SAÚDE

Tornando-se um modelo

Javier Sala Mercado
Tornando-se um modelo
Este hospital da Argentina aproveitou o poder do pensamento lean para melhorar o atendimento ao paciente mesmo na pandemia e receber reconhecimento internacional.

Em 2012, quando voltei a Córdoba – depois de quase 11 anos nos Estados Unidos – para trabalhar no Instituto Modelo de Cardiología Privado SRL (IMC), disse à diretoria que o hospital não precisava de outro cardiologista. Em vez disso, me ofereci para alavancar o conhecimento lean que adquiri nos Estados Unidos por meio de pesquisas e conexões para ajudar a organização a identificar e resolver seus problemas mais críticos e melhorar os resultados dos pacientes.

Com total apoio e participação da diretoria, um dos primeiros passos foi conversar com os líderes das diferentes áreas. Queríamos entender como eles estavam gerenciando suas áreas e quais indicadores estavam usando. O que descobrimos foi que muitos dos líderes de departamento não tinham uma ideia clara de seu estado atual. Quase não havia indicadores sendo rastreados e nenhuma gestão visual. Havia uma desconexão entre esses líderes e suas equipes e entre o departamento e o Norte Verdadeiro da organização. Então, para dar visibilidade do estado atual aos diversos processos do hospital, passamos a medir.

O IMC é um hospital que conta com 44 anos de história. Em 2019, registramos 8.703 internações e 238.000 atendimentos ambulatoriais (dos quais 57.284 foram atendimentos de emergência). Temos apenas 72 leitos, mas, com mais de 250 médicos, atendemos um total de 53 especialidades. A cardiologia é a principal. Eu sabia que transformar uma organização pequena, mas complexa, como a nossa, exigiria paciência, especialmente considerando que nem todos os nossos médicos estão sempre no local (alguns ficam aqui apenas duas horas por semana).

Trazer todos a bordo seria um desafio, e é por isso que começamos nossos esforços de melhoria nas áreas e processos que pareciam responder mais positivamente aos primeiros tímidos passos lean que demos. Três em particular – nosso programa de reabilitação cardíaca, nosso laboratório e nossa farmácia – se tornaram nossas células modelo. Começamos a examinar seus processos, envolvendo a liderança local e a equipe da linha de frente no trabalho de melhoria.

Aos poucos, mas com segurança, as mudanças que fizemos chamaram a atenção de outras áreas, e as pessoas começaram a ficar curiosas. Naqueles primeiros anos, nossos esforços de transformação se concentraram nas funções de suporte – laboratório e farmácia, é claro, mas também RH, compras e administração. Esperávamos que o aprimoramento dessas áreas capturaria a imaginação dos médicos e os encorajaria a se envolver também.

A primeira melhoria em grande escala conduzida diretamente por médicos foi em nossas salas de operação. Na verdade, foram eles que pediram ajuda. O problema era que os cirurgiões muitas vezes não sabiam quando iriam operar porque era difícil entender quando uma sala de cirurgia estava disponível e quando não estava. Foi criada uma equipe – que incluía os chefes de traumatologia, cirurgia cardiovascular, cirurgia vascular, salas de cirurgia, UTI e anestesiologia, bem como a equipe administrativa, um membro do conselho e eu –, e uma série de ferramentas lean básicas, como mapeamento do fluxo de valor, foram introduzidos para esclarecer a situação.

 

Acreditações e treinamento

Era nosso desejo que o hospital obtivesse credenciamentos internacionais. Em 2016, nos inscrevemos para a “Chest Pain Center Accreditation Version 5 with Primary Percutaneous Coronary Intervention”, que era concedida na época pela American College of Cardiology e pela American Heart Association, dos Estados Unidos. Era um grande passo para nós, mas eu acreditava que ensinar nosso pessoal a aplicar o pensamento lean em nossos processos nos ajudaria a chegar lá.

Ansiosos para aprofundar nosso conhecimento sobre lean, conseguimos uma bolsa patrocinada pela Cardinal Health (dos EUA) para levar uma equipe aos Estados Unidos para um treinamento de duas semanas na Academy for Excellence in Healthcare, oferecido pela Fisher School of Business, na Ohio State University. Ele aconteceu nos meses de julho e outubro de 2016, e fomos a primeira equipe internacional a participar do programa. A equipe era composta pelo chefe de insuficiência cardíaca, o chefe de atendimento cirúrgico pós-cardiovascular, o chefe do centro cirúrgico, o chefe do laboratório de cateterismo e eu. Para preparar e familiarizar a equipe com a linguagem lean, lemos juntos “Management on the Mend”, de John Toussaint, bem como as pré-leituras do programa.

De muitas maneiras, essas duas visitas aos Estados Unidos foram um divisor de águas para a transformação lean no IMC. Eu estava frustrado com o progresso lento e com a baixa adesão dos médicos que víamos; como sempre, a resposta estava no gemba. Fazer com que os líderes de nosso hospital visitassem outras organizações que estavam mais adiantadas em sua jornada – como o Ohio State University Wexner Medical Center em julho (na época, a líder de transformação e diretora de qualidade deles era Susan Moffatt-Bruce, que era nossa treinadora designada durante o treinamento) e o principal centro de distribuição da Cardinal Health em outubro – abriu os olhos de nosso pessoal para as oportunidades oferecidas pelo lean. Foi nesse momento em que as coisas começaram a se encaixar: por um lado, tínhamos projetos executados por funções de apoio em todo o hospital; de outro, médicos que finalmente estavam entendendo o valor do lean.

De 2012 a 2016, quando a mudança foi impulsionada por nossas áreas de suporte, o progresso que fizemos foi grande, mas limitado aos diferentes silos e, em grande parte, invisível aos médicos. Mesmo quando transformamos o processo nas salas de operação, eles reconheceram o avanço, mas ainda assim não se envolveram totalmente fora das salas de cirurgia. As coisas mudaram depois que fomos para os EUA, entretanto. Foi nesse momento em que os médicos começaram a se envolver, e começamos a ver mais projetos multifuncionais e a mudança sistêmica que eles são capazes de efetuar.

Como parte de nosso treinamento com a Academy, concluímos com sucesso um projeto para melhorar o horário de alta – um ponto difícil para hospitais em todo o mundo. Ao introduzir o fluxo no processo, conseguimos fazer grandes melhorias: entre 2016 e 2017, atingimos nossa meta de 40% de pacientes com alta antes das 10h30, 60% antes das 12h30 e 80% antes das 14h30 (hoje, em 2021, nossa meta é ter 50%, 70% e 80%, respectivamente). Nosso trabalho foi documentado em um White Paper (em inglês).

Provando que estávamos no caminho certo, em 2017 recebemos o tão desejado credenciamento “Chest Pain Center with Primary PCI”. Demoramos menos de um ano. Em 2018, também conquistamos a acreditação “ACC Heart Failure” – a única fora dos Estados Unidos. Ansiosos para continuar nosso progresso, trouxemos, em 2018, a Academy para a Argentina para três sessões de ensino de uma semana e duas sessões de coaching de duas semanas. Isso representou outro catalisador poderoso para a mudança, que criou sinergias e compreensão incríveis e aprofundou muito nosso entendimento sobre o pensamento lean.

A chave para todas essas conquistas (também ganhamos o prêmio “ACC First Place” para melhoria de qualidade e recebemos o reconhecimento da ACC como um Centro Internacional de Excelência em 2019) foi ajudar nosso pessoal a falar a mesma linguagem – a do pensamento lean – e trabalhar para um objetivo comum. Em última análise, isso nos permitiu também manter nossos resultados ao longo do tempo.

Não há dúvida de que outro elemento fundamental de nossa transformação é o apoio que temos recebido das lideranças em todos os níveis (sem ele, sustentar a mudança é impossível na minha opinião). Nossa abordagem é baseada na ideia de treinar líderes continuamente e educar de cima para baixo, e acredito que isso nos ajudou não apenas a obter o suporte de que precisávamos da liderança para impulsionar a transformação, mas também a identificar nossos melhores agentes de mudança.

Quando se trata de aprender com os outros, convidamos muitos especialistas em lean desde 2014 para visitar nosso gemba e passar vários dias conosco no IMC – incluindo Marcelo Zottolo, Susan Moffat-Bruce e Peter Ward, dos EUA, Myrna Flores, da Suíça, e José Ferro e Frederico Pinto, do Brasil. Alguns deles conduziram workshops, e outros deram palestras para compartilhar seus vastos conhecimentos. Fazer caminhadas pelo gemba com eles e receber feedback sobre nossos A3s foi fundamental.

Em relação ao compartilhamento interno de conhecimento, o boca a boca ainda é o nosso modus operandi. Não é estruturado e não é o que queremos, mas funciona, pelo menos até que possamos padronizar e desenvolver nossos próprios programas de desenvolvimento de saúde lean (que esperamos realizar este ano ainda). É através do boca a boca que conseguimos levar o lean de uma área para outra no IMC – a mesma ideia que está por trás do nosso Lean Day, uma confraternização de final de ano em que diferentes pessoas apresentam seus A3s. Também estamos muito orgulhosos de ver como nossos esforços lean estão inspirando outras organizações: depois de participar de nosso Lean Healthcare Summit em 2018, o primeiro na Argentina, vimos vários hospitais em Buenos Aires embarcarem em suas próprias jornadas lean.

 

Subindo a meta, mesmo em meio a uma pandemia

Um artigo publicado na The Economist em outubro de 2018 disse que “a maioria das economias está mal preparada mesmo para uma recessão branda”. Poderíamos falar sobre a “economia de hospitais”, e a frase ainda faria todo o sentido. Na Argentina, infelizmente, estamos muito acostumados com a turbulência econômica: o país registrou um aumento na inflação de 53,8% em 2019 e de 36,1% em 2020. Só em 2019, nossos custos com mão de obra também aumentaram 53,8% e, em 2020, 21,4%. O que você faz em uma situação como essa? Nossa resposta foi clara: precisamos criar mais valor para os pacientes. Como George Merck disse uma vez: “Tentamos nunca nos esquecer de que os remédios são para as pessoas. Não é pelos lucros. Os lucros vêm como consequência e, se nos lembramos disso, eles nunca deixarão de aparecer”.

Na verdade, essa ideia tem embasado nosso trabalho de melhoria desde o início, quando estamos tentando atender as ligações de nossos pacientes de forma mais rápida ou melhorar o fluxo de pacientes no atendimento ambulatorial. Alcançamos ótimos resultados elevando continuamente a meta, lembrando-nos de que sempre podemos fazer melhor e oferecer ao paciente uma experiência melhor. Vale lembrar, por exemplo, que enquanto hoje mais de 90% dos nossos pacientes vão da recepção à coleta de sangue em menos de 10 minutos, nossa meta inicial era de 15 minutos – em concordância com a meta de 2016 da Cleveland Clinic.

No geral, desde 2012, graças ao lean, o Instituto Modelo de Cardiología conseguiu – antes da Covid-19 – aumentos de 31% para cirurgias, 68% para admissões, 84% para consultas ambulatoriais e 103% para consultas de emergência (entre outros resultados). O pensamento lean nos permitiu agilizar processos, reduzir o tempo de espera dos pacientes e melhorar a qualidade do nosso atendimento. Algo de que me orgulho muito é o fato de também termos conseguido sustentar esses resultados durante a pandemia.

Ao longo do ano passado, muitos de nossos projetos tiveram que ser interrompidos, pois a luta contra a Covid-19 se tornou nossa prioridade número um. Esta é uma guerra, e não estamos imunes a perdas (na verdade, perdemos alguns de nossos pacientes para este vírus), mas acho que também é importante comemorar nossos sucessos: nossa mortalidade hospitalar para pacientes de Covid é 10%, consideravelmente abaixo da média global, e, em condições econômicas tão complicadas aqui na Argentina, temos sido capazes de manter toda a nossa equipe intacta.

É comovente ver nossa equipe se unir e aproveitar seu conhecimento lean para proteger uns aos outros e aos nossos pacientes da melhor maneira possível. Por exemplo, vimos médicos realizarem algumas das tarefas que normalmente são prerrogativas dos enfermeiros como parte de nosso esforço coletivo para reduzir o número de pontos de contato com pacientes com Covid-19 e, portanto, limitar a exposição da equipe ao SARS-CoV-2 e otimizarem a quantidade de EPIs utilizada sem prejudicar nossa qualidade. Desde o início da pandemia, a padronização tem nos permitido fazer um uso correto de nosso estoque de EPIs em todos os cantos do hospital sem nunca deixá-los acabar (na verdade, consumimos mais em março, quando estávamos no início da curva e só internamos um paciente com Covid-19 em todo o mês, do que no pico de outubro, quando recebíamos 150 casos suspeitos de Covid-19 por dia). Simplificando, não sei como lidaríamos com essa emergência sem o lean.

O lean tem sido fundamental para nossa transformação e sucesso desde que iniciamos nossa jornada, há nove anos. Portanto, encorajamos todas as organizações de saúde do mundo a explorar tudo o que o lean pode fornecer, para melhorar seus processos, resultados para o paciente e a satisfação da equipe e dos pacientes.

Publicado em 02/03/2021

Autor

Javier Sala Mercado
Cardiologista, do Instituto Modelo de Cardiologia, da Argentina
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal