SAÚDE

Desafios para transformar a área da saúde pelo pensamento e pela prática lean

Grupo de estudo sobre saúde da LGN
Nos últimos dez a quinze anos, o pensamento lean tem se difundido pela área da saúde. Os esforços de transformação lean, feitos inicialmente por hospitais pioneiros, como o Virginia Mason e muitas outras organizações, são agora comuns em diversos países, muitas vezes gerando resultados incríveis.

Desde os escandalosamente altos custos da área da saúde nos Estados Unidos até os problemas crônicos do Sistema Nacional de Saúde no Reino Unido, a provisão de cuidado efetivo, acessível e eficiente é um tema muito debatido ao redor do globo.

Como líder da disseminação do pensamento e da prática lean, a Lean Global Network (LGN) teve a oportunidade de testemunhar muitas e extraordinárias tentativas de turnarounds em organizações da área. Acreditamos, portanto, estarmos em boa posição para documentar nossos aprendizados e compartilhar algumas de nossas reflexões sobre o que é necessário para introduzir os princípios e as ferramentas da gestão lean em um hospital ou clínica.

Este ensaio resulta da experiência adquirida por seis de nossos institutos afiliados ao redor do mundo (Lean Institute Brasil, Instituto Lean Management Espanha, Lean Institute Turkey, Lean Enterprise China, Lean Association da Finlândia e o Lean Enterprise Institute, dos Estados Unidos): ele fornece uma vasta gama de pontos de vista sobre o que significa desenvolver uma cultura lean em uma organização da área da saúde, o que reflete as diferenças inerentes a cada um dos países nos quais operamos. Apesar das diferenças, entretanto, fomos capazes de identificar muitos tópicos comuns e recorrentes. Gostaríamos de compartilhá-los nas páginas seguintes.

Desafio #1: profissionais da área da saúde e o “pensamento básico”

Como pessoas altamente habilitadas, a maioria dos profissionais da área (como médicos, técnicos e enfermeiros) estão potencialmente mais abertos a abraçar os princípios e a prática lean do que os profissionais da indústria, por exemplo. Interações ricas e boas perguntas são comuns no ambiente, o que fornece uma base sólida para a cultura lean crescer e prosperar. Além disso, os profissionais dessa área parecem gostar da metodologia (talvez até do processo), pois gostam de disciplina e de ter “passos a serem seguidos”. Porque a importância da aprendizagem e da educação é bem entendida nessa comunidade, compartilhar conhecimento é, muitas vezes, parte natural da cultura de uma organização, e o método científico (típico da profissão médica) garante que a abordagem à aprendizagem – o elemento fundamental para instilar uma cultura lean em uma organização – é tão bem estruturado e efetivo quanto pode ser.

Médicos e enfermeiros (mas também outros profissionais que trabalham em hospitais e clínicas) são ótimos com fatos e coleta de dados – atividades desafiadoras em outras áreas. Eles amam fazer isso e gostam de compartilhar seus pensamentos sobre o que descobrem.

Entretanto, a forma deles de trabalhar é muito individualista. As pessoas trabalham em grupos, mas não em equipe. Como as tarefas e os pacientes são normalmente atribuídos, eles tendem a pensar que não há necessidade de interação com os outros. Eles dominam os procedimentos, mas, muitas vezes, não conhecem os processos como um todo. Até os gerentes agem como “gerentes clínicos”. Isso é particularmente interessante, porque, para consertar os processos em seus hospitais, eles precisariam usar o mesmo rigor e disciplina que usam ao tratar pacientes.

Aqui estão algumas coisas que devemos considerar:

• Quando falar com médicos (e enfermeiros), não se esqueça de que os modelos mentais deles são mais orientados ao método científico do que nós, que não somos profissionais da área, presumimos.

• Quando tentar explicar a abordagem lean à solução de problemas para um médico, tente comparar a forma como solucionam os problemas dos pacientes e como você precisa ajudá-los a solucionar os problemas organizacionais e gerenciais.

• Considere os médicos “clientes internos” – se eles sentirem que o hospital está tentando melhorar e ver que suas vidas no trabalho também melhorarão como resultado de processos e estilo gerencial melhores, eles provavelmente subirão a bordo (a famosa pergunta ‘qual é a vantagem para mim?’ precisa ser respondida).

• Tente engajar-se com os egos. Um bom cirurgião que é elogiado por toda sua vida provavelmente acreditará que tem a chave para consertar qualquer coisa, incluindo os processos da organização – mas sabemos que não é bem assim. Entretanto, para que o lean enraíze, você precisa fazer com que a alta administração apoie a disseminação do conhecimento pela organização, enquanto engaja e envolve a média gerência – geralmente formada por profissionais que ganharam suas posições por serem ótimos pesquisadores e médicos.

Desafio #2: colocar o paciente em primeiro lugar e definir um propósito claro antes de mudar os processos

O pensamento e a prática lean têm a ver com a criação de valor com mínimo desperdício. É por isso que a perspectiva do cliente é tão essencial para a forma como organizamos e gerenciamos o trabalho: cada passo, cada atividade, cada parte do trabalho precisa ser analisada, considerando que valor cria para o cliente. Na área da saúde, essa forma de pensar coloca o paciente no centro das discussões de melhoria e nos encoraja a definir nosso propósito antes de começar a mudar o processo.

Uma organização da área da saúde existe para salvar vidas, para curar pessoas – colocar os pacientes em primeiro lugar deveria ser uma forma natural de pensar. Infelizmente, não é sempre o caso. Não é raro encontrar exemplos onde a perspectiva do cliente é ignorada. Muitos hospitais (mas isso não se restringe à área da saúde) veem o pensamento lean como uma forma de reduzir custos e apenas focar em “pacotes” de melhorias de processo, o que não pode ser sustentado no longo prazo. Em vez disso, eles deveriam se concentrar-se em seu propósito fundamental e usá-lo como alavanca para alcançar o norte verdadeiro.

Uma pesquisa de 2013 – D’Andreamatteo A., Lanni L., Lega F, Sargiacomo M., Lean in healthcare: A comprehensive review, Health Policy 2015 (119) 1197–1209 – mostrou que a maioria dos artigos científicos publicados sobre lean na área da saúde apenas tratam de limitadas implementações lean e aplicações em subprocessos, em vez de focar em transformações amplas e mais profundas.

Embora seja, muitas vezes, aconselhável começar devagar, em um processo ou atividade, a maioria das organizações não conseguem avançar, pois o propósito da transformação não estava suficientemente claro desde o início. Definir o propósito e as metas da organização é fundamental, e, infelizmente, o propósito “paciente em primeiro lugar” não parece ser muito valorizado ainda. Um hospital ou clínica precisa capturar claramente o que é valor para seus pacientes e agir de acordo para melhorar as coisas.

Desafio #3: conectar o propósito às melhorias no processo

O pensamento em silo é um dos maiores desafios do lean. As organizações da área da saúde (especialmente grandes hospitais) são complexas e muitas vezes dividas em “suborganizações” funcionais. Esses silos criam e administram processos para manter-se funcionando, mas o valor para o paciente (e o propósito da organização) não considera tais silos. Eles percebem a organização como uma coisa só e precisam de todos os processos para terem seus problemas resolvidos.

Não é só por isso que é importante alinhar o propósito à melhoria no processo: muitas vezes, os desperdícios não estão no atendimento ao paciente, mas nos vários outros processos que apoiam o atendimento (por exemplo, o transporte do paciente). Isso torna a adoção da visão de fluxo de valor absolutamente crítica e necessária. Ainda assim, é muito raro encontrarmos essa perspectiva aplicada na área da saúde.

Adquirimos alguns aprendizados sobre esse desafio específico quando tentamos introduzir o pensamento lean em uma organização da área da saúde:

• Conectar os projetos de melhoria com as metas do hospital – é importante para as pessoas entender como os processos nos quais trabalham impactarão as metas mais amplas das organizações. Se é esperado que as pessoas melhorem a forma como realizam o trabalho, precisamos ser capazes de claramente mostrar-lhes POR QUE tais mudanças são necessárias. Conectar os projetos de melhoria com as metas estratégicas da organização é fundamental para motivar as pessoas e guiá-las para a direção correta. Isso também aumenta a chance de se atingir as metas desejadas das quais o hospital precisa para ter sucesso no médio e longo prazos. Como o corpo humano, uma organização é feita de diferentes partes que interagem e precisam estar em harmonia umas com as outras. Apesar de começar com melhorias em um processo específico ser uma boa forma de começar, é importante para quem trabalha no processo saber como seu trabalho (em sua atual forma e em seu estado futuro melhorado) contribuirá para a melhoria geral da organização.

• A realização do propósito da organização não significa que a diversidade de profissionais na linha de frente não deve ser considerada. Não há apenas uma forma de engajar as pessoas (desde os colaboradores do atendimento até os cirurgiões de renome mundial); não há apenas um problema com o qual todos se preocupam; e não há atalhos. Embora tedioso, o engajamento um a um é o mais eficaz, dado o contexto situacional específico do indivíduo como aprendiz.

• Sempre embase as melhorias em dados reais: a otimização de um departamento com base na intuição em vez de medições reais pode gerar resultados ruins e despertar a busca por culpados. Em muitos casos, não há mensuração real, embora muitos dados estejam à mão. É importante que todos tenham um “espelho” para serem capazes de enxergar os gaps e as metas específicas. Isso pode tornar as caminhadas pelo gemba ainda mais efetivas.

• Procure melhorar todo o fluxo de atendimento, de acordo com o ponto de vista do paciente. Os fluxos de valor devem ser usados para mostrar o processo de criação de valor de ponta a ponta e para ajudá-lo a construir exemplos inspiradores.

Desafio #4: escopo das iniciativas de tamanho certo

Uma das coisas mais importantes que temos observado é que o escopo certo de uma iniciativa de melhoria é chave para garantir seu sucesso. O tamanho e a velocidade da mudança são variáveis críticas. Uma mudança da motivação inicial para transformações mais amplas só podem vir de iniciativas bem focadas que consigam alcançar resultados relevantes.

O que torna hospitais ambientes complexos é o fato de que suas operações e procedimentos são desempenhadas, eminentemente, por pessoas. Um hospital de médio porte, por exemplo, tem muito mais funcionários do que uma empresas de manufatura de porte grande – você encontrará algumas máquinas (e certamente sistemas instáveis de TI), mas são as pessoas que fazem as coisas acontecerem na área da saúde.

Como vimos, às vezes, mudar o processo é tecnicamente fácil, mas a parte humana da equação não pode ser ignorada. Mudar comportamentos é difícil, sempre, e não há motivo para tornar isso ainda mais complicado ao forçar o mesmo modelo para todos na organização.

Algumas dimensões para se ter em mente quando estiver buscando identificar iniciativas de tamanho certo:

• Tente trabalhar nos problemas que são relevantes para a organização e representam as verdadeiras necessidades. O propósito precisa estar claro e conectado com a estratégia. Mesmo se o hospital não tiver um processo formal funcionando para o planejamento e desdobramento da estratégia, procure por exemplos relevantes através dos quais a verdadeira aprendizagem possa ocorrer.

• Não vá muito rápido (ou em passos largos); em vez disso, comesse devagar e mergulhe fundo em um problema. Isso lhe dará algo para mostrar às pessoas (você tem muitos a convencer) e o ajudará a desenvolver uma massa crítica de conhecimento que possa ser transferida a outros lugares da organização.

• Não subestime a falta de conhecimento quanto aos novos conceitos e a dificuldade de pô-los em prática. Os princípios lean podem parecer simples à primeira vista – e, de muitas formas, eles são –, mas adotá-los no gemba levará a contratempos e requerirá muita persistência.

• Considere que as pessoas gostam de trabalhar com seus próprios modelos “locais”, o que pode garantir melhores resultados no longo prazo. Customizar sua abordagem a diferentes circunstâncias pode ajudar as pessoas a se sentirem confortáveis em lidar com as mudanças importantes que estão sendo introduzidas.

• Tente encontrar um líder com uma mentalidade positiva e que esteja querendo melhorar o desempenho ao desenvolver pessoas e processos. O esforço de melhoria, quando organizado e promovido pelo “dono” de uma área ou processo, assume uma perspectiva diferente. Os especialistas lean podem fazer muito, mas nada é melhor do que os gerentes da linha de frente fortalecidos pelo conhecimento lean. Esse é o verdadeiro motor de uma transformação lean.

Desafio #5: reprojetar os sistemas de gestão

A atividade de melhorar processos na área da saúde é geralmente muito desafiadora e também muito recompensadora. Na verdade, é tentador mover-se de um processo a outro e colher todos os frutos mais acessíveis de uma única vez. A parte difícil é, muitas vezes, fazer com que as mudanças no processo se sustentem (o que, claro, é verdade em todas as indústrias).

O mindset da área da saúde encoraja as pessoas a agirem por e para si mesmas, e isso torna a necessidade de encontrar formas robustas, contínuas e consistentes de manter os padrões ainda mais forte. Trabalhar em equipe é difícil, e alinhar a organização em direção a um processo requer a criação de um sólido sistema de gestão, um no qual a comunicação seja fluída e imediata, os problemas sejam rapidamente identificados e solucionados, e a liderança esteja disponível para ajudar enquanto tenta encorajar as pessoas a tomarem a iniciativa. Sem isso, os resultados sumirão rapidamente, e o lean não será sustentável.

Alguns de nossos aprendizados sobre o reprojeto de sistemas de gestão:

• Tente integrar o pensamento de melhoria e aprendizagem nas atividades cotidianas da organização, para enfrentar o desafio “não tenho tempo”. É possível incorporar as práticas de gestão lean em mecanismos de gerenciamento diário estabelecidos. Às vezes, as rotinas de gestão atualmente estabelecidas não precisam ser abandonadas ou completamente mudadas. Pequenos ajustes são, muitas vezes, suficientes para dar ao trabalho um “sabor” mais lean.

• Estabeleça reuniões padronizadas na forma de sessões de caminhada e coaching em vários gembas, especialmente com executivos-chave, como o CEO, o COO e médicos seniores. As sessões no gemba, se estruturadas por bons mecanismos de gestão, podem ser uma forma muito poderosa para tornar a realidade do estado atual clara para os líderes seniores.

• Construa o “ir-ver” em atividades regulares em vez de adicioná-lo ao calendário: por exemplo, revisões de orçamento no gemba talvez ajudem o CFO a entender por que um gerente está pedindo recursos, ao invés de realizar longas reuniões reuniões em sala. Essa é uma ótima forma de promover atividades no gemba para líderes que estejam envolvidos em seus trabalhos.

Desafio #6: comportamentos da liderança

Liderança é um dos blocos fundamentais de uma virada lean. Na área da saúde, a atitude da liderança pode assumir um papel ainda mais central. De acordo com a forma lean de entender a prática da liderança em todos os níveis, precisamos entusiasmar as pessoas e apoiá-las em sua aprendizagem e atividades de solução de problemas – aprendemos como, para muitos (a maioria?) profissionais da área, não é natural sinalizar problemas.

Acreditamos ter aprendido muitas coisas importantes relacionadas a mudar os comportamentos da liderança:

• Encontre um médico engajado para ajudá-lo a espalhar a boa notícia. No Brasil, por exemplo, tivemos a sorte de encontrar o Dr. Fred no Instituto de Oncologia do Vale. Foi muito eficaz ter alguém como ele, um importante médico, defendendo o potencial do lean na área. Os médicos gostam de ouvir outros médicos, e, com essa abordagem, criamos novos médicos e enfermeiros capazes de ensinar e compartilhar suas experiências com outros.

• Conduzir caminhadas no gemba para encorajar os membros de equipe de melhoria assim como conectar projetos de intervenção com os líderes do hospital.

• Criar um movimento ajudando os mais próximos ao paciente a trabalharem melhor. Você talvez queira começar com os enfermeiros, já que eles normalmente compreendem cerca de 25% da força de trabalho e estão em todas as áreas de um centro médico/hospital, incluindo administração, pesquisa e, claro, áreas clínicas.

• Conexões pessoais e emocionais são importantes para criar compromisso e uma orientação à transformação. Engaje e ensine o enfermeiro-chefe e caminhe com ele até a área para experimentar os processos melhorados em primeira mão; dessa forma, será mais fácil para elas compartilhar seus aprendizados e falar sobre as melhorias com seus colegas.

• Dada a alta rotatividade dos executivos, o foco nos médicos e em outros profissionais da área como a força de trabalho clínico é muito mais estável e tende a permanecer em vigor por certo tempo. Isso dá estabilidade e progresso.

Conclusão

Talvez não exista uma indústria em nossa sociedade que precise mais do pensamento lean do que a da saúde. Também não existe uma indústria que seja mais complexa e multifacetada. Introduzir o lean e iniciar um lean turnaround em um hospital, clínica ou centro médico será, certamente, difícil, mas a promessa de um melhor atendimento para a população de nossos países deve ser incentivo suficiente para convencer todos nós a perseverar.

Acreditamos que as dicas e recomendações contidas neste artigo lhe fornecerão algumas sugestões práticas que você pode começar aplicando em seu trabalho imediatamente, para dar vida nova a uma implementação lean em curso, para começar a partir do zero ou para construir sobre o progresso que você já fez.

Publicado em 29/06/2016

Autor

Grupo de estudo sobre saúde da LGN
Planet Lean - The Lean Global Networdk Journal