando o carregamento e a sequência de entregas.

Por outro lado, a estratégia do marketplace, em que pese o aumento da complexidade e variedade dos produtos pressionando os estoques, pode ainda se beneficiar no controle dos inventários em níveis mais baixos com o princípio lean de heijunka, isto é, nivelando os estoques com a rede de parceiros.  Através da visibilidade de plataformas digitais, os estoques são alocados em diversas unidades, incluindo parceiros de menor porte. Através disso, em 2020 estima-se que um grande varejista no mercado brasileiro tenha operado com 60% de estoque próprio, sendo que os outros 40% foram de estoques em parceiros. Essa ampla variedade, portanto, não implica necessariamente em grande aumento dos estoques caso o princípio lean de nivelamento seja aplicado através do compartilhamento e distribuição dos estoques em quantidades menores por toda a territorialidade da cadeia, complementado pela agilidade na movimentação e realocação puxada pela demanda. É a força do Anything viabilizada pela logística lean.

 

4) Anytime

Anytime significa aplicar o conceito lean de entender quais as demandas nos prazos de entrega dos clientes e sincronizar as operações para atender tais prazos com o menor custo. Portanto, as modalidades de prazos de entrega podem variar desde os casos em que o cliente deseja entrega expressa, no mesmo dia, até aqueles que preferem programar ou receber em outro intervalo de tempo (e ainda outros, que preferem estabelecer seu prazo e se deslocar para determinado local, loja ou depósito para retirar o pedido).

Nesse aspecto, o Anytime expressa a força do conceito lean de puxada, dos sistemas puxados construídos com os tradicionais cartões kanban até sua emulação digital, por meio de sistemas de informação e processamento de pedidos, os quais classificam e separam as demandas em ondas programadas para os dias de expedição.

A rastreabilidade e o feedback ao consumidor por meio de uma gestão visual nos dispositivos de conectividade, usando a rede Web, também faz parte da força do Anytime, em que o consumidor pode acompanhar a evolução do que foi combinado a qualquer tempo. O cliente acompanha quando foi realizada a emissão da nota fiscal, a separação do pedido, a expedição, o transporte e pode até receber uma mensagem em seu dispositivo do tipo “Oi!! Estou chegando com seu pedido!”, escolhendo encontrar o entregador pessoalmente, que, de forma padronizada e cordial, lhe entregará o pedido ao concluir essa etapa crucial da jornada do cliente.

Um cliente também pode querer dividir seus produtos e receber em dois prazos diferentes. Pode escolher receber em intervalos definidos, no caso de modelos de negócios recorrentes, no qual mercadorias como alimentos, vestuário ou serviços são entregues regularmente em períodos escolhidos e contratados pelo consumidor. Por exemplo, o uso de medicamentos de uso contínuo pode se beneficiar de uma abordagem lean e digital quando o consumidor, suportado em sua compra regular por uma plataforma digital, recebe o aviso em seu dispositivo que o medicamento está prestes a acabar, funcionando como um kanban para o cliente, ofertando, na sequência, uma nova compra e entrega ao alcance de um clique, a qualquer tempo. Modelos ágeis se beneficiam da força do Anytime no desenho de fluxos enxutos para operar com cargas fracionadas, malhas ágeis e equipamentos flexíveis pensados para rápida configuração.

 

5) Anyway

Ao manifestar sua intenção de compra, os clientes desejam fazê-la de formas distintas conforme seu perfil de comportamento. Independente de gênero ou classe social, como vimos na força do Anybody, os consumidores se comportam de formas distintas ao sabor do tempo. Alguns preferem comprar na loja física, outros, na loja digital, via notebook, e outros ainda, através do smartphone. Depois de comprar, alguns querem receber inicialmente em casa, mas, depois, mudam de ideia e preferem receber no local de trabalho ou na casa de um parente ou amigo. Ao escolher a casa do parente, podem depois ter que desistir desse destino porque o parente esqueceu de informar que não estaria em casa; então, concluindo a jornada, muda seu pedido para retirar em uma loja. Em síntese, diversas formas de entrega podem ser assumidas por clientes no decorrer do tempo, constituindo a força do Anyway a ser considerada no desenho da conexão dos fluxos físico e digitais. Há vários modos de entrega e alterações ao longo do processo de pós-venda, que, combinados com diferentes embalagens ou até modos de pagamento, devem ser considerados no desenho dos fluxos, de forma que não se tornem um empecilho, mas uma força da operação logística, a força do Anyway embutido nos fluxos.  

As diferentes formas de pagamento, por exemplo, variam entre cartões, boleto, carteira digital, Pix. As entregas partem da normal, expressa, programada até atingir especificidades, como ser uma entrega para presente. Pode-se ainda desejar receber do entregador ou permitir que a encomenda fique na portaria, ter a possibilidade de devolver ao entregador uma embalagem de outra entrega, tudo de acordo com o modelo de negócio da empresa, para o qual a logística lean trabalha para criar e entregar valor ao cliente.

Portanto, toda essa diversidade de canais e modalidades, na perspectiva lean, não são entraves, mas oportunidades que são avaliadas e incorporadas de maneira amigável ao serem identificadas como valor para o cliente.

Aparentemente, isso poderia contrariar o princípio lean da padronização ou do trabalho padronizado. Na verdade, o lean não prescreve haver um único trabalho padronizado em dada operação, mas de identificar quais famílias de modos de entrega que precisamos projetar, cada qual com seu trabalho padronizado. Pensamos, sim, em uma base operacional padronizada para as modalidades. Uma plataforma que sustente os trabalhos padronizados das famílias de processo ou modalidades, com fluxos devidamente previstos e que podem agir de forma combinada. O princípio lean é projetar conexões digitais e físicas entre tais fluxos, conexões rápidas e claras, sem obstáculos técnicos ou burocráticos.

Por exemplo, a estratégia Omnichannel traduz a força do Anyway nos canais e processamento de informações. Além disso, o que se objetiva na abordagem da logística lean é levar a força do Anyway para o interior das operações, através da rápida reconfiguração e conexão dos trabalhos padronizados dentro de uma gama de modos de atender o pedido pelos diversos canais. É o que já se praticava em linhas de produção de manufatura, em que novas linhas se reconfiguram em 24 horas para atender novos modelos ou demandas de produtos físicos, a chamada estratégia do moonshine. Na logística, com abordagem lean, reconfiguramos rapidamente equipes de separação, expedição e entrega em diferentes trabalhos padronizados para dar conta das diferentes demandas distintas.

Essas cinco forças, os cinco As estratégicos, têm sido desenvolvidas e pensadas a partir das possibilidades que as práticas da logística lean nos permitem transformar os tradicionais B2B e B2C no novo e ampliado X2C. É a maneira lean de dar competitividade aos negócios em tempos de incerteza, dotando as cadeias de suprimento de alta resiliência frente às mudanças. Aliado ao digital, permite pensar os modelos de negócio, preparando-os para estados futuros mais competitivos através da criação e entrega de valor ao cliente em toda extensão da cadeia de suprimentos, segundo determinados princípios e conceitos aqui discutidos na realização das cinco forças da logística lean.

Publicado em 07/07/2021

Autor

Alvair Silveira Torres Júnior
Head para Supply Chain e Logística no Lean Institute Brasil
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal