ESTRATÉGIA E GESTÃO

No trabalho, discordar é saudável: o desafio é “como” fazer isso

Flávio Augusto Picchi
No trabalho, discordar é saudável: o desafio é “como” fazer isso
A riqueza das companhias e das relações interpessoais está justamente na diversidade, que é o que leva à consideração de diferentes pontos de vista e experiências, gerando inovação

Uma das bases da gestão lean é estimular todas as pessoas a buscarem cotidianamente problemas e soluções em seus respectivos trabalhos

 

Há uma certa cultura equivocada nas empresas, gerada obviamente pelo medo, que diz que é sempre melhor não discordar do outro, principalmente do chefe. Assim, evita-se conflitos, brigas e retaliações.

Em outras palavras, é comum haver, nas companhias, pessoas que preferem se calar, mesmo quando percebem algo errado ou sem sentido. Com isso, gera-se uma falsa “diplomacia” organizacional, um ambiente artificial de pseudoconsenso, em que tudo parece estar bem.

Poucas coisas são mais enganosas e antiprodutivas do que isso, tanto para as organizações quanto para as pessoas. Quando se implementa o sistema lean numa empresa, um dos objetivos essenciais é mudar esse tipo de mentalidade e de comportamento.

A riqueza das companhias e das relações interpessoais está justamente na diversidade, que é o que leva à consideração de diferentes pontos de vista e experiências, gerando inovação.

A premissa é simples. Uma das bases da gestão lean é estimular todas as pessoas a buscarem cotidianamente problemas e soluções em seus respectivos trabalhos, para, assim, eliminar desperdícios, fazer melhorias contínuas e aumentar a agregação de valor.

Pois é exatamente na tentativa de resolver problemas que surgem os maiores conflitos, amplificados muitas vezes pela urgência em resolvê-los. Se a discussão caminhar para um lado pessoal, com certeza teremos muitos efeitos negativos, não só no relacionamento da equipe, mas na adoção de medidas que, muitas vezes, podem ser superficiais e não resolverem os problemas.

Se a discordância é necessária e mesmo inevitável, o desafio é “como” discordar. É comum pessoas partirem para a agressão, tentando impor “suas” soluções, achando que são melhores que as demais, sem escutarem umas às outras e terem sequer concordado sobre qual é o problema que precisam resolver. É aí que está a origem dos conflitos improdutivos.

Podemos entender como geralmente ocorre a “discordância negativa”, aquela que só leva a desgastes, e o que pode ser feito para termos uma “discordância criativa”, que some contribuições e leve a ações mais efetivas.

O sistema lean nos ensina maneiras científicas para a solução de problemas, que nos ajudam a colocar essa mudança em prática.

Vamos pegar o primeiro ponto da análise de problemas: temos concordância sobre qual problema devemos resolver? Por incrível que pareça, muitas vezes as pessoas entram numa discussão desgastante sobre o que fazer (“minha” solução versus a “sua”) quando na verdade deveriam antes alinhar o entendimento: se temos um problema e caracterizar bem qual é sua relevância.

Nesse modelo de gestão, discordar significa, por exemplo, comprovar ao outro um "desvio" que ele não percebeu num padrão de processo que se pretende atingir.

Uma das bases do sistema lean é definir padrões de processos para se chegar a determinados propósitos relevantes. Isso significa trabalhar para executar esses padrões, identificar desvios que os impeçam de atingir os propósitos planejados e encontrar oportunidades de melhorias para melhorá-los continuamente.

Nesse contexto, discordar de alguém, mas comprovando desvios e oportunidades concretas de melhorias, é a forma mais racional que evitará respostas emocionais. Da mesma forma, caberá ao outro, se for o caso, perceber e reconhecer que há realmente desvios ou então comprovar que eles não existem.

Ou seja, é preciso basear as discordâncias em "fatos e dados", e não em achismos ou opiniões. Os primeiros são científicos; os segundos suscitam subjetividades, vaidades e discussões ineficazes.

O segundo ponto também trabalhado pela gestão lean para tornar mais racional a discordância é tentar eliminar a "culpa". Ou seja, na medida do possível, evitar o medo das pessoas de que elas possam ser punidas em função dos problemas que estão sendo discutidos. Caso contrário, elas ficarão na defensiva, e poderá, sim, haver conflitos antiprodutivos.

Como fazer isso? Discordando não da “pessoa”, mas do “processo”. É ele, o processo, que geralmente apresenta problemas que precisam ser identificados e solucionados. Ou seja, é a famosa máxima, difícil de praticar: procurar as causas, e não os culpados. Processos não sentem medo; pessoas, sim.

Uma vez superadas essas etapas, a formulação de propostas pode ser muito mais racional, criativa e colaborativa. Em vez das pessoas se apaixonarem por soluções prontas e personalistas, tentarão construí-las coletivamente, a partir de diferentes pontos de vista e alicerçando as análises e decisões em fatos e dados, e não em meras opiniões ou percepções isoladas.

Passar da “discordância negativa”, que gera “aversão à discordância”, para a “discordância criativa”, que pode estimular na organização esse processo saudável de discordar do outro construtivamente, é uma mudança cultural enorme, pois mexe com as atitudes e comportamentos de todos e com o estilo de liderança.

A sistematização de práticas de solução de problemas, com método, como propagado na filosofia lean, é sem dúvida um dos pilares para que essa mudança ocorra. Isso organiza a colaboração de todos na empresa, aproveitando a riqueza de suas diferentes visões, levando a um desempenho cada vez melhor.

Publicado em 14/04/2021

Autor

Flávio Augusto Picchi
Senior Advisor do Lean Institute Brasil